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Movimentos sociais e práticas instituintes de direito :  perspectivas para a pesquisa sócio-jurídica no Brasil.


JOSÉ GERALDO DE SOUSA JÚNIOR.
Membro da Comissão de Especialistas de Ensino do Direito -
MEC/SESU e da Comissão de Juristas do Exame Nacional de
Cursos - MEC/INEP. Vice-Diretor e Coordenador de Pós-Graduação
da Faculdade de Direito, Universidade de Brasília. Coordenador
do Projeto "O Direito Achado na Rua", Universidade de Brasília.

1. O problema da pesquisa jurídica no limiar do século XXI.

Em estudo preparado para o 3o volume da Série "OAB - Ensino Jurídico: Novas Diretrizes Curriculares", procurei trabalhar, na perspectiva da reforma do ensino jurídico, ao final do séc. XX, o tema da pesquisa e da interdisciplinaridade.

O meu ponto de partida, naquele estudo, foi a afirmação de não ser possível estruturar um sistema de pesquisa e mesmo de ensino sem definição dum campo objetivo e de uma problemática.

Problematizar, insisto, significa a possibilidade de romper o pragmatismo decorrente do ensino tecnicista infenso à percepção da direção das correntes de transformações e dos protagonismos que as impulsionam, constituindo-se este processo, no tocante à pesquisa, o meio para a superação da distância que separa o conhecimento do Direito, de sua realidade social, política e moral, espécie de ponte sobre o futuro, através da qual transitem os elementos para a estruturação de novos modos de conhecer a realidade do Direito

Trata-se de um trabalho crítico e consciente apto a afastar o jurista das determinações das ideologias jurídicas, quebrar a unidade do mundo e do pensamento jurídico constituídos nestas ideologias. Romper, em suma, com a estrutura de um pensamento abstrato convertido em concepção jurídica do mundo, por isto, ideologia jurídica, inapto para captar a complexidade e as mutações das realidades sociais e políticas.

A pesquisa insere-se, pois, no processo de conhecimento do Direito enquanto exigência de identificar parâmetros para a compreensão da legitimidade epistemológica de novos conceitos e de ampliação crítica de novas categorias em condições de organizar uma prática de investigação na qual a disponibilidade dos artefatos científicos operacionais e de hipóteses de trabalho não venham a funcionar como substitutivos de uma visão global dos fenômenos pesquisados, ao risco de condicionar todo o procedimento de investigação e de predeterminar os seus resultados.

Por esta razão, fiz referência a Roberto Lyra Filho, quando este indica a necessidade de preocupação com a pesquisa, porquanto ela visa a uma definição de posicionamento: "o simples recorte do objeto de pesquisa pressupõe, queira ou não o cientista, um tipo de ontologia furtiva. Assim é que, por exemplo, quem parte com a persuasão de que o Direito é um sistema de normas estatais, destinadas a garantir a paz social ou a reforçar o interesse e a conveniência da classe dominante, nunca vai reconhecer, no trabalho de campo, um Direito praeter, supra ou contra legem e muito menos descobrir um verdadeiro e próprio Direito dos espoliados e oprimidos. Isto porque, de plano, já deu por ‘não-jurídico’ o que Ehrlich e outros, após ele, denominaram o ‘direito social’". Para Lyra Filho, em suma, a definição de posicionamento, assegura localizar a pesquisa no sistema que ela deve construir, ou seja, conhecer o "Direito, não como ordem estagnada, mas positivação, em luta, dos princípios libertadores, na totalidade social em movimento, onde o Direito, reino da libertação, tenha como limites, apenas, a própria liberdade".

A falta da problematização e de posicionamento, de um lado, gera o "saldo trágico" a que se refere José Eduardo Faria, em artigo no Jornal "O Estado de S. Paulo" (02/05/97, p. A-2), em balanço sobre a pesquisa jurídica no Brasil. Com efeito, Faria aponta, em sua condição de membro-assessor do CNPq na área Direito, o envelhecimento dos esquemas cognitivos do processo de ensino e de pesquisa em Direito, "pelo esgotamento de seus paradigmas. Por isso, ele se tornou incapaz de identificar e compreender a extrema heterogeneidade dos novos conflitos, a enorme complexidade técnica das novas normas, as interdependências cada vez mais presentes no funcionamento da economia, os valores, as demandas e as expectativas por ela geradas e a emergência de um sem-número de novas fontes de direito com a preeminência dos conglomerados transnacionais como atores internacionais".

De outro lado, provoca, tal como assinalam Luciano Oliveira e João Maurício Adeodato, em trabalho preparado para o Centro de Estudos Judiciários, do Conselho da Justiça Federal, em 1996 ("O Estado da Arte da Pesquisa Jurídica e Sócio-Jurídica no Brasil"), um panorama "menos de inexistência do que de descontinuidade", sugerindo um epílogo pessimista neste final de século para o estado da arte da pesquisa jurídica e sócio-jurídica no Brasil.

Nestas condições, pensando alternativas para a pesquisa do Direito no limiar do Século XXI, tenho em mente, a partir da sugestão de José Eduardo Faria no artigo referido, a necessidade de "definição de campos temáticos e dos problemas específicos passíveis de ser financiados com recursos públicos, estimulando, assim, os cursos jurídicos a promover as reformas que eles não foram capazes de realizar espontaneamente e a desenvolver marcos teóricos capazes de tornar viável a compreensão dos novos institutos jurídicos e das relações socioeconômicas que lhes deram origem e função".

A minha leitura, neste propósito, carregará o olhar dos movimentos sociais e suas práticas instituintes de direito.

2. Discursos sociais e seus significados.

O antropólogo Pierre Clastres, em seu livro "A Sociedade Contra o Estado", mostra que a lei encontra espaços inesperados para se inscrever, indicando uma relação entre lei, escrita e corpo como eixo essencial relativamente ao qual se ordena, na sua totalidade, a vida social e comunitária.

É certo que Clastres transporta a sua percepção para a dimensão antropológica em cuja análise se deteve, ou seja, o estudo das sociedades antigas e os ritos de iniciação que nelas, fazem do corpo o espaço que a sociedade designa "como único espaço propício a transportar o sinal de um tempo, a marca de uma passagem, o cumprimento de um destino", transformando o corpo do indivíduo em veículo de uma operação social de aprendizado, de identidade e de norma cultural.

Para Clastres, o ritual iniciático é uma pedagogia que vai do grupo ao indivíduo, da tribo aos jovens e por meio dele "a sociedade dita a sua lei aos seus membros, ela inscreve o texto da lei sobre a superfície dos corpos porque a ninguém é permitido esquecer a lei que funda a vida social da tribo".

Em suas considerações, Clastres evoca a passagem de Kafka em "A Colônia Penal", na qual o oficial explica ao viajante o funcionamento da "máquina de escrever a lei": "a nossa sentença não é severa. Gravamos simplesmente com a ajuda do ferro o parágrafo violado sobre a pele do culpado".

Aliás num belo vídeo produzido pelo Centro de Produção Cultural e Educativa - CPCE, da Universidade de Brasília, a UnB: "Pintura Corporal", interessante trabalho de pesquisa e de direção de Devair Montagner, o seu roteiro traz grafismos, desenhos, cores, pinturas corporais das culturas Yanomami de Demini (AM), Kayapó de Kriketum (PA) e Marubo (AM), revelando significados sociais e simbólicos, que justificam o sobretítulo do vídeo - "Uma Pele Social".

Penso, pois, tomando como referência a metáfora da "pele social", ser possível conceber a constituição de discursos sociais de normatividade para além dos lugares usuais e obrigatórios da jurisdição: o Estado, as classes sociais, os grupos de poder, revelando-se em seus significados rebeldes ao "discurso da arrogância" de que fala Barthes, sempre que de um lugar "autorizado" se reivindique o monopólio do dizer o direito.

Tenho em mente, ao assinalar a necessidade deste deslocamento de percepção, a advertência de Carlos Cárcova de que o direito, enquanto dimensão ontológica da normatividade social, deve ser pensado como "uma prática social específica que expressa e condensa os níveis de conflito social em uma formação histórica determinada". Mas esta prática, ele completa, "é uma prática discursiva no sentido que a língua atribui a esta expressão , isto é, no sentido de um processo social de produção de sentidos", processo conforme indica Enrique Marí, de "formação, decomposição e recomposição no qual intervém outros discursos que, diferentes por sua origem e função se entrecruzam".

3. Modos de conhecer ou a propósito de pensamentos inquietos.

A possibilidade de dar conta do especificamente jurídico neste processo, supõe uma atitude de desentranhamento. Isto é, a possibilidade de extrair dos discursos teóricos e técnicos elaborados sobre os ordenamentos, não só as concepções de mundo direta ou indiretamente neles pressupostas, como também de compreender, avalia Cárcova em balanço das teorias críticas do Direito, "a totalidade estruturada que os contém, ou seja, a totalidade social para o que é necessário constituir um saber multi e transdisciplinar, lugar de interseção de múltiplos conhecimentos: históricos, antropológicos, políticos, econômicos, psicoanalíticos, lingüísticos etc.".

Uma pequena nota de jornal publicada há poucos meses dava conta de um experimento feito por um cientista da Universidade de Harvard sugerindo que alguns organismos podem dirigir o curso de sua própria evolução e que as mutações genéticas consideradas eventualmente necessárias por eles podem ocorrer em poucas gerações.

O resultado do experimento traz fortes implicações sobre a Teoria da Evolução. Contrariamente ao que indica esta teoria, segundo a qual mutações genéticas ocorrem ao acaso e de forma alheia às determinações dos organismos e ao longo de milhares de anos, os testes conduzidos pelo experimento mostraram alterações dos genes em questão de horas ou dias, revelando, aparentemente, uma decisão dos organismos de realizar a mutação de que precisavam.

Não surpreendem mais estudos com este tipo de verificação, conduzindo à estruturação de um novo discurso científico livre das conseqüências da clássica distinção dicotômica entre ciências naturais e ciências sociais, sobretudo após a perda de substância das concepções mecanicistas da matéria e da natureza contrapostas aos conceitos de ser humano, cultura e sociedade. Falando a respeito de uma reimplicação entre estes conceitos e concepções, Boaventura de Sousa Santos designa a emergência de novos paradigmas revestidos de vocação holística, configurando um tipo de pensamento inquieto capaz de articular um conhecimento que se funda na superação de categorias óbvias e até então consideradas insubstituíveis. Por isso, ele diz, hoje é possível ir muito além da mecânica quântica, pois, enquanto esta introduziu a consciência no ato de conhecimento, temos agora de a introduzir no próprio objeto de conhecimento, abrindo espaço para teorias que incorporem à matéria conceitos de historicidade e de processo, de liberdade e de consciência, os quais pareciam ser atributos exclusivos do homem.

Como reflexão sobre as condições de possibilidade da ação humana projetada no mundo, um pensamento inquieto sabe, como diz Boaventura de Sousa Santos, que nenhuma forma de conhecimento é, em si mesma, racional; só a configuração de todas elas é racional e é, pois, necessário dialogar com outras formas de conhecimento, deixando-se penetrar por elas. Sabe, assim, que a ciência sozinha produz conhecimentos e desconhecimentos e que, sem este diálogo, não há como estabelecer modos possíveis de consideração da realidade e constituir processos de sínteses criadoras.

Enquanto participações que ensejem o conhecimento acerca de elementos da realidade, estas sínteses constituem o imaginário que organiza as várias expressões das atitudes humanas, capazes de orientar a sua ação e o sentido da vida, seja como técnica, como atitude filosófica, científica ou artística ou como experiência mística.

Esta é a base de uma cultura inquietante apta a transformar em experiência e vivência quotidianas os sinais de futuro inscritos nas práticas das ações humanas projetadas no mundo

Discernir o sentido e o significado destas práticas supõe um deslocamento do olhar cognoscente, que há de ser por sua vez um olhar inquieto acerca das imagens de síntese que buscam compreender o mundo, ao invés de manipulá-lo.

Pensamentos inquietos são fundamentalmente existenciais. Afinal, experimentar Deus ou colocar-se politicamente na História, representa o tipo de atitude capaz de operar sínteses de esclarecimento que rejeitem o monólogo da razão sobre as formas possíveis de conhecer e de compreender o mundo: o fazer, da atitude técnica; o explicar e compreender, da atitude científica: o fundamentar, da atitude filosófica; o intuir e mostrar, da atitude artística; crer, da atitude mística; o divertir-se, da atitude lúdica; lembrando aqui estas expressões indicadas por Roberto Lyra Filho.

Não é a Justiça a resultante de um diálogo que liga os Atos dos Apóstolos ao Manifesto Comunista de 1848?. Entre nós quem disso se apercebeu, em síntese político-jurídica evidente foi João Mangabeira: "a fórmula da Justiça não deve ser mais a que se resume em ‘dar a cada um o que é seu’. Aplicada em toda a sua inteireza, a velha norma é o símbolo da descaridade, num mundo de espoliadores e de espoliados. Porque se a Justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria e ao desgraçado a desgraça, que isso é o que é deles. A regra da Justiça deve ser: a cada qual segundo o seu trabalho, enquanto não se atinge o princípio de 'a cada um segundo a sua necessidade"'.

De outro modo, não podendo às vezes ultrapassar o disciplinado esforço de fundamentação próprio dos estudos lógicos sobre o enunciado dialético da contradição, pode o discurso artístico suprir o labor filosófico e num delírio declamatório dizer o indizível: "É sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar", na música de Gilberto Gil; ou no poema de Fernando Pessoa, aliás, Alberto Caieiro: " O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,/ Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia./".

Marx não havia ainda com O Capital analisado a estrutura econômica para, num certo modo de produção explicar a mais-valia e bem antes o Padre Vieira, artisticamente, a exibiu tal como está no Sermão XIV do Rosário: "Eles mandam e vós servis; eles dormem, e vós velais; eles descansam, e vós trabalhais; eles gozam o fruto de vosso trabalho, e o que vós colheis deles é um trabalho sobre outro. Não há trabalhos mais doces que o de vossas oficinas; mas toda essa doçura para quem é?. Sois como abelhas, de quem disse o poeta: 'Sic vos non vobis melificatis apes’ (assim como vós, mas não para vós, fabricais o mel abelhas)".

Quase 50 anos após a conferência de Sutherland lançando a tese do white collarcrime o debate chega a nossa consideração criminológica sob o impulso de uma delinqüência presidencial. Todavia, a declamação antecipadora dos versos inquietos de Chico Buarque e Francis Hime, cantava os desvarios de nossas elites entreguistas e predadoras: "Dormia/ A nossa pátria mãe tão distraída/ Sem perceber que era subtraída/ Em tenebrosas transações./".

De toda sorte, a reação social como alternativa analítica rompera com o discurso do positivismo criminológico fundado na determinação de fatores de propiciação de natureza bio-psíquica que havia naturalizado o delito e o desvio, identificando o indivíduo criminoso fora dos padrões de desenvolvimento normal como louco ou doente. Na formulação de Pinatel e sua teoria da personalidade delinquencial, o criminoso é visto como tal por ser portador de uma estrutura egocêntrica, lábil e afetivamente indiferente, sem perceber-se que tais fatores não são atributos naturais do indivíduo, como indicam claramente, os classificados de jornais recrutando altos executivos, exatamente por portarem tais atributos. Estes critérios, portanto, não designam, propriamente, nem o criminoso nem o homem de bem, mas ambos: são em suma, sociais. No rock dos Inimigos do Rei, por isso: " O criminoso produz crime/ O crime produz polícia/ Produz médico legista/ o crime produz jurista/ o crime produz.../".

Goffman descreveu pormenorizadamente o processo de estigmatização, caracterizando a sua funcionalidade, não apenas enquanto produz formas de classificação de indivíduos em agrupamentos manipuláveis, mas porque, ao produzir estereótipos, cria bodes expiatórios e lhes atribui papel sacrificial. As opiniões divididas sobre o massacre de 110 presidiários da Penitenciária de Carandiru ou sobre o evidente extermínio de meninos e meninas de rua não iludem a intuição de Chico Buarque, cuja música adverte sobre a banalização do mal: "E se definitivamente a sociedade só te tem desprezo e horror/ E mesmo nas galeras és nocivo, és um estorvo,/ és um tumor/ A lei fecha o livro, te pregam na cruz/ Depois chamam os urubus./".

4. Norma, normatividade e normalização.

Uma das principais conclusões extraídas do livro "A Escravidão Psiquiátrica" de Tomas Szasz, referindo-se a seus estudos na sociedade norte-americana, é a seguinte: nos Estados Unidos, hoje, mais pessoas são condenadas a internação psiquiátrica, sob o fundamento de que são perigosas para si mesmas e para o grupo, do que pessoas são condenadas a internação penal sob o mesmo fundamento, isto é, de que são perigosas para si mesmas e para o grupo.

De certo modo, com base nesta conclusão, pode alargar-se a afirmação do antropólogo Ralph Linton: "o direito foi um substitutivo prático da religião", para dizer-se: "a psiquiatria vem se tornando um substitutivo prático do direito".

Com efeito, ao buscar-se o substrato ontológico da "normalização", não há, a rigor, diferenças significativas entre a "normalização" religiosa, a "normalização" jurídica e a "normalização" psiquiátrica, a que foram submetidos, por exemplo, Galileu, Tiradentes, Sakarov, Ezra Pound, Reich e tantos outros. A Inquisição, o Tribunal Real Português, os Gulags ou os Pavilhões 7, que mediram o desvio ideológico, de conduta ou de mentalidade desses "desviantes", operaram a partir de um ponto de vista sobre o padrão de "normalidade", que logrou prevalecer sobre outros pontos de vista em determinado lugar e em determinado instante.

No Brasil, o "caso Galdino" ilustra e guarda correspondência paradigmática com os exemplos indicados. O camponês rebelde ao desalojamento autoritário imposto pelos megaprojetos energéticos e que levavam à desarticulação da base social da produção rural brasileira, resiste e, depois de indiciado pela Lei de Segurança Nacional, é, afinal, recolhido ao Manicômio do Juqueri, já que não era crível a motivação política de subversão ao regime vigente. Oito anos depois a Comissão Justiça e Paz de São Paulo localiza "o caso" e desmonta a rotina burocrática dos "laudos" renovados que confirmavam a inalterabilidade das condições que haviam justificado a internação. Não havia entretanto, afirmaram os membros da Comissão, nenhuma razão de "anormalidade" na conduta de quem simplesmente reagiu em defesa de seu espaço, de suas condições de trabalho e de seu modo de vida.

Não fora essa intervenção e a internação psiquiátrica conduzindo a pessoa para o interior da instituição que agora começa a ser negada, e a sua engrenagem produziria o aniquilamento da recusa política à existência do homem divergente.

De resto, as condições limites, a tortura praticada e legitimada como terapia (choque elétrico, isolamento, sedativos) e as penas perpétua ou de morte, conformam um sistema, o qual, como definiu Roberto Aguiar, cumpre uma função política: "uma questão de exercício de poderes e de controles necessários no sentido da urdidura das teias que exprimem as ideologias e os controles necessários para a sustentação de uma dada ordem ligada a interesses e a um imaginário ideológico".

Por isso Cooper tem razão quando diz que a sociedade "escolhe os seus loucos". Não se trata, conforme Basaglia advertia, de pensar a loucura dentro de uma lógica positivista, no sentido de concebê-la apenas como um produto social. A loucura pode até ser pensada como uma doença, ele diz, mas uma doença que é a expressão das contradições de um corpo que tem de ser compreendido como um corpo orgânico e social. A separação entre esses elementos produz comumente certos paradoxos que não são percebidos. O positivismo criminológico, por exemplo, esbarrou neste obstáculo ao se deparar com o desvio e constituí-lo objeto de seu afazer científico: escolher os seus loucos é, em certa medida, fabricar a loucura.

Este, aliás, é o drama de nossa sociedade. Saber e poder transitar nossas incomunicabilidades. Compreender que o social intercambia necessariamente o seu lado louco e o seu lado são. Cada um com sua margem. Desafiando padrões. Como disse Roberto Lyra Filho: "quando o sistema é injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais".

5. Ética e direitos humanos.

A partir da consideração do pluralismo jurídico e de um modelo de interlegalidades que nele se fundamenta, Boaventura de Sousa Santos aponta para o que designa porosidades de diferentes ordens jurídicas que obrigam a constantes transições e transgressões.

É neste contexto que o sociólogo português repõe o tema dos direitos humanos referidos à práticas sociais emancipatórias, nas quais as transgressões concretas são sempre, diz ele, produto de uma negociação e de um juízo político.

Para Boaventura, a reciprocidade é o critério geral de uma política democrática emancipatória, enquanto a forma e os meios de negociação deverão ser privilegiadamente os direitos humanos enquanto expressão avançada de lutas pela reciprocidade:

"Uma tal prática de direitos humanos é uma prática radical porque tem lugar nas diferentes configurações de legalidade e assume, portanto, a possibilidade de envolver práticas ilegais em qualquer dos direitos estruturais, incluindo o próprio direito estatal. É, pois, uma prática pós-reformista. Mas é também, de algum modo, uma prática pós-revolucionária, na medida em que privilegia a negociação em detrimento da ruptura e, quando recorre a esta última, constrói-a como micro-ruptura feita de momentos de legalidade e de ilegalidade num contexto prático concreto, limitado. A radicalidade da prática dos direitos humanos aqui proposta reside acima de tudo em não ter fim e, como tal, em conceber cada luta concreta como um fim em si mesmo. É uma prática micro-revolucionária. Uma prática contingente, tão contingente como os sujeitos individuais e coletivos que se mobilizam para ela a partir das comunidades interpretativas onde se aprende a aspiração de reciprocidade".

Note-se que Roberto Lyra Filho, na medida em que formulou a sua concepção de Direito, na abordagem de sua dialética social - "aquilo que ele é, enquanto vai sendo, nas transformações incessantes do seu conteúdo e forma de manifestação concreta dentro do mundo histórico e social" - também indicou como critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competitividade de ordenamentos, os direitos humanos.

Lyra Filho fala em direitos humanos, pois, enquanto síntese jurídica. Para ele, o processo social, a História, é um processo de libertação constante e dentro deste processo histórico, o aspecto jurídico representa a articulação dos princípios básicos da Justiça Social atualizada, segundo padrões de reorganização da liberdade que se desenvolvem nas lutas sociais do homem.

Nesta perspectiva diz Roberto Lyra Filho: "Justiça é Justiça Social, antes de tudo: é atualização dos princípios condutores, emergindo nas lutas sociais, para levar à criação duma sociedade, em que cessem a exploração e opressão do homem pelo homem; e o Direito não é mais, nem menos, do que a expressão daqueles princípios supremos, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade. Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. À injustiça, que um sistema institua e procure garantir, opõe-se o desmentido da Justiça Social conscientizada; às normas, em que aquele sistema verta os interesses de classes e grupos dominadores, opõem-se outras normas e instituições jurídicas, oriundas de classes e grupos dominados, e também vigem, e se propagam, e tentam substituir os padrões dominantes de convivência, impostos pelo controle social ilegítimo; isto é, tentam generalizar-se, rompendo os diques da opressão estrutural. As duas elaborações entrecruzam-se, atritam-se, acomodam-se momentaneamente e afinal chegam a novos momentos de ruptura, integrando e movimentando a dialética do Direito. Uma ordenação se nega para que outra a substitua no itinerário libertador. O Direito, em resumo, se apresenta como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formula os princípios supremos da Justiça Social que nelas se desvenda".

Vê-se, logo, nesta ordem de consideração, que a reposição do tema dos direitos humanos referidos ao contexto de práticas sociais emancipatórias, repõe., por sua vez, o problema da inafastável e incindível base ética de toda normatividade, não obstante a pretensão cientificista de separação entre Ética e Direito, conveniente a uma conjuntura de localização e de isolamento do poder político numa determinada instituição - o Estado e de fetichização de seu instrumento privilegiado de intervenção - o direito positivo estatal.

Numa recuperação histórica e filosófica de uma experiência então ainda irredutível ao arbitrário da separação entre Estado e Sociedade, entre Público e Privado, o que se poderia configurar como caracterização do campo ético, designava, perfeitamente, a identidade concreta entre eticidade e moralidade e direito.

Marilena Chauí registra bem esta identidade, partindo de uma constatação de ordem etimológica. Vale dizer, na sua dupla derivação, a palavra ethos significa, num aspecto, o caráter, a constituição interior, seja psíquica ou física, e as disposições interiores de um ser humano para a ação e para uma ação determinada, a ação virtuosa; noutro aspecto, significa o conjunto de costumes do grupo social, aquilo que vai corresponder em latim a mores, isto é aos costumes, porém não a qualquer costume, mas aos costumes enquanto costume de uma comunidade, que oferece a si mesma certos fins que considera bons.

Assim, na origem, a constituição do campo ético é, simultaneamente, a constituição da normatividade, sem que a dimensão subjetiva deste processo implique em isolar a moralidade enquanto consciência subjetiva da eticidade, enquanto moralidade coletiva.

É verdade que este caminho, aqui negado, foi sustentado com vigor filosófico e conseqüências jurídicas, na formulação kantiana da autonomia moral e da pura racionalidade de sua elaboração enunciativa do imperativo categórico abstrato.

Entretanto, como salienta Marilena Chauí, a ética como normatividade, ela também, não se realiza senão historicamente: "a ética não se realiza na solidão de um sujeito nem na solidão de alguns sujeitos, mas na intersubjetividade social, no mundo cultural e histórico. Ou seja, toda ética está enraizada num campo histórico-cultural com o qual ela nasce, ao qual ela responde e o qual ela pode transformar. Ela pode, através da própria ação dos sujeitos morais, transformar o universo de valores culturais herdados, postos pela sua própria ação.

Hegel é o filósofo que liga a ética à história e à política na medida em que o agir ético do homem precisa concretizar-se dentro de uma determinada sociedade política e de um momento histórico determinado, dentro dos quais a liberdade se daria uma existência concreta, organizando-se por meio das instituições, assinala Álvaro L. M. Valls.

Com efeito, conforme indica Bárbara Freitag, "a polaridade entre indivíduo e sociedade, a consciência moral subjetiva e a consciência moral objetiva é retomada na obra de Hegel sob o ângulo da dialética entre moralidade e eticidade. Na filosofia do Direito, Hegel lembra a origem comum dos dois termos, atribuindo-lhes, contudo, um significado lógico distinto, denotando diferenças importantes na elaboração da questão da moralidade. A moralidade hegeliana é uma figura do espírito que inclui a consciência moral subjetiva, mas não é redutível a ela. A eticidade é uma figura do espírito, que leva em conta a moralidade coletiva, objetivada em instituições sociais, sem esgotar-se nela. Esta dialética entre moralidade e eticidade tenta incluir na reflexão dois aspectos, o do comportamento da ação moral do sujeito, por um lado, e o da sociedade - o comportamento moral dos atores inseridos em contextos sociais globais - por outro lado. Hegel, com efeito, insere na concepção de moralidade a idéia de uma consciência moral subjetiva, que sabe da existência de um todo social objetivado, que constitui a condição material de sua realização. Assim como a eticidade, enquanto moralidade institucionalizada nas formas sociais da família, da sociedade civil, do Estado, sabe da existência e da necessidade de atuação, no seu interior, de consciências morais subjetivas, singularizadas em indivíduos concretos".

Hegel, assim como antes Platão e Aristóteles operam na questão ética em perspectiva política. Em Hegel, se se pudesse falar em um ideal ético, diz Valls, este seria o de uma vida livre dentro de um Estado livre, que preservasse os direitos dos homens e lhes cobrasse seus deveres, onde a consciência moral e as leis do direito não estivessem nem superadas e nem em contradição.

Assim, para Hegel, a noção de liberdade é consetânea da noção de eticidade e de direito, de modo que a liberdade precisa organizar-se na sociedade. "Hegel deixa claro - diz Bárbara Freitag - que o ponto de vista moral do sujeito, com sua ação e seu julgamento, não faz sentido fora da sociedade, e esta, por sua vez, precisa ser regida por princípios éticos, normas de ação validas para todos e conscientizadas e respeitadas por cada um. O Estado ou a sociedade civil não teriam existência própria se não fossem mantidos e renovados, em sua existência ética, por sujeitos dotados de liberdade de ação, moralmente conscientes da responsabilidade que essa liberdade lhes impõe e que reconhecem como válidas as leis gerais".

Portanto, segundo Valls, à crítica de que, no seu projeto o processo supera o individual e esvazia a dimensão ética, Hegel responderia: "supera-se dialeticamente a moral, para entrar no terreno sólido e real da vida ética (sittlichkeit), concretizada em instituições (supra-individuais) como a família, a sociedade civil e o Estado, dimensões que não podem ser ignoradas por nenhuma ética que pretenda ser concreta".

Há, assim, na elaboração hegeliana, uma reivindicação à experiência de sujeitos capazes de agir e de refletir sobre a sua ação, no aprendizado da transformação da moralidade em eticidade. Daí dizer Valls, nesta perspectiva, "que o homem não é o que apenas é, pois ele precisa tornar-se em homem, realizando em sua vida a síntese das contradições que o constituem inicialmente".

6. A experiência constituinte como construção social da cidadania.

Aristóteles ao afirmar ser o homem um animal político, menos que atribuir uma distinção de racionalidade entre o animal homem e os outros animais, estivesse mesmo indicando isto que ficou assinalado como o processo de tornar-se homem.

Vale dizer, na afirmação aristotélica talvez pudesse estar presente a consideração de que, efetivamente, o homem se constitui homem, na experiência concreta de sua atuação na polis.

Daí porque, para Aristóteles, o escravo não era homem, alienado, pois, desta condição, como decorrência da natureza das coisas, apenas uma "ferramenta falante" ou utensílio vocalis, na confirmação de Cícero.

Por isto se diz que os direitos humanos não se confundem com as declarações que pretendem contê-los, com as idéias filosóficas que se propõem fundamentá-los, com os valores a que eles se referem ou mesmo com as instituições nas quais se busca representá-los. Os direitos humanos são as lutas sociais concretas da experiência de humanização. São, em síntese, o ensaio de positivação da liberdade conscientizada e conquistada no processo de criação das sociedades, na trajetória emancipatória do homem.

São, na História do Brasil, para particularizar, as lutas abolicionistas, num país já então constitucionalizado, no paradigma de um homem abstrato igual e livre, porém, numa sociedade, todavia escravista, na qual o escravo é, por conseguinte, não-homem, mercadoria sujeita ao uso, fruição e abuso.

Como se recorda, foi necessária a resolução papal, expressa na Bula de Paulo III, em 1537, para determinar "que esses mesmos índios, na sua qualidade de verdadeiros homens" e, ainda assim, provocar o esclarecimento contido na Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil, de 1663, no sentido de que "da resolução da dúvida sentenciada pelo Sumo Pastor da Igreja, que passou em coisa julgada consta que são eles verdadeiros indivíduos da espécie humana, e verdadeiros homens, como nós, capazes dos sacramentos da Santa Igreja, livres por natureza, e senhores de seus bens e ações".

Para o índio, ainda agora, a cidadania oscila entre intenções e compromissos, entre o genocídio e as exigências de uma sociedade real de homens concretos que a realizem, superando as dúvidas contemporâneas acerca de sua condição de gente.

Em 1980 o então Tribunal Federal de Recursos, julgando habeas corpus em favor do cacique Mário Juruna para garantir-lhe o direito de participação no Tribunal Russel de Assuntos Indígenas, instalado em Roterdãn, recolocou a questão neste voto do ministro Washinton Bolivar de Brito: "Nenhuma Nação tem o direito de impedir que os seus filhos dela se ausentem ou retornem livremente e isso também foi dito da Tribuna, relembrando passagem da Declaração dos Direitos do Homem. Haveria alguma dúvida de que o silvícola é um homem? Evidentemente que não. E não havendo esta dúvida sendo também certo que a Nação Brasileira aderiu à Carta de São Francisco, onde estão consignados tais direitos, não se poderia impedir a ausência do homem brasileiro, seja ele silvícola ou não".

A recente polêmica em torno da edição de novo decreto do executivo acerca do processo de demarcação de terras indígenas reabre o exercício político tocado por esta dúvida. Num depoimento de um "jagunço" recolhido pelo jornal "Porantim", do Conselho Indigenista Missionário, ele diz, a certa altura do relato de suas memórias: "Atirei nele (num índio), quando cheguei perto, vi que chorava. Parecia gente!". Na consciência do matador de aluguel a humanidade do índio é questão tão irresolvida quanto o era para portugueses e espanhóis, às vésperas da negociação do Tratado de Madrid e do destino dos Sete Povos das Missões, como o é ainda agora, a luz dos debates acerca de seu futuro étnico.

A frase do "jagunço" lembra outra, também de pistoleiro. Este o que assassinou o padre Josimo Tavares, em Imperatriz, no Maranhão, a mando de latifundiários: "Eu não matei um padre, eu matei um comunista!". Há, sem dúvida, estreita ligação entre a consciência disponível deste matador singular e a mentalidade ainda renitente à prestação de contas sobre o aniquilamento das oposições como se vê no debate de hoje relativo ao alcance da lei de reconhecimento de responsabilidade pelo desaparecimento e mortes de adversários políticos do regime de 1964.

A demissão é contemporânea da insensatez e, sub-reptícia, reaparece sempre embora desvelada diligentemente, ao embate das contradições e muitas vezes de forma surreal. No Estado Novo o advogado Sobral Pinto precisou valer-se da lei de proteção aos animais para por fim às torturas infligidas a Prestes. Nos anos 90, em Brasília, um juiz precisou "aplicar" esta mesma lei para garantir o "direito de moradia" à demanda de sem-teto, enquanto este mesmo direito encontra resistência ao seu reconhecimento no espaço da Conferência de Istambul, o Habitat 2.

Mas não se trata aqui, de repassar a história sSocial brasileira para estabelecer os percalços deste itinerário. Basta, para ilustrar, demarcar a experiência constituinte recente como roteiro da construção social da cidadania no Brasil.

O momento constituinte que se instaurou no Brasil abriu perspectivas avançadas para a reorganização de forças sociais nunca inteiramente contidas nos esquemas espoliativos e opressores de suas elites. Com efeito, a experiência da luta pela construção da cidadania que nele se materializou, atualizou o seu sentido libertário e demarcou no espaço constituinte o lugar do povo como sujeito histórico emergente no contexto das lutas sociais.

O momento constituinte, numa conjuntura de crise, responde invariavelmente a estratégias de legitimação. Mas, a crença de que o processo constituinte organiza a mediação política necessária, numa tal conjuntura, não conduz à possibilidade de construção e ordenação de uma sociedade solidária e homogênea, sem contradições e sem antagonismos, como, aliás, o demonstra o processo de desconstitucionalização corrente. O que se tem é a possibilidade de determinação dos instrumentos de superação das estruturas de exploração e opressão, num aprendizado de negociações, entendimentos, composição de interesses divergentes e antagônicos.

Neste aprendizado, a reorganização de forças sociais já não contidas nos esquemas tradicionais das elites, logrou trazer para o processo constituinte, por meio do debate que ele proporcionou, reivindicações claras e específicas que aspiravam transformar-se em direitos e liberdades básicos, ao mesmo tempo que instrumentos de organização, representação e participação ativa na estrutura econômico-social e política da sociedade.

Se a transição é, conjunturalmente, uma mediação entre o autoritarismo e a democracia, a possibilidade de associações livres favorece as condições efetivas de ruptura na esfera do político liberando o exercício de um poder contido na ação de outros setores sociais. Instaurando novos espaços ideológicos e novos instrumentos políticos de participação, as chamadas organizações populares de base, expandem, como prática histórica, a dimensão democrática da construção social de uma cidadania contemporânea, representativa da intervenção consciente de novos sujeitos sociais neste processo. E, em arranjo constituinte, materializam, não apenas a experiência acumulada de organização dos movimentos sociais na direção de um papel determinante ativo e soberano de seu próprio destino. Mas, no processo de busca de reconhecimento de suas formações contra-institucionais e contraculturais, classes e grupos emergentes, por meio de suas formas organizativas, alcançam novas quotas de emancipação, instrumentalizando-se política e juridicamente para instituir o seu projeto histórico de organização social.

A construção democrática é, pois, o imaginário social que se formulou como novidade e busca de autonomia na Constituição, que ao menos quanto à cidadania e à dignidade da pessoa humana, começa a consolidar-se no processo a dimensão coletiva e solidária para a determinação de seu espaço civil.

Por isso se diz que a democracia designa o sentido de permanente ampliação dos espaços de emergência de novas liberdades e novos direitos, como obra inconclusa. Na alusão à fórmula Estado democrático de direito, pois, o que se deve ter em mente é assinalar os estágios de superações necessárias para acentuar na etapa corrente a exigência de novas concepções de Justiça capazes de as segurar, através do exercício da democracia, a criação permanente de direitos novos no processo de reinstituição contínua da sociedade.

Nesta medida, quando se coloca a questão de saber o que a Nação esperava da Constituinte em relação ao tema da cidadania, não há como resolvê-la senão avaliando as condições pelas quais se postula a construção de uma sociedade alternativa que seja a expressão da legitimidade recuperada através do roteiro histórico das lutas sociais do homem pela sua condição de cidadania. Lembrando a afirmação do filósofo Castoriadis, se "uma sociedade justa não é uma sociedade que adotou leis justas de uma vez por todas, mas sim uma sociedade onde a questão da justiça permanece constantemente aberta", a capacidade de reivindicar direitos orienta, nestas condições, a construção social da cidadania, enquanto as classes e grupos sociais espoliados e oprimidos definem a sua representação, a sua participação e instauram na sociedade a dimensão geral da liberdade, como expressão da liberdade fundamental de todo ser humano, isto é, a possibilidade de superação da exploração e da opressão do homem pelo homem. Em outras palavras, uma sociedade que possa ser a resultante da prática democrática que abre espaços de expressão, contestação e negociação no âmbito da política e do poder e que seja capaz de incorporar permanentemente processos sociais novos desenvolvidos na experiência da cidadania.

A Constituição, afinal, promulgada, diferentemente de conjunturas anteriores, não resultou mais uma peça da retórica tradicional, camuflando sob a aparência de direitos o elenco diferido a programas "realistas", adiando reivindicações sociais acumuladas. Por esta razão, a luta tremenda de novo travada, neste processo agora designado reformista, cujo sentido político evidente é o de desconstitucionalizar processos sociais novos e direitos inéditos conquistados.

O certo é que o fio condutor da participação popular começou a divisar um projeto de organização de direitos e liberdades fundamentais, de instrumentos e de mecanismos eficazes para a garantia desses direitos e liberdades básicos e, sobretudo, a constituir os novos sujeitos autores autônomos deste processo.

7. Movimentos sociais e práticas instituintes de direito.

Uma das mais importantes constatações derivadas dos estudos acerca dos chamados novos movimentos sociais foi a percepção, primeiramente elaborada pela literatura sociológica, de que o conjunto das formas de mobilização e organização das classes populares e de suas configurações constituídas nesses movimentos, instauravam, efetivamente, práticas políticas novas, em condições de abrir espaços sociais inéditos e de revelar novos atores na cena política capazes de criar direitos.

Num livro recente, cujo título é "Quando Novos Personagens Entraram em Cena", Eder Sader aponta para a dimensão instituinte dos espaços sociais instaurados por esses movimentos indicando a capacidade constitutiva de direitos decorrentes dos processos sociais novos que eles passaram a desenvolver.

O fato é que a irrupção dos movimentos operários e populares, sobretudo a partir dos anos 70, rompendo em ação coletiva o isolamento determinado por uma ordem autoritária que restringia a mobilização das organizações sociais, fez emergir uma nova sociabilidade, com a marca da autonomia que passou a caracterizar a ação dos sujeitos sociais assim constituídos.

Vera da Silva Telles refere-se a esta emergência dizendo: "hoje, descobrem-se os trabalhadores como sujeitos autônomos, dotados de impulso próprio de movimentação, sujeitos de práticas cujo sentido político e dinamismo não são derivados dos espaços cedidos pelo Estado e cujas reivindicações não são o reflexo automático e necessário das condições objetivas mas passam por formas de solidariedade e de sociabilidades coladas na vida cotidiana".

Caracterizados a partir de suas ações sociais, estes novos movimentos sociais, vistos como indicadores da emergência de novas identidades coletivas, isto é, coletividades políticas, sujeitos coletivos, puderam elaborar um quadro de significações culturais de suas próprias experiências, ou seja, do modo como vivenciam suas relações, identificam interesses, elaboram suas identidades e afirmam direitos.

A análise sociológica pôde precisar que a emergência do sujeito coletivo pode operar um processo pelo qual a carência social contida na reivindicação dos movimentos, é por eles percebida como negação de um direito, o que provoca uma luta para conquistá-lo. De acordo com Eder Sader, "a consciência de seus direitos consiste exatamente em encarar as privações da vida privada como injustiças no lugar de repetições naturais do cotidiano. E justamente a revolução de expectativas produzidas esteve na busca de uma valorização da dignidade, não mais no estrito cumprimento de seus papéis tradicionais, mas sim na participação coletiva numa luta contra o que consideram as injustiças de que eram vítimas. E, ao valorizarem a sua participação na luta por seus direitos, constituíram um movimento social contraposto ao clientelismo característico das relações tradicionais entre os agentes políticos e as camadas subalternas".

A questão que se coloca, a partir da experiência da ação coletiva dos novos sujeitos sociais, é a da designação jurídica destas práticas sociais, em configuração determinada pelos processos sociais e os direitos novos que elas enunciam.

É certo que o impasse entre positivismo e jusnaturalismo, na debate estéril entre estas duas ideologias jurídicas, pouco contribui para a análise desta questão, irredutível seja à concepção normativista, seja à extrapolação metafísica do ideal de justiça.

A categoria "sujeito de direito", por exemplo, tal como assinala Alícia Ruiz, é uma construção "histórica própria de uma forma peculiar do social e da política de uma certa organização do simbólico e de um peculiar imaginário social".

É, portanto, na regra material do agir, como pressuposto da disponibilidade criadora do direito pelas associações livres, mesmo contra o Estado e ainda que "contra legem" que se vai encontrar esta designação, enquanto correspondência a uma concepção de direito entendido como modelo de legítima organização social da liberdade.

Patrick Pharo fala de "civismo ordinário" para referir às formas de sociabilidade constituídas em relações de reciprocidade de um cotidiano que adestra a convivência e legitima padrões sociais livremente aceitos. Este civismo ordinário conforma a cidadania como possibilidade de operar o salto dos interesses aos direitos.

Marilena Chauí ilustrou este salto: "a cidadania ativa à a que é capaz de fazer o salto do interesse ao direito, que é capaz portanto de colocar no social a existência de um sujeito novo, de um sujeito que se caracteriza pela sua autoposição como sujeito de direitos, que cria esses direitos e no movimento da criação desses direitos exige que eles sejam declarados, cuja declaração abra o reconhecimento recíproco. O espaço da cidadania ativa portanto, à o da criação dos direitos, da garantia desses direitos e da intervenção, da participação direta no espaço da decisão política".

O que será, pois, neste processo, entender o direito como modelo de legítima organização social da liberdade?. É perceber, conforme indica Roberto Lyra Filho, que "o direito se faz no processo histórico de libertação enquanto desvenda precisamente os impedimentos da liberdade não-lesiva aos demais. Nasce na rua, no clamor dos espoliados e oprimidos e sua filtragem nas normas costumeiras e legais tanto pode gerar produtos autênticos (isto é, atendendo ao ponto atual mais avançado de conscientização dos melhores padrões de liberdade em convivência) quanto produtos falsificados (isto é, a negação do direito do próprio veículo de sua efetivação, que assim se torna um organismo canceroso, como as leis que ainda por aí representam a chancela da iniquidade, a pretexto da consagração do direito)".

A rua aí, evidentemente, é o espaço público, o lugar do acontecimento, do protesto, da formação de novas sociabilidades e do estabelecimento de reconhecimentos recíprocos na ação autônoma da cidadania (autônomos: que se dão a si mesmos o direito). Por isto mesmo Marshall Berman fala da rua como espaço de vivência que, ao ser reivindicada para a vida humana "transforma a multidão de solitários urbanos em povo".

Mas a rua é concomitantemente, lugar simbólico, a impregnar o imaginário da antropologia e da literatura, em arranjos sutis de natureza explicativa dos acontecimentos. Assim, em Roberto da Matta que faz a articulação dialética entre a "casa" e a "rua" para esclarecer comportamentos culturais. Assim também na poesia, sempre em antecipação intuitiva de seu significado para a ação da cidadania e da realização dos direitos. Veja-se Castro Alves (" O Povo ao Poder") e Cassiano Ricardo ("Sala de Espera"), aqui retomando o entrecruzamento de discursos com que se abriu e com que começa-se a fechar este texto. Do primeiro, são conhecidos os versos: "A praça! A praça é do povo/ Como o céu do condor/ É o antro onde a liberdade/ Cria águias em seu calor./ Senhor! . pois quereis a praça?/ Desgraçada a populaça/ Só tem a rua de seu ... /". Do segundo, não são menos expressivos estes versos:" ... Mas eu prefiro é a rua./ A rua em seu sentido usual de 'lá fora'./ Em seu oceano que é ter bocas e pés para exigir e para caminhar/ A rua onde todos se reúnem num só ninguém colectivo./ Rua do homem como deve ser/ transeunte, republicano, universal./ onde cada um de nós é um pouco mais dos outros/ do que de si mesmo./ Rua da reivindicação social, onde mora/ o Acontecimento ...

"O Direito Achado na Rua", expressão criada por Roberto Lyra Filho, título que designa atualmente uma linha de pesquisa e um curso organizado na Universidade de Brasília, quer, exatamente, ser expressão deste propósito de compreensão do processo aqui descrito, enquanto reflexão sobre a atuação jurídica dos novos sujeitos coletivos e das experiências por eles desenvolvidas de criação de direito e assim, como modelo atualizado de investigação: 1) determinar o espaço político no qual se desenvolvem as práticas sociais que enunciam direitos ainda que contra legem; 2) definir a natureza jurídica do sujeito coletivo capaz de elaborar um projeto político de transformação social e elaborar a sua representação teórica como sujeito coletivo de direito; 3) enquadrar os dados derivados destas práticas sociais criadoras de direitos e estabelecer novas categorias jurídicas.

retirado de: http://www.oab.org.br/LCEJ9.HTM