Como é preciso modificar a Constituição.
Eduardo Cambi
Acadêmico do 5º ano de
Direito da UFPR e membro da Equipe de Pesquisadores Bonijuris
"Mudam-se os tempos, mudam-se as
vontades,
muda-se o ser, muda-se a confiança
Todo mundo é composto de
mudança
Tomando sempre novas qualidades".
(Luiz
de Camões)
Há uma perceptível
tendência, na opinião pública em geral e em amplos
segmentos da classe jurídica, reinvindicatória de reformas
estruturais na Constituição Federal de 1988.
Nossa Lei Fundamental, que completa nove anos de existência no próximo 5 de outubro, foi uma resposta para o passado. Nossos constituintes, movidos pela fragmentação do regime autoritário, procuraram elaborar uma Carta política que restaurasse a Democracia. Essa vontade de restauração das vias democráticas foi permeada pela áspera desconfiança em relação aos futuros legisladores. Por isso, o constituinte optou por constitucionalizar tudo, consagrando em sede constitucional uma vasta gama de matérias que, certamente, poderiam ser deslocadas para o nível infra-constitucional.
Logo, o texto constitucional abarca, entre dispositivos permanentes e transitórios, mais de trezentos artigos, sendo muitos deles contidos de inúmeros incisos, parágrafos e alíneas. Vê-se, por exemplo, que somente o artigo 5º possui setenta e sete incisos, além de parágrafos e alíneas.
Fazendo o cômputo geral de todos os preceitos constitucionais, é possível contar algumas centenas de regras inseridas na Constituição. Como conseqüência disso, temos uma Lei Fundamental excessivamente detalhista e minudente.
Todavia, isso não garante a força normativa da Constituição, haja visto que a maior parte das matérias não encontrou consenso entre os constituintes e, por isso, teve sua eficácia positiva limitada ou contida no tempo, sendo relegada à regulação por parte de vindouras normas infraconstitucionais.
Assim, além de ser vista como uma resposta para o passado, a Constituição também prevê um projeto para o futuro. Nosso texto constitucional foi elaborado dentro de um contexto crítico da história, sobretudo sob o viés político. O mundo, até então, dividia-se em dois blocos, ideologicamente distintos; havia o que se convencionou denominar de direita, inspirada sob idéias de teor capitalista, e a esquerda, com coloração socialista. com derrocada do bloco gerido pelas concepções socialistas, as noções, até então clássicas, quanto ao posicionamento político-ideológica, entraram em cheque, sugerindo novas abordagens.
Não há dúvidas,
pois, que as noções políticas, a partir de 1988, se
alteraram radicalmente e isso desafia a modificação de certos
conceitos inseridos no bojo de nossa Constituição. No entanto,
fizemos uma Carta Magna rigorosamente analítica que, não
só traz problemas a governabilidade, como também à
atividade legislativa e jurisdicional.
Sob o ângulo estritamente jurídico (1ª indagação), a ampla visualização - seja explícita, seja implícita - das cláusulas pétreas (art. 60, par. 4º) abrange um vasto número de normas constitucionais, tornando-as, praticamente, imutáveis. Note-se, a guisa de exemplo, a matéria referente aos direitos e às garantias individuais (art. 60, par. 4º inc. IV). Compõe esses direitos e garantias individuais não só aqueles contidos no farto rol do artigo 5º, como também aqueles decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição, bem como pelos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, par. 2º). Isso faz com que possuamos um catálogo incontável de direitos e garantias constitucionais que, por via de conseqüência, estão abrangidos pela cláusula pétrea do art. 60, par. 4º, inc. IV, e, logo, não são suscetíveis de reforma constitucional.
Feito o mesmo raciocínio em relação às demais cláusulas pétreas, facilmente se percebe que extensos segmentos da Constituição, por poderem ser enquadrados em algum desses incisos do parágrafo 4º, do artigo 60, são imodificáveis. Com efeito, deduz-se que quanto maior é o número de matérias contidas na Constituição maior é a possibilidade de enquadrá-las em alguma das cláusulas pétreas e, com isso, menor é o grau de modificabilidade da Constituição, vez que isso redunda na restrição da liberdade do constituinte reformador, que fica mais suscetível a inconstitucionalidades, bem como da do magistrado, compelido a controlar a constitucionalidade da emenda reformadora.
Do ponto de vista político (2ª indagação), a reforma constitucional também esbarra no caráter analítico de nossa atual Constituição. As recentes propostas de emenda constitucional têm demonstrado uma cultura legislativa extremamente inviabilizadora da reforma da Constituição, o que culmina na propositura de emendas extensas e pormenorizadas que, na prática, demonstram-se de difícil viabilidade, ora por conterem vários vícios de inconstitucionalidade, ora por contrariarem interesses políticos suficientes para que o alto quórum de aprovação da emenda não seja alcançado. Daí explicar porque quaisquer das reformas (previdenciária, administrativa, tributária, etc.), inobstante a vontade política da coalização governamental em realizá-las, não segue adiante.
Portanto, não basta
vontade política para a realização das reformas constitucionais,
é preciso, fundamentalmente, mecanismos jurídicos adequados
para que essas reformas se processem.
Essas circunstâncias juntas nos levam a crer que, querendo-se e necessitando-se fazer essas reformas constitucionais, o mecanismo da emenda constitucional não é o mais adequado.
Uma reforma constitucional, nesses moldes amplos - compelida pelas alterações no contexto político-ideológico que sofreu o mundo após 1988 - requer alternativas jurídicas mais eficazes. Logo, é forçoso reconhecer que somente através do mecanismo da revisão constitucional é que essas reformas poderão ser implantadas. Para isso, o artigo 3º do ADCT desafia uma nova exegese, teleológica e historicamente voltada ao escopo da modificação estrutural da Constituição vigente.
Antes de mais nada, é preciso reconhecer que o constituinte de 1988 possibilitou o mecanismo da revisão constitucional, após cinco anos da promulgação da Constituição. Isso quer dizer, não que a revisão deveria ser realizada no quinto ano (1993) de vigência da Constituição, mas a partir do quinto ano do advento da nova ordem constitucional. Não se argumente, pois, com o malogro da frustrada tentativa de revisão constitucional realizada em 1993, vez que, nesse momento histórico, não havia amadurecimento, por parte da sociedade organizada, suficiente para que se fizesse sentir a necessidade de reformas estruturais (e, por isso, extensas) na Constituição. Assim, o momento político não era o mais adequado, como o próprio tempo veio a demonstrar, para a realização da revisão constitucional.
Esse mecanismo de reforma tem a virtude de possibilitar a modificação de amplos setores da Constituição, pois contém um processo legislativo, instrumentalmente, mais propício a evitar os entraves constantes no mecanismo de reforma constitucional através das emendas constitucionais, já que - pela revisão constitucional - a aprovação da proposta de reforma requer, tão-somente, o voto da maioria absoluta dos membros do congresso Nacional, em sessão unicameral.
Parece, pois, não haver outra alternativa - juridicamente concebível e aceita pelo nosso ordenamento constitucional e, ao mesmo tempo, politicamente célere e eficaz - para se realizar tão esperadas reformas constitucionais. Todavia, parece-nos que a adoção dessa via de reforma, para obter maior legitimidade democrática, deveria ficar facultada somente aos parlamentares a serem eleitos no próximo pleito eleitoral. Os cidadãos, desta forma, estariam mais conscientes e, uma vez melhor informados, seriam mais cauteloso quanto ao exercício do direito do voto e da sua parcela, individual, de responsabilidade política na transformação do Estado brasileiro.
Além disso, uma vez sendo possível a viabilização da reforma constitucional, resta a sugestão da construção de uma Lei Fundamental menos pormenorizada; isto é, mais principiológica, a fim de que a ordem jurídica - sempre fundada validamente a partir da Constituição - não fique engessada às novas concepções trazidas com o tempo. Desta forma, privilegia-se a liberdade criadora do administrador público, do legislador e do juiz, necessárias a constante revitalização e superação normativa, ficando essa criatividade limitada pelo aperfeiçoamento dos mecanismos de controle (freios e contrapesos) existentes entre as respectivas funções estatais.
retirado de: http://www.bonijuris.com/informat.htm