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Considerações gerais sobre a influência da escravidão na sociedade.

Joaquim Nabuco

Ao penetrar nas sociedades modernas destruiu-lhe a escravidão a maior parte de seus fundamentos morais e alterou as noções mais precisas de seu código, substituindo um estado, comparativamente e para todas, de progresso pelo mais obstinado regresso até fazê-las encontrar a velha civilização de que sairão através de chamas purificadoras. Na verdade, somente quem olha para essa instituição, cegado pela paixão ou pela ignorância, pode não ver como ela degradou vários povos modernos, a ponto de torná-los paralelos a povos corrompidos, que passaram. Não é somente o adiantamento material que ela entorpece com o trabalho servil e é também o moral, é dizendo moral eu compreendo o adiantamento da civilização, a saber, das artes, das ciências, das letras, dos costumes, dos governos, dos povos: o progresso enfim.

 Cada força social, e as forças sociais são as idéias, sofreu com a escravidão um abalo profundo. O laço moral dos cidadãos afrouxou-se, quebrado o laço moral dos homens. Os princípios, também como as idéias, foram violados por uma aplicação exclusiva, que importava o privilegio de uma raça: as leis, que nada mais são do que o encadeamento lógico dos princípios, foram totalmente esquecidas, e nessas sociedades, sem idéias, sem princípios, sem leis, o maior desequilíbrio manifestou-se entre as várias camadas, e a ordem, a segurança, a riqueza, a produção, as atividades públicas, ficaram assentes sobre a areia, numa inclinação perigosa.

 Isso importa dizer que as leis, que regem o desenvolvimento progressivo dos estados, não podem ser violadas impunemente. Dá-se com elas o que se dá com as leis da matéria, Desobedecer a elas é sujeitar-se a sua reação, é a reação é, às vezes tão enérgica que destrói a vida. Há um verdadeiro equilíbrio para os estados: quando porém a iniqüidade não se limita ao papel fatal que a liberdade humana lhe faz na terra, e quer arvorar no cetro, pode ter um reinado, mas esse será passageiro, porque o corpo há de voltar ao equilíbrio do qual não pode sair impunemente, Essa é a garantia feliz das sociedades e dos indivíduos: na obra da humanidade, o bem é que há de avultar: o crime é uma nuvem que passa, que solta tormentos, mas que uma vez exausta deixa o ar mais livre: as más instituições desaparecendo, pela força reativa das instituições boas, cedem a estas mais terreno e dão-lhes mais prestígio: a reação do bem chama-se regeneração.

 Dizemos isto para mostrar que, pela mesma natureza das leis sociais, a escravidão há de acabar porque as viola: é o antagonismo o que a mata. Se há uma força inelutável é a da consciência da humanidade. Esta esclarece-se com o tempo, com a experiência, é o ponto central e de um círculo cujos raios são diversos e que se chamam um ciência, outro verdade, outro virtude; é a resultante de todos os progressos: pois bem, essa consciência tem para seus arestos uma sanção necessária. E que fato há tão complexo que a um tempo fira essa consciência em tantos de seus íntimos recônditos? Que fato está para com ela em uma contradição tão palpável? Que crime há que tenha maior circunferência? Não temos na humanidade, a inquisição excetuada, nenhum crime tão complexo, mas aquele, se era mais trágico, era mais digno: procedia em nome do fanatismo que e menos humilhante para o algoz, que procedia em nome do interesse, e dava a morte o que é menos humilhante para a vítima do que sujeitá-la ao cativeiro. O que vamos ver são os pontos em que a escravidão fere a consciência da humanidade, e esta será a primeira parte deste livro.

 Logo ao penetrar esse crime complexo entre nós gerou direitos contra a moral, direitos civis contra naturais. Destruiu assim a alegoria de Bentham dos círculos concêntricos, fazendo dos direitos que ele supunha o microcosmo da moral o antagonista desta, opondo-se-lhe de tal forma que o direito ficou imoral, mas sempre com a força coercitiva, Assim veremos que direitos naturais a escravidão viola.

Da moral a escravidão fez duas morais; uma para cada classe, Jano bifronte que olha para a opressão sorrindo, para os oprimidos colérico a mesma imagem da religião, como a escravidão tornou, espécie de fetchismo católico. Assim veremos como ela prostituiu a religião e a moral.

 Do trabalho, o mais nobre dos esforços, faz ela a mais rebaixada das ocupações; a atividade que trazia em seu próprio arbítrio o caráter da liberdade, tornou-se, na sociedade, servil, como se a sociedade fosse outra coisa mais que o meio do desenvolvimento das atividades livres. Pelo trabalho, que ficou sem estímulo e sem escrúpulo, atacou a escravidão a produção, a riqueza, a segurança nacionais: assim veremos como a escravidão rebaixou o trabalho.

 O fundamento moral da propriedade foi destruído, fazendo-se sair o direito da lei e não o da natureza humana: não reconhecendo o direito absoluto da propriedade, porque se esse direito fosse absoluto seria inalienável, imprescritível, universal, e os escravos o criam e não haveria escravidão, autorizou a esta os progressos de uma seita que raciocina como ele: o comunismo. Assim veremos como a escravidão ataca o direito da propriedade.

 A virtude perde-se ao contato dessa Instituição: ela é a escola do crime, envenena o coração do senhor e do escravo, muda a caridade em palavra vã, desnatura a lei do mérito: é a sentina de todos os vícios: assim veremos como a escravidão ataca a base da sociedade livre: os costumes.

 A família, como o direito à família, não é violado nela, como a mesma família não é ultrajada e vilipendiada a escravidão ataca-a porque não a permite, porque a relaxa, porque a dissolve: ataca a família na dignidade da mãe porque a açoita, na honra da mãe porque a viola, no amor da mãe porque apaga-o, na vida da mãe porque a rouba, ataca a família no pai que não reconhece, no filho, que faz na infância já o domínio de um senhor, porque o furta, porque o separa, porque o incita contra a mãe: na filha porque a desonram: ataca enfim a família na família toda, que é um ajuntamento, um concubinato quando não é um incesto. Assim veremos como a escravidão ataca a família.

 Depois entraremos no terreno prático, na questão abolicionista. Por ora pintamos a traços largos o painel da escravidão. Queremos que ele esteja diante de todos palpitante, vivo. Vamos meter a mão na grande ferida de nossa pátria: vamos detalhá-la em suas origens, em seu diagnóstico, depois veremos como ela há de ser curada. É uma instituição que aderiu a nosso país desde que ele acordou para a vida: foi quase contemporânea do seu descobrimento; foi negada nas raízes por gerações inteiras: o egoísmo, o interesse, a ambição, o cinismo de três séculos atentaram-na, fecundaram-na; em cada torrão de nosso solo caiu uma semente sua, cada fonte de nossa produção saiu de um grande manancial o rendimento nacional, como o rendimento público são sua seiva. Ela, com uma força de absorção desmesurada, invadiu a civilização de nosso país, e pôs-se-lhe em frente como obstáculo: as artes pereceram ao seu influxo, as letras, as ciências, nobres profissões de homens livres, se acharam perante si senhores e escravos; os costumes, pelo fato da transição necessária das raças que coabitam em um mesmo lar, tornaram-se uma mescla de selvageria e de educação, dominada pelo medo e pelo servilismo. Os oprimidos vingaram-se dos opressores, sem o saberem, envenenando-os com as exalações de seus hábitos e de seus vícios. A religião católica, única por assim dizer do pais, transigiu com o fato, e não se perguntou mais no confessionário, se, sendo roubar e matar contra os mandamentos do Sinai, não o seria também ter escravos sob si e nunca se o disse do púlpito. Os conventos foram, com o andar dos tempos os maiores proprietários de homens e os tinham para a summa glória de Deus. A religião também perdeu no seu vergonhoso compromisso e degenerou numa grosseira criação em que as imagens do culto católico não eram senão o aperfeiçoamento artístico dos fetiches africanos. Assim tudo invadiu a escravidão, manchando a tudo.

 Chegou a nossa independência: afirmar perante o mundo a soberania do povo era negar a escravidão; se o Direito à liberdade política vem da natureza, primeiro vem o Direito à liberdade pessoal.

 Bem pelo contrário, quando se podia melhor extinguir o cancro e repudiar no benefício do inventário as servidões herdadas da metrópole, abriu-se os braços à emigração africana, como se dizia, isto é, ao tráfico dos negros. Todos os crimes, que a imaginação pode conceber, desde o lançamento ao mar de centenas de homens vivos até a morte, no porão, por asfixia, de outros tantos desgraçados, tudo cai como uma responsabilidade enorme de sangue sobre nossa cabeça.

 Eis por que hoje quando queremos livrar-nos de um abalo desse mal, não o podemos.

 Ele tem a idade de nosso país: nascemos com ele, vivemos dele. Foi como um vírus que se embebeu longos séculos em nosso sangue.

 Toda a nossa existência social é alimentada por esse crime: crescemos sobre ele, é a base de nossa sociedade. Nossa fortuna donde vem? De nossa produção escrava. Suprimi hoje a escravidão, tereis suprimido o país. Eis como a lei moral reage. Nossa liberdade fez-nos escolher o caminho do crime, seguimo-lo: hoje que queremos dele sair estamos a ele pregados. Está esboçado o quadro geral das afinidades de cada elo de nossa sociedade com a escravidão: ela tudo corrompeu, a começar pelo povo a que roubou as virtudes dos povos que trabalham: a diligência, a economia, a caridade, o patriotismo, o desprezo da morte, o amor da liberdade. Essa é a síntese. Agora vão começar os detalhes, e ver-se-á melhor essa túnica de Nessus, que nos tendo coberto durante séculos, não possamos talvez despir sem que ela leve consigo alem de membros despedaçados de nosso campo a nossa fortuna, a nossa civilização, a nossa vida.

retirado de: http://www.propesq.ufpe.br/conic97/cfch/RES-40015.html