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"NÃO VIVEMOS EM UM ESTADO DE DIREITO"

HENRIQUE MOTA FEITOSA
ADVOGADO OAB/PB N. 9973

 

Indignado, soube pela televisão que três cidadãos brasileiros de São Paulo foram mantidos presos por mais de quarenta dias, apenas por possuírem nomes semelhantes aos de bandidos foragidos da Polícia. Seus nomes não me recordo agora, mas os elogios às suas vidas honradas e caráteres pétreos partiram de todos os lados: familiares, vizinhos, amigos e patrões os defenderam. Todos homens honestos, todos eram trabalhadores, mas apenas gente humilde.
Embora reconhecidos os enganos, mesmo assim, graças a burocracia da Polícia ou da Justiça, os três permaneceram detidos por mais trinta dias. A situação reflete o despreparo do aparelho policial aliado a letargia dos nossos órgãos judiciais produzindo uma lesão irreparável na vida desses cidadãos e um flagrante desrespeito à Lei, uma vez que o Código de Processo Penal, repetidas vezes, determina a cautelosa identificação do indiciado para fins de qualificação no inquérito policial. Há inclusive, um capítulo no CPP adstrito unicamente ao reconhecimento de pessoas e coisas, além do processo datiloscópico, considerado o meio mais seguro de identificação, o qual não foi realizado em momento algum.
A própria Constituição Federal, em seu art. 5º, inc. LVIII, redaciona que "o civilmente identificado não será submetido a identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei." Portanto para o civilmente identificado, os exames científico-identificadores somente ocorreriam no caso de dúvida a respeito da identidade da pessoa, pois do contrário não teria sentido a disposição constitucional, a qual novamente foi puerilmente negligenciada pelos agentes públicos.
Tal é o absurdo em que se encerra a situação em epígrafe que somente se justificaria num regime autoritário, em que as leis não são respeitadas e os direitos humanos esmagados, mas não se compreende que ainda continue nem regime democrático que lutamos para implantar em nosso país.
A indignação destes homens simples, homens do povo, aumenta quando pensam no turbilhão de intempéries que suas vidas se transformara. Sim, porque mesmo que inocentes, passam a carregar, pendurado ao peito, o ícone de criminoso ( pseudo-criminosos sem sombra de dúvida ) exibidos pela imprensa como condenados, quando ainda não foram sequer denunciados ou julgados. Quem limpará da opinião pública aquela imagem maculada de criminosos ?( Cuida do teu nome , porque ele te acompanha, riqueza mais preciosa que mil fortunas de ouro – ECLESIÁSTICO, 41, 12 ) Seus depoimentos para a televisão eram insuportavelmente dolorosos.
Diante da situação-limite que toma forma aos nossos olhos, lembro-me de uma frase do poeta adolescente Arthur Rimbaud : "O insuportável é que nada é insuportável."
Sim, porque, como eles três, todos nós brasileiros estamos sujeitos a esse tipo de tortura e violência, de crime enfim, contra a nossa cidadania e liberdade.
Sobretudo os mais humildes, os mais pobres, como são os três homens citados, por não terem ninguém que os ajude, não possuem influência política, nem dinheiro para pagar um bom advogado criminalista ou manter recursos e mais recursos com fins meramente protelatórios esperando alcançar a prescrição e com ela o fim dos problemas com a Justiça. E a impunidade partindo, agora, das autoridades públicas com seus mandos e desmandos, vai deixando tudo como está, pois parece não existir mesmo algo realmente insuportável, como disse o precoce e genial poeta francês do fim do século passado.
Analisando toda essa situação como distante observador me fez lembrar de um romance de PITIGRILLI, escrito na década de 40, porque pensava qual seria a reação de cada um de nós cidadãos ao ser preso por engano e fosse obrigado a cumprir pena. O romance reflete sobre como seria possível compensar um homem por ser preso injustamente e passar os melhores anos de sua vida sem liberdade.
Qual o valor e o preço da liberdade de criação e do amor roubados de uma vida por um erro judiciário?
A história começa com um cidadão romano sendo posto em liberdade vinte anos depois de sua prisão, uma vez detido o assassino confesso do crime que lhe fora atribuído. Para compensar o erro, a Justiça Pretoriana de Roma lhe oferece dinheiro, bastante dinheiro, mas ele não aceita. Depois sugerem um emprego público dos mais importantes, mas ele não se interessa. Põem a sua disposição uma vaga em caráter vitalício no rico e lauto Senado Romano, mesmo assim ele a descarta. Insistem com ricas propriedades, escravos e regalias ascendentes, mas ele dispensa qualquer tipo de propriedade. E acaba deixando os Juízes e administradores do Estado em perplexo pasmo,
além de numa bela sinuca de bico.
O inconformado cidadão romano afirmou apenas o seguinte: queria ter o direito de praticar um assassinato cuja pena fosse apenas de vinte anos de prisão – já cumprida por ele. Não é ótimo?
Não me lembro de mais nada do livro, inclusive qual foi a resposta das autoridades a personagem injustiçado e nem como PITIGRILLI dá fim a história.
Ocorre-me uma dúvida caso o médio cidadão brasileiro estivesse na pele do protagonista do livro de PITIGRILLI, e se a história do romance se passar no Brasil. Quem eles poderiam matar depois de já ter cumprido uma vida toda de encarceramento injusto neste cárcere de injustiças e misérias no qual vive a maioria da população brasileira?
Além da monstruosidade jurídica que tudo isso representa, hoje felizmente proibida pela Constituição Federal de 1988 ( no Capítulo dos Direitos e Deveres individuais e Coletivos, quando responsabiliza o Estado "a pagar indenização ao condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença." ), uma das mais avançadas do mundo na questão do sistemas de liberdades individuais, há que se considerar cruciais aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais nas tarefas dos profissionais desse setor.
Lamentavelmente, essa consciência legal não é levada a sério e tornada prática pelo cumprimento da lei. Não vivemos em um estado de direito. A chamada Carta Magna, além de não ser cumprida e não regulamentada em mais de cem princípios, é modificada ilegal e ilegitimamente, sendo ajustada, sem cerimônia, aos interesses conjunturais de cada governante.
O erro judiciário ignorado e simplesmente olvidado fere o direito a integridade moral, respaldada pela Carta Política Federal, em seu art. 5º, incs. V e X. Doutrinadores do assunto afirmam com veemência ser a integridade moral tão importante para o ser humano, tornando-o um bem indenizável, ela e seus componentes são atributos sem os quais a pessoa fica reduzida a uma condição animal de pequena significação.
Mas de que adianta falar sobre erro judiciário quando as vítimas são pessoas menos afortunadas e que recebem pouco destaque pela grande imprensa. Lembro-me agora do formalismo inflexível e infantil de KANT quanto ao Estado visto apenas sob o ângulo jurídico ao concebê-lo como a reunião de uma multidão de homens vivendo sob as leis do Direito. Benécies mil seria se tais leis fossem cumpridas por estes mesmos homens que as elaboraram. Honrando-as.
Realmente não vivemos em um Estado de Direito.
O prejuízo acarretado com tal omissão ao cumprimento dos mandamentos legais é grave para a nossa vida como nação, que reverte em desprestígio frente a comunidade internacional mostrando que nossas autoridades não são capazes de cuidar de seus iguais, floresce um quadro de referência que infelicita a nossa vida coletiva e leva a rica nação-continente brasileira à beira da ruína social e ratifica a total ineficácia das políticas públicas de cuidado aos direitos imprescindíveis ao ser humano.


Finis coronat opus.

A vero domino actor.


Campina Grande, Fevereiro de 2000.

 

Texto retirado de http://www.factum.com.br/