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      A concepção de soberania como vontade do soberano

FLAMARION TAVARES LEITE

             PROFESSOR DO MESTRADO EM CIÊNCIAS JURÍDICAS DA UFPB



Busca esta concepção justificar o surgimento do Estado absolutista e o desenvolvimento progressivo da concentração do poder de legislar. A teoria da soberania, nesse primeiro momento, propõe a liberação do soberano de quaisquer limitações que se lhe possam impor.

O poder do Estado não coexiste com outros poderes, a não ser quando lhes é infinitamente superior.

Jean Bodin

A doutrina política de Bodin está elaborada em grande parte com uma terminologia jurídica, na qual se encontra enunciado o conceito central: o de soberania. Não sem razão, Bobbio considera De la république a obra política mais importante do período de formação dos grandes Estados territoriais; "é, sem exagero, a obra mais ampla e sistemática desde a Política de Aristóteles" (Bobbio, 1988:95).

Bodin passou para a história como o teórico da soberania. Efetivamente, a ele corresponde o mérito de ter sido o primeiro a enunciar o seu conceito. A soberania - diz Bodin," poder abstracto y perpetuo del Estado, é o "supremo poder sobre los ciudanos y súbditos, no limitado por la ley", consistente na faculdade de fazer a lei, além de obrigar por intermédio dela. com efeito, Bodin escreveu que "la ley no es otra cosa que el mandato del soberano. quien se vale de su propia fuerza" ( Bodin, De la république, I, 8, apud Guido Fassó, 1982:54).

Para Bodin, ser perpétua e absoluta são características inerentes á soberania. Assim, o soberano é absolutamente legibus solutus, estando isento de obsevar as leis de seus predecessores e "solo estará obligado a observar las leyes y ordenanzas hechas por él mismo". As únicas leis que o príncipe não pode derrogar, além de algumas leis fundamentais do Estado, são as "de Dios y de la natureza" ( Fassó, 1982:54 ).

Impende salientar que poder absoluto não significa poder ilimitado. Com efeito, o soberano está sujeito" a la ley divina y a la ley natural, debe respetar la propiedad y las convenciones y no puede, en fin, alterar ni derogar las leges inperii, es decir aquellas normas constitucionales basicas, como la ley sálica, que estabelece la línea de sucesión y determina, por consiguiente, las condiciones de legitimidad de la propia soberania"( D` Entreves: 120).

De se remarcar que o reconhecimento de valores superiores ao direito positivo não limita o poder do Estado, sobretudo se consideramos que o cidadão não pode, em caso algum, fazer valer seus direitos. Ademais, por "leis da natureza "Bodin entende o mandato divino. Destarte, há uma identidade entre voluntarismo teológico e absolutismo político. Vale dizer; redução da lei á vontade do soberano.

Inobstante essa prevalência da vontade do soberano, assinale-se que das limitações impostas ao poder do Estado escorre que a sociedade, tal como a considera Bodin, desdobra-se em uma esfera pública e uma privada, ou seja, além do Estado, há a sociedade civil, com suas relações econômicas que tendem a conter ou escapar do poder do Estado. Esta divisão entre público e privado está presente na definição da República: Reto governo de várias famílias e do que lhes é comum, havendo um poder soberano. Deriva daí um reconhecimento das atividades privadas dos homens, sem embargo do poder do Estado.

Para Bodin as formas de Estados são três: monarquia, aristocracia e democracia. Não há, para ele, fundamento algum na distinção entre formas boas e más. Além disso, inexiste a sétima forma que alguns autores identificaram erroneamente como governo misto.

Ocorre que para Bodin a primeira marca do príncipe soberano é o poder de dar a lei a todos em geral, e a cada um em particular. Entretanto, isso não basta, sendo necessário acrescentar: sem o consentimento de maior, igual ou menor que ele. Assim, ou o povo não tem poder de legislar, e o Estado não é misto; ou o poder pertence ao povo, e o Estado é democrático. Daí que possamos apontar a indivisibilidade do poder como outra característica da soberania, isto é, ou o soberano tem o poder ou não tem poder nenhum.

Para os teóricos do governo misto, a república romana era um Estado cuja soberania estava dividida entre cônsules, senado povo. Para Bodin. tratava-se de um Estado democrático, onde o poder residia no povo, tendo como órgãos executivos dessa vontade soberana os cônsules e o senado. Assim, Bodin introduzia importante distinção entre formas de Estados e de governo, ou seja, a forma de Estado se determina pela sede onde radica a soberania e as formas de governo pelo modo como se exerce o poder. O fato é Bodin tende a imprimir uma sistemática racional ao Direito romano, buscando apresentá-lo como um direito natural que atua positivamente. Dessa concepção extrai a sujeição do soberano á lei natural e, conseguinte, a idéia de que a missão do Estado é fazer realizar o direito natural, preexistente e imutável.

Tal concepção, todavia, não é empecilho para que Bodin aponte a soberania como elemento essencial que vai distinguir o Estado de qualquer outra forma de sociedade humana. Pois, segundo ele, o monarca é o titular da soberania e esta se manifesta no Direito positivo.

Thomas Hobbes

O modelo de Hobbes tem como estrutura fundamental a dicotomia estado de natureza-sociedade civil. De notar-se que quando Hobbes descreve o estado de natureza constrói, também, as bases que justificarão o acordo contratual e a instauração da sociedade civil, porquanto no estado de natureza prevalecem a insegurança e temor permanente. Surge daí a "guerra de todos contra todos". Em razão da situação de conflito permanente do estado de natureza, segundo Hobbes, os homens, guiados pela reta razão, contraem um pacto de união que representa o passo para o estado civil. O pacto social é ao mesmo tempo ato de morte do estado de natureza e ato de nascimento do Estado (Santillán,1922:27).

Para sair do estado de natureza, os homens devem seguir os ditames da reta razão, que é tão natural ao homem como o são as paixões: A razão no homem não é menos natural ao homem do que a paixão, e é a mesma para todos os homens"( Elements, I,15,1 )."A reta razão faz parte da natureza humana do mesmo modo que qualquer outra faculdade ou sentimento"

( De cive, II,1, Apud Bobbio, 1991:38 ).

Do caráter do pacto deflui o caráter do poder soberano por ele instituído. Por meio do pacto se dá o passo do estado de guerra ao estado de paz.

De se assinalar que o pacto idealizado por Hobbes não é um pacto bilateral entre povo e soberano, mas um pacto multilateral de cada homem com cada homem para reconhecer como soberano a um terceiro. Este terceiro, cuja a autoridade foi reconhecida por todos, acumula a força e o poder com os quais obrigará todos á manutenção da paz. Assim, o Estado não é uma simples associação, mas a institucionalização do poder político.

Para Hobbes, pois o Estado é uma criação do homem e não um produto natural. "É como se cada homem dissesse a cada homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações( Hobbes, leviatã, cap. 17:109). Para que haja corpo política, é preciso que as vontades de todos sejam depostas numa única vontade e que existia um depositário da personalidade comum: "Aquele que é portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano. Todos os restantes são súditos"( idem: 110).

Por poder soberano entende-se o poder o poder que está acima de qualquer outro poder ( potestas superiorem non recognoscens ). Do caráter do pacto - Afirmamos - deflui o poder soberano. Pois bem, em Hobbes o poder soberano é reconhecível porque é irrevogável, absoluto, indivisível. Estes atributos provêm do caráter do pacto, posto que este se realiza entre os indivíduos tomados singularmente; atribui a um terceiro todo o poder dos indivíduos: este terceiro é uma pessoa ( física ou moral ) enquanto unidade integral( Bobbio, 1991:53).

A soberania, de conseguinte, a exemplo do Estado é um produto artificial, resultado da autorização e da renúncia ao direito de governar-se a si mesmo que constitui o conteúdo do pacto de união.

Por que os homens submetem-se a esse pacto? Vimos que para Hobbes o poder do Estado é soberano. Vale dizer: é absoluto,ou seja. não está limitado por nenhum vínculo ou obrigação de acordo com a expressão latina legibus solutos.Correspondentemente, a obediência dos súditos deves ser absoluta: "sin obediência, el derecho del soberano seria vano y consecuentemente el Estados no estaría plenamente constituido" (De cive, VI, 13, apud santillán, 1992:3).

A obediência apresenta-se sob duas formas:

a)- preventiva; b)- sucessiva. A primeira deriva do pacto de união que é a renúncia a resistir ao soberano; a segunda escorre da natureza mesma da soberania, o que significa que sem a aquiescência permanente dos súditos a soberania não existiria ( Bobbio, 1991:81). O único limite á obediência é o direito á vida: quando o Estado não é capaz de garantir a vida dos súditos, estes podem buscar proteção e segurança pelos meios que tenham á disposição.

Assim, em Hobbes - como em Bodin - o poder soberano é absoluto ( não está submetido a nenhum outro ), perpétuo ( sem solução de continuidade) e indivisível.

Não obstante o poder soberano esteja ligado á idéia de força, na medida em que limita a liberdade dos cidadãos e tem, em potência, a capacidade de impor a vontade de Príncipe, nem por isso será o mero exercício de uma força repressiva. Pois, o soberano é, antes de mais nada, a única "anti-desordem" eficaz e possível. Além disso, em Hobbes, o nascimento do Estado coincide com o aparecimento do Direito. En efecto, el transito del estado civil no es otra cosa que el paso del reinado de Ia fuerza, donde no hay seguridad, al imperio de la ley, donde las relaciones humanas están reguladas por normas determinadas. Pero el reinado de la ley es precario sin la fuerza: los pactos, sin la espada, son meras palabras: por eso, además de un ordenamiento jurídico, el Estado es un ordenamiento de fuerza"( D Entreves: 125 ).

Por outro lado, a soberania não é mera vontade arbitrária porque a lei não pode ser criada por qualquer vontade, mas somente por aquela "que haya sido autorizada para hacerlo, esto es, la voluntad del 'soberano representativo' actuando como 'personacitives'( D'Entreves: 127 ).

Na doutrina do direito natural há um argumento que parece mover-se contra a ilimitação do poder soberano: o que sustenta que o soberano está submetido ás leis naturais. Com verdade, na concepção tradicional do direito natural era comum considerar as leis naturais como mandamentos divinos. Esta concepção, no entanto, não é de todo retomada por Hobbes: para ele"la ley natural es una conclusión racional sobre aquello que se debe hacer o no hacer ( De cive, III, 33, apud Santillán, 1992:39). Dessarte, Hobbes rechaça a concepção tradicional quando afirma que as naturais são ditadas pela reta razão, que não constituem uma obrigação de fato e não podem limitar o poder soberano. Assim não nega sua existência, mas diz que não se trata de leis como as positivas, porque não são aplicadas com a força de um poder comum; são apenas regras morais que atuam no nível da consciência. "O vínculo que os súditos têm com relação ás leis positivas não é da mesma natureza do que prende o soberano ás leis naturais ... Enquanto as leis positivas constituem para os súditos comandos que precisam ser obedecidos absolutamente, as leis naturais são, para o soberano, apenas regras de prudência..." (Bobbio,1988: 107-108). Essa é a razão por que D'Entreves qualifica Hobbes como o primeiro positivista jurídico.

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Bodin e Hobbes construíram suas teorias em contraposição á sociedade medieval que tinha caráter acentuadamente pluralista, no sentido de que existiam ordenamentos jurídicos originários e autônomos, seja acima do regnum, ou seja, o Império e a Igreja, seja abaixo,

como os feudos, as comunas e as corporações.

De torna-se que numa sociedade caracterizada pela ausência de um poder unitário, "os limites do poder estão incluídos na sua própria estrutura, segundo o equilíbrio recíproco que os vários poderes produzem com sua 'concordia discors' e 'discordia concors'( Bobbio, 1984:12 ).
 

Contra essa sociedade pluralista opera-se um duplo processo de unificação das monarquias absolutas: a)- a unificação de todas as fontes de produção jurídica na lei, expressão da vontade do soberano: b)- unificação de todos os ordenados jurídicos no ordenamento jurídico estatal, que tem como expressão máxima a vontade do príncipe.

Esse processo de unificação resultou no Estado absoluto, entendido este como a forma de Estado em que não se reconhece mais outro ordenamento jurídico que não seja o estatal, e outra fonte jurídica do ordenamento estatal que não seja a lei ( Bobbio,1984:12-13 ).

Como antíteses das teorias absolutistas, surgem as teorias do Estado constitucional, cuja finalidade é impor limites ao poder do Estado, isto é, controlar o poder sem destruir a soberania.

retirado de: http://www.datavenia.inf.br/artigos/teoria/flama3.html