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O manifesto fora do Manifesto.

Leandro Galastri 

Tanta coisa já foi dita e escrita a respeito do "Manifesto Comunista" neste ano de seu sesquicentenário, e por tão aquilatados oradores e escritores, que torna-se uma tarefa praticamente impossível discorrer a respeito do famigerado panfleto de maneira original ou satisfatória que seja. Por isso, proponho uma discussão que se atém não apenas na obra em si, mas também a um texto que serviu de apoio à sua elaboração, e a um outro, contemporâneo, do psicanalista Roberto Freire. O primeiro foi escrito por Engels no final de outubro de 1847 e chama-se "Princípios do Comunismo". De maneira altamente didática (um traço muito mais presente em Engels do que em Marx), foi redigido na forma de perguntas e respostas e destinava-se ao programa da Liga dos Comunistas. O segundo, um livro denominado "Utopia e Paixão", foi escrito pelo professor Freire no final da última década de oitenta e traz contribuições de cunho notadamente anarquista.

A idéia a partir da qual pretendo dar forma a brevíssimas considerações é a que se refere ao fim último do comunismo preconizado por Marx e Engels, e que está presente de forma bem clara tanto no Manifesto quanto no citado texto de Engels, qual seja a abolição definitiva do Estado.

Freire faz interessantes observações concernentes às três esferas de poder existentes na sociedade. Seriam elas as esferas familiar, estatal e religiosa. "É na busca da segurança que se estabelece o poder". O indivíduo é constantemente apresentado à necessidade de se colocar sob o domínio de alguém ou algo, em troca de segurança. Assim é que primeiro deve submeter-se ao poder do pai, em troca de proteção contra as hostilidades do meio. Em seguida, deve colocar-se sob o jugo do Estado, que fornecerá suas garantias civis. Acima do Estado está Deus, o poder supremo ao qual todos devem subserviência pela garantia de tranqüilidade após a morte e mesmo de ajuda contra as agruras terrenas.

"A família treina o indivíduo para a aceitação do poder do Estado". A frase é de Roberto Freire, mas poderia bem ser de Marx ou Engels. Mas qual seria a solução concreta apresentada pelos autores do Manifesto? Esta obra coloca a questão da família, em particular na sociedade burguesa, de maneira clara:

"Abolição da família! Até os mais radicais ficam indignados com essa infame intenção dos comunistas.

Sobre que fundamentos repousa a família atual, a família burguesa? Sobre o capital, sobre o lucro privado. A família plenamente desenvolvida existe apenas para a burguesia; mas encontra seu complemento na ausência forçada de família entre os proletários e na prostituição pública."

"(...) Mas dizeis que abolimos as mais sublimes relações ao substituirmos a educação doméstica pela educação social.

E vossa educação, não é ela também determinada pela sociedade? Não é determinada pelas relações sociais nas quais educais vossos filhos, pela ingerência mais ou menos direta ou indireta da sociedade através das escolas, etc? Os comunistas não inventaram a influência da sociedade sobre a educação; procuram apenas transformar o seu caráter, arrancando a educação da influência da classe dominante.

A fraseologia burguesa sobre a família e a educação, sobre os afetuosos vínculos entre crianças e pais, torna-se tanto mais repugnante quanto mais a grande indústria rompe todos os laços familiares dos proletários e transforma suas crianças em simples artigos de comércio e em simples instrumentos de trabalho."

De todo modo, não fica evidente qual a posição dos autores a respeito de uma resolução eficaz para iniciar mudanças radicais na estrutura da célula familiar de uma nova sociedade. Não no Manifesto.

No final do capítulo "Proletários e Comunistas", existe a elaboração de dez medidas de cunho econômico e social que deverão ser adotadas pelos trabalhadores assim que conquistarem o poder, com vistas a "revolucionar todo o modo de produção". São extraídas e adaptadas a partir do texto de Engels, "Princípios do Comunismo", onde se encontram em número de doze. E é neste último que se propõe, de maneira sutil, mas como ponto fundamental, a ferramenta da educação pública para o início da reformulação das estruturas da família burguesa em particular e da instituição "família" de maneira geral. Façamos a comparação entre os dois textos, onde o item que trata do assunto aparece como o décimo, no Manifesto, e como o oitavo, no "Princípios do Comunismo".

No Manifesto: "Educação pública e gratuita de todas as crianças. Eliminação do trabalho das crianças nas fábricas em sua forma atual. Combinação da educação com a produção material, etc."

No "Princípios...": "Educação de todas as crianças a partir do instante em que possam prescindir dos cuidados maternos, em estabelecimentos nacionais e a cargo do Estado. Educação conjugada com o trabalho fabril."

"A partir do instante em que possam prescindir dos cuidados maternos" significa, no caso, mais do que ir para o jardim de infância assim que não estiver mais sendo amamentado. Significa inserir a pequena mulher e o pequeno homem num meio educacional que os mantenham separados dos pais tempo suficiente para serem menos idolatrados como indivíduos especiais e mais conscientizados de que são uma importante parte de uma mais importante coletividade. Desde pequenos, então, aprendendo que os interesses particulares devem esperar diante dos interesses públicos.

Talvez o Estado não possa desaparecer sem levar consigo as categorias mentais que implicam as idéias tradicionais de família. O parentesco, da forma convencional e hierarquizada como o conhecemos, funciona como legitimador inconsciente do poder do Estado. E o faz não apenas na sua existência social, mas também como estruturas mentais. E estas estruturas, pela profundidade do solo onde estão arraigadas, serão sempre o maior desafio para qualquer governo de trabalhadores que se pretenda autenticamente revolucionário.

retirado de http://www.geocities.com/Athens/Parthenon/8457/manifesto_fora_do_manifesto.htm