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Desafios e descaminhos do Direito Alternativo

J.J. CALMON PASSOS - Professor da Faculdade de Direito da UFBA.

Lexicalmente, alternativo é tudo que se diz, faz ou sucede com alternância, ou seja, com possibilidade de haver escolha entre coisas por aquela que mais convenha. Alternatividade e poder de opção convivem, pois, necessariamente. Cuidando-se de relação intersubjetiva, a alternatividade implicará sempre o poder de um dos sujeitos optar por algo que pode impor ou exigir do outro.
Se o qualificativo usado por alguns juristas para designar o Direito que amam não tem o propósito de despistar ou gerar ambigüidades, Direito alternativo só pode ser aquele suscetível de ser escolhido, em face de outro ou outros Direitos disponíveis, para ser imposto aos litigantes em termos de decisão. Essa conclusão é aceitável? Apreciemo-la criticamente.

Sabendo o que significa alternativo, tentemos entender o significado do Direito. Para muitos, se não para todos, ele se associa ao que é justo. Como não existe um justo absoluto, pronto para ser usado ou prescrito como remédio, o justo é sempre aquilo que assim é tido por quem pode revesti-lo do caráter de decisão. Se o justo descomporta a contraprova empírica, ele será apenas fundamentável e ninguém se atribui a tarefa de estar fundamentando uma injustiça. Estamos diante de uma petição de princípio - a decisão deve ser justa e o justo só pode ser o que se contém na decisão. Em outras palavras: todo Direito é uma forma de realização da justiça com razoável segurança e previsibilidade. Em relação à justiça, portanto o Direito não pode ser alternativo, porque falar-se de um justo alternativo é algo difícil de ser aceito e insuscetível de conceituar-se. Se duas soluções são justas, por que exorcizar uma delas? Se apenas uma é possível, não há alternatividade aceitável.

A par disso, devemos ter presente que o Direito só se justifica pela necessidade de se imprimir certa ordem à convivência social, mediante solução firme e segura dos conflitos que na convivência humana se instituírem, caso não tenham logrado auto-composição ou composição pela intermediação de instituições externas ao espaço do poder político institucionalizado. Procurar atingir esse objetivo sem estabelecer um mínimo de segurança e previsibilidade de como serão compostos judicialmente os conflitos será, antes de se trabalhar em favor da justiça e da definição de uma ordem social, institucionalizar-se o arbítrio e a desordem social, agravando-se a álea inerente às relações humanas, em termos de conseqüências futuras.
Finalmente, a esta altura dos tempos, ninguém ousará dizer que o projeto civilizatório do homem prescinde da eliminação de todo arbítrio ou, enquanto isso não se fizer possível, de sua redução no máximo possível. Assim sendo, todo pensamento que favorece o arbítrio é pensamento anti-emancipatório, reacionário, retrógrado, indesejável. Mesmo que o lobo esteja camuflado sob a pele de um cordeiro. No momento em que as pessoas investidas socialmente no poder de dirimir autoritativamente conflitos puderem fazê-lo discricionária ou arbitrariamente, teremos deixado de progredir e estaremos iniciado um trágico retorno ao primitivo. Será o princípio do fim, ou o "fim da picada", para fazer mais populista nosso pensamento.

A par disso, só absoluta má fé admitirá seja o Direito algo pronto e acabado, precedentemente posto à disposição dos homens para dele se utilizarem, como o fazem com o ar que respiram. Até mesmo uma criança, ao transpor sua fase ingênua e mítica, percebe que o Direito é bem parecido com Branca de Neve e Pequeno Polegar - uma invenção bem intencionada dos homens. Assim, afirmar-se alternativo o Direito significará autorizar-se o operador a produzi-lo segundo suas opções, quando decide o caso concreto, sem qualquer vinculação com parâmetros que foram postos, com precedência, para delimitar a área de sua atuação. E haja arbítrio!

Por outro lado, só um inocente útil acredita, ou um mal intencionado proclama que o Direito prescinde do poder político para se tornar efetivo, solucionar conflitos, contribuir para a efetividade da ordem social. O Direito se fenomenaliza como ato de poder, e nenhum poder foi jamais exercido em desfavor de quem o detém. Consequentemente, todo ato de aplicação do Direito é um ato de poder e privilegia, na medida em que isso se fizer possível e necessário, interesses hegemônicos. Nem hoje, nem no passado, em qualquer momento da história e em qualquer povo, jamais determinado segmento social dispôs de poder institucionalizado e o exercitou em benefício de outros segmentos. Direito e dominação coabitam, até porque é da essência do Direito desigualar as pessoas, atribuindo sempre a alguém certa vantagem, em detrimento da outra. Mesmo que tal assimetria se efetive em nome da justiça, do interesse público, dos supremos valores da humanidade e outras expressões de igual brilho. O mais grave é que jamais se ouviu falar de alguém, com poder de decisão, que tenha considerado injusto ou contrário a valores e interesses supremos o que decidiu. Pelo contrário, a tendência é criminalizar a rebeldia, quando o decisor não resolve dar uma de ferrabrás, como vem acontecendo entre nós. Por outro lado, sabemos todos que até hoje nenhum juiz a que pespegamos o qualificativo de injusto foi vítima de sua iniquidade. Nem morrem nem adoecem os que reputamos injustos. Muitos até fazem carreiras metóricas. Nem se ouviu falar que o julgador injusto tenha se consumido de remorsos, infernizado por sua consciência que, sob a forma do Grilo Falante, lhe ficou a sussurar, ao pé do ouvido, estar às portas da danação eterna. Até porque toda decisão é injusta para quem foi por ela desfavorecido. E decisão absolutamente justa, esta gema preciosa, capaz de deixar fascinados os mortais, é o que todos procuramos e até hoje ainda ninguém encontrou.

Elementar, portanto, meu caro Watson, como diria Scherlock Holmes, que falar em Direito alternativo só pode significar uma de duas coisas. Eu, juiz, tenho a alternativa de aplicar o Direito produzido pelos processos constitucionalmente autorizados, expresso na lei, ou aplicar o Direito que pessoalmente entendo deveria ter sido produzido para solucionar o caso concreto e não o foi. Desse dilema não podemos escapar. Alguns juristas alternativos usam metáforas - Direito insurgente, Direito socialmente produzido, Direito emancipador, Direito dos oprimidos, etc. Como retórica, no pior sentido do termo, são palavras sonoras e carregadas de provocação. Como ferramentas de trabalho, nada valem. Valem muito, entretanto, como instrumentos a serviço de projetos de hipertrofia do arbítrio, delírios ideológicos, sem esquecer os pecadilhos da vaidade, da petulância e da sabedoria paranóica dos que se julgam iluminados. Tenho grande medo de todos os Messias que ainda não foram crucificados e ressuscitaram ao terceiro dia.

Há outra maneira de entender o que seja Direito alternativo. A alternatividade, aqui, se põe em confronto com o modelo clássico de produção do Direito da democracia representativa, traduzindo-se na procura de outros processos de produção além daquele que ela institucionalizou e predomina em nossos dias. Aqui, o problema deixa de ser jurídico para se tornar político. Repensar o processo legislativo e as instituições por ele responsáveis. Repensar a própria democracia. Nesse sentido, palmas!, palmas! e mais palmas! ao Direito alternativo. Que na verdade está sendo muito mal batizado. Não há Direito alternativo. Ou há Direito previamente posto em termos de proporcionar segurança às relações sociais, ou não há Direito, sim o puro e desenfreado arbítrio. Esse Direito posto, todavia, pode ter várias formas de ser produzido, inclusive aproximando-se mais sua produção daqueles que dele serão destinatários. Inaceitável, entretanto, será dispensar esses processos alternativos de produção do Direito de se submeterem aos postulados básicos do que se pretende deva ser um Estado de Direito Democrático.

Enquanto o Direito alternativo for Direito de iluminados ou de emancipadores de povos bem pagos, vitalícios e seguros na vida, ou dos que fazem do Direito plataforma de acesso a cargos políticos, ou dos que julgam mais fascinante o discurso jurídico, que dispensa estudo e reflexão, ao cansaço e fadiga do labor tecnicamente disciplinado, enquanto ele for essa coisa pegajosa, eu o maldigo, denuncio e anatematizo e estarei sempre na primeira linha de resistência. Não quero voltar a ser servo de quem quer que seja, mesmo que de um ilustre integrante do Poder Judiciário. Até porque tenho plena consciência de ser impossível fazer revoluções com sabor de chocolate.

Artigo retirado da internet: http:www.trfi.gov.br/Enfoque Jurídico