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O jusnaturalismo moderno - o jusnaturalismo na Idade Moderna.

Severiano Pedro do Nascimento Filho *



O primeiro aspecto a ser abordado é o fato de que a discussão suscitada face à existência ou não do Jusnaturalismo jamais esteve definitivamente encerrada ao longo da história do homem sobre a terra, a partir - é preciso salientar - do momento em que o homem conscientizou-se como indivíduo e de que efetivamente existia.

A despeito dessa vexata quæstio e mesmo imerso em diversas e repetidas crises, fases de completo desprestígio e negação de sua existência, o Direito Natural assume status de doutrina ou de Escola no limiar do século XVII e crepúsculo do século XVIII.

Assim, a Escola do Direito Natural ou Jusnaturalismo, teria o seu início com a publicação da obra De Iure Belli ac Pacis, no ano de 1625, da lavra de Hugo Grócio.

Indefinida, igualmente se encontra, a data de encerramento, mesmo não repousando dúvidas sobre os eventos que conduziram ao seu fim: a produção legislativa das célebres codificações - onde se sobressai a napoleônica - que fincaram as raízes para uma atitude de reverência no que concerne às leis estabelecidas e, por via de conseqüência, da forma de conceber o trabalho do Jurista e a função da Ciência Jurídica, que recebeu o nome de Positivismo Jurídico. A isso deve-se acrescer o Historicismo Alemão, sobretudo o Jurídico, cujas idéias levaram à extinção da Escola Jusnaturalista que à época encontrara na Alemanha sua Pátria de adoção.

Ademais, poder-se-ia declinar a publicação do ensaio juvenil de Hegel, em 1802, Sobre os diversos modos de tratar cientificamente o Direito Natural, onde o autor de Princípios de Filosofia do Direito (obra posterior) imprime uma severa crítica aos filósofos que o precederam, de Grócio a Kant e Fichte.

Decididamente, o término do modelo jusnaturalista deu-se com Hegel, cuja filosofia prelecionada não se constituía exclusivamente numa antítese ao Direito Natural, mas numa síntese, onde o incluiu e o superou.

Contudo, é imperativo dizer que sob o manto do Jusnaturalismo abrigam-se autores e idéias, correntes das mais diversificadas, filósofos como Hobbes, Leibniz, Locke, Kant; juristas-filósofos como Pufendorf, Thomasius e Wolff e por fim, um dos maiores pensadores políticos de todos os tempos, Rousseau, autor de O Contrato Social.

Visto sob este prisma, o Jusnaturalismo aflora como uma frondosa árvore de ilustres pensadores, com idéias e pensamentos diversos e até mesmo antagônicos.

Com o advento da Renascença (Séculos XV e XVI), o homem passa a indagar da origem daquilo que o cerca, colocando-se no centro do universo. Sujeita o conhecimento a uma verificação de ordem racional, dando valor essencial ao problema das origens do conhecimento, fundamentando-o segundo verdades evidentes sem recorrer ao alto na busca de quaisquer explicações.

Assim, observamos nas perenes palavras de Descartes: "Só a razão como denominador comum do humano, parecerá manancial de conhecimentos claros e distintos, capazes de orientar melhor a espécie humana, que quer decidir por si de seu destino".(1)

Logo, a razão, que para a escolástica e sobretudo para o tomismo era o conceito fundamental do Direito Natural, sofre uma transformação na teoria do Direito Natural profano e se afasta substancialmente da concepção clássica aristotélico-tomista quando revela a anterioridade do homem à lei, primeiro o indivíduo com o seu poder de agir para depois se por a lei, resultando esta no produto da autoconsciência daquele.

Hugo Grócio

Para Hugo Grócio (1583-1645), humanista, jurista, epígono da escolástica, um dos fundadores do novo Jusnaturalismo, a razão não é o órgão do conhecimento natural de Deus, de um determinado sistema confessional, e sim a faculdade cognoscitiva das verdades fundamentais da vida social. O interesse de Grócio não se concentra na Lex æterna e sim nas proposições concretas do Direito Natural, consoante à quais podem decidir-se as contendas da vida real dentro do Estado e entre os Estados. Declara o mestre holandês que a "justiça possui fundamento de razão, de maneira tão inamovível, que ela existiria mesmo que, por absurdo, Deus não existisse."(2) A sociedade, na visão de Grócio, é um fato natural, oriundo do appetitus societatis, no entanto, aparece o Direito Positivo como resultado de um acordo ou de uma convenção, sendo este a expressão de um contrato, enquanto o Direito Natural que é uma expressão da Moral, não possui fundamento contratual.

Samuel Pufendorf

Pufendorf (1632 - 1694) construiu a primeira teoria da peculiaridade do mundo espiritual - moral - em sua diferença do mundo físico. Nela, expõe pela primeira vez e com espantosa precisão, as estruturas essenciais dos conteúdos do mundo da cultura em contraposição ao da existência natural, porquanto ultrapassa a mera distinção entre Direito Natural e Teologia Moral segundo o critério de normas referentes ao sentido e à finalidade desta vida, em contraposição às referentes a outra vida, distinguindo, assim, as ações humanas em internas e externas: o que permanece guardado no coração do homem e não se manifesta exteriormente deve ser o objeto apenas da Teologia Moral. (3)

O Direito Natural para Pufendorf na sua função imperativa, tem seu fundamento na vontade divina, que originariamente fixou os princípios da razão humana perpetuamente. O sistema (4) de Direito Natural, em Pufendorf, se encontra bipartido em: a) normas absolutas, aquelas que obrigam independente das instituições estabelecidas pelo próprio homem; b) normas hipotéticas, pressupõem as instituições estabelecidas pelo homem. Esta segunda classe de normas é dotada de certa variabilidade e flexibilidade, ensejando ao Direito Natural uma espécie de adequação a evolução temporal.

Thomas Hobbes

Confluiu num sistema a grande corrente do jusnaturalismo "existencialista" dos sofistas (A teoria dos instintos) e a metafísica voluntarista de Duns e Ockham, que até então se encontravam separados. A sua idéia filosófico-jurídica central consiste em que o Direito Natural não cria uma ordem ideal, mas uma ordem real de convivência. Em Hobbes, encontramos como pressuposto fundamental: o bem supremo do homem é a própria existência e por isso é a proteção o fim único da obediência, obœdientiæ finis est protectio.(5) Para Hobbes, adepto do contratualismo pessimista, o homem é um ser mau por natureza, somente preocupado com os seus próprios interesses, e sem cuidados pelos interesses alheios, tendo se decidido a viver em sociedade ao perceber que a violência era causadora de maiores danos.

O Estado, na concepção de Hobbes, é a resultante de duas forças determinantes no homem: da ânsia de poder que leva a guerra de todos e do medo recíproco que provoca esta bellum omnium contra omnes. Desta forma, o Estado é uma instituição coativa, nascida do temor e destinada a reprimir as forças destrutoras do homem. Logo, em virtude do Estado resultar da limitação recíproca dos egoísmos, a obrigação de obediência e respeito ao Estado não dura nenhum instante mais que o tempo que este tem a força necessária para proteger os cidadãos. Assim, as relações mútuas entre proteção e obediência são o fundamento do sistema de Direito Natural em Hobbes, sendo as leis naturais, leis morais que incutem no ser humano o desejo de assegurar sua auto-conservação e defesa por uma ordem político-social garantida por um poder coercitivo absoluto.

Jean Jacques Rousseau

Para Rousseau, o homem natural é um homem bom que a sociedade corrompeu, sendo necessário libertá-lo do contrato de sujeições e privilégios, para se estabelecer um contrato social legítimo, conforme a razão. Assim, o genebrino, contrapõe ao contrato social e histórico, leonino, o contrato puro da razão, uma exigência desta.

Em suas principais obras para a Filosofia do Direito: Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens e Do Contrato Social, leciona Rousseau que a ordem social, indispensável ao Estado, não tem suas raízes na natureza, mas se acha fundamentada numa livre convenção. Assim, a vontade geral é a última instância em todas as decisões concernentes à lei, é a vontade constante de todos os membros da sociedade, dos cidadãos livres (6). Portanto, a soberania estatal, tem origem diretamente vinculada ao Povo, característica precípua do contratualismo de Rousseau, onde encontramos a democracia direta como a única forma legítima de governo; sendo a lei produto da vontade geral, tem como função proteger o cidadão, integrando-o em sociedade, espelhando-se no princípio da igualdade jurídica.

John Locke

Em sua obra, Dois Tratados sobre o Governo Civil, afirma que o homem mesmo no estado de natureza, agressivo e selvagem, possui certos direitos exemplificados pelo da liberdade pessoal, o do trabalho e o da propriedade honesta.

Em Locke encontramos um contratualismo intermédio entre as teses extremadas de Hobbes e Rousseau, correspondente ao constitucionalismo, onde menciona o direito de liberdade como conditio sine qua non para a feitura do pacto, pois o homem possui mesmo no estado de natureza, anterior ao contrato.

Na concepção de Locke a Lei natural é mais inteligível e clara do que o direito jurídico-positivo, que é complicado e ambíguo e justo apenas se fundado na Lei natural(7), segundo esta lei cada homem tem, sem recorrer ao poder judiciário e executivo, o direito de punir qualquer ofensa a um direito natural a bem da humanidade e o direito de ressarcir-se dos prejuízos que lhe foram causados pessoalmente.

Christian Thomasius

Em sua obra: Fundamenta Juris Naturæ et Gentium, Thomasius distingue o Direito da Moral e traça os limites da autoridade legítima do Estado, que não deve ferir pela coação jurídica os direitos fundamentais do homem, aí incluído o sagrado direito de liberdade de consciência. Para ele, a ação humana se biparte em duas fases: interna, que se passa na vida interior ou no plano da consciência, e outra externa que se projeta para fora, relacionando-se com outros membros da sociedade.

Destarte, o reino da Moral é o da paz interna, não supondo a coerção, enquanto o do Direito visa a paz externa e supõe a coerção e coercibilidade, mas esta apenas sobrevém quando falha o cumprimento espontâneo do Direito, sendo o recurso à força uma segunda instância, um elemento extrínseco à regra jurídica e não um de seus ingredientes essenciais.

Immanuel Kant Em Kant (1724 -1804)

O contrato social não se reveste como fato histórico realmente verificado, senão como pura idéia, hipótese racional a exprimir e fornecer o fundamento jurídico do Estado. Estabelece, o filósofo de Königsberg, a distinção precisa entre a moral e o direito, proporcionando aos jurisfilósofos a cogitação e exame de elementos da coatividade e da dialética entre interioridade e exterioridade dos atos humanos, bem como da autonomia e da heteronomia da vontade, consubstanciado no imperativo categórico: a lei moral é ditada pela própria consciência moral, não por qualquer instância alheia ao eu. Entretanto, no imperativo hipotético, a ação humana está sempre condicionada a uma conseqüência, sendo a conduta imposta um meio para atingir uma Finalidade.

Na Metafísica dos Costumes, obra dividida em Doutrina do Direito e Doutrina da Virtude, Kant resume os costumes em tudo aquilo que disciplina a ação do homem, como ser livre, através de um complexo de normas de conduta, ou de leis. O homem está submetido às leis naturais e adapta as suas ações a uma forma diferente de legislação, a da moral, que dá origem ao mundo dos costumes, ou seja, ao mundo da história, da cultura, em oposição ao mundo da natureza.

Kant faz a distinção entre o direito e o justo: o quid sit Juris? em contraposição ao quid Jus?, ao quod est justum et injustum? e adiante define o direito como sendo o conjunto das condições pelas quais o arbítrio de cada um pode harmonizar-se com o arbítrio dos demais, segundo uma lei universal da liberdade.(8)

As leis naturais, na filosofia kantiana, são as que a obrigatoriedade pode ser reconhecida a priori, pela razão, ainda que inexistentes na legislação externa; enquanto as leis positivas pressupõem a existência de uma legislação efetiva externa, sem a qual não seriam leis, devendo, ainda, ter como pressuposto, a lei natural, que se constitui no fundamento da autoridade do legislador, a sua faculdade de constranger aos demais pelo seu próprio arbítrio.(9)

Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Para Hegel (1770-1831) direito resulta de um processo espiritual e se constitui em uma das fases do processo dialético do espírito. Na teoria hegeliana o mundo da cultura é composto de etapas progressivas, resultantes de um processo espiritual, isto é, da idéia em processo de objetivação e purificação, sendo a realidade histórica a objetivação da idéia. A realidade histórica encontrar-se-ia igualmente em devenir, submetida a um processo dialético entre momentos opostos. Assim, de uma idéia (tese) nasce necessariamente uma antítese e desta oposição uma nova idéia, a síntese, e assim indefinidamente em busca do absoluto.

Hegel atacou a falsidade da idéia que trasladava a noção de contrato do campo do Direito privado para o da universidade humana, o Estado. Para ele - argumenta Fleischmann - "a passagem do domínio da propriedade privada ao da justiça universalmente válida para todo mundo é o centro eidético da vida política moderna; é não somente o fim atingido pela Revolução Francesa, mas o de todas as revoluções sociais do mundo". (10)

Para Hegel, o Estado é a conciliação do universal com o particular, possibilitadora da coexistência de interesses opostos, individuais e sociais, em uma ordem pacífica e garantidora da liberdade. Fora do Estado, a liberdade seria impossível e acima dele inexistiria poder coercitivo algum. Inadmite a existência do direito natural pois apenas o direito positivo seria direito, porquanto expressão da vontade estatal, resultante do espírito do povo, interpretada historicamente pelo Estado.

Diverso de Kant que elaborou a distinção formal entre o mundo da realidade e o mundo dos valores, Hegel identificou o que é e o que deve ser, formulando, ainda, "o que é racional é real e tudo que é real é racional", a partir daí, na sua teoria do direito, a sua posição dogmática atinge sua máxima expressão, superando o dualismo existente entre o direito natural e o direito positivo, pois no processo dialético em que o real e o pensamento se identificam, não há que falar em dever ser ou em valores jurídicos, porque tudo se resolve na realidade jurídica como expressão do espírito objetivo. (11).

NOTAS

(1) MIGUEL REALE: Filosofia do Direito, Saraiva, São Paulo,1972, 2o vol., pg. 55G.

(2) HUGO GRÓCIO: De Jure Belli ac Pacis, Libri tres, Lausana,1751, apud, ibid., pg. 5G5.

(3) SAMUEL PUFENDORF, de officio hominis et civis juxta legem naturalem libri duo, Nova York,1927, apud, Tércio Sampaio Ferraz Jr., A Ciência do Direito, Atlas, São Paulo,1988, pg. 25.

(4) No século XVII, com Christian Wolff, o termo sistema se torna conhecido. Diz-nos ele: sistema é mais que agregado ordenado de verdades, pois sistema é, sobretudo, nexus veritatum, que pressupõe a correção e a perfeição formal da dedução.

(5) THOMAS HOBBES, Leviathan, cap. XXI, apud, Hans Welzel, op. cit., pg. 120.

(6) JEAN JACQUES ROUSSEAU,O Contrato Social, Princípios de Direito Político, tradução de Antônio de P. Machado, ed.Tecnoprint, pgs.43 a 50.

(7) JOHN LOCKE, Essays on the low of nature, Oxfiord-Clarendon. Ed. Leyden. 1954, apud, Maria Helena Diniz, Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, Saraiva, São Paulo, 1991; pg.36.

(8) A definição kantiana de direito é chamada "a máxima da coexistência", por Giorgio Del Vecchio, in Lições de Filosofia do Direito, op.cit., pg.137, apud, Ronaldo Poletti, op.cit., pg.156.

(9) GUIDO FASSÒ, Historia de la Filosofia del Derecho, tradução de José F. Horca, apud, Ronaldo Poletti, op. cit., pg.158.

(10) EUGÈNE FLEISCHMANN: La Philosophie Politique de Hegel, Paris Librairie Plon,1964, pg. 99, apud, Djacir Menezes, Tratado de Filosofia do direito, Atlas, São Paulo,1980, pg.123.

(11) MIGUEL REALE: op. cit., lo vol., pg.146.

* O autor éProfessor da Disciplina Introdução ao Estudo do Direito - Faculdade de Direito-UEPB - Delegado de Polícia Civil - SSP-PB.