Weber, Gramsci e o estatuto da política
Leonardo Valles Bento
Sumário
1. Considerações Preliminares
2. Weber: a visão de mundo
3. O maniqueismo weberiano: fato e
valor
4. Weber e o estatuto da atividade
política
5. Gramsci: a visão de mundo
6. Gramsci e o estatuto da atividade
política
7. Considerações Finais
8. Referências Bibliográficas
1. Considerações Preliminares
Como não deve ter passado
despercebido a qualquer espírito atento e observador de seu ambiente, a situação
histórica atual é marcada, para dizer o menos, por uma certa instabilidade teórica, por
uma angustiante sensação de "beira do abismo". Com efeito, desde a derrocada
dos regimes socialistas reais, um certo clima de "eu não disse?" paira no ar em
favor do mercado capitalista. E as coisas atingiram um tal grau de temeridade e
dissolução, que não falta quem proclame que com a superação (?) do marxismo no
século XX, a história nos escreve sua última página. Trata-se, sem dúvida, de uma
afirmação um bocado peremptória, como de forma perspicaz adverte o prof. Edmundo Lima
de Arruda Jr., se o pensamento marxista está realmente ultrapassado, a questão que nos
vem à mente é: ultrapassado pelo que? De fato, já Boaventura de Souza Santos nos
chamava a atenção para o fato de que o pensamento de Karl Marx pode ser colocado em dois
planos gnoseologicamente distintos, o plano da crítica, e o da solução em favor do
socialismo . Se deste último bem pouca coisa pode ser salva, a análise crítica marxista
acerca dos mecanismos de exploração capitalista ainda não conhece refutação cabal, o
que significa que boa parte de suas categorias explicativas podem ser resgatadas.
Daí a enorme atualidade em se
estudar o pensamento de Antônio Gramsci, em virtude de lucidez e brilho de sua obra,
escapando ao lugar-comum teórico da ortodoxia da época. Com efeito, seus trabalhos
relativos às noções de sociedade civil,
intelectuais e hegemonia permitiu
ao marxismo um amplo desenvolvimento de suas possibilidades teóricas. A originalidade de
sua perspectiva tornou-o objeto de numerosas interpretações e desenvolvimentos, cujo
retrospecto não teremos oportunidade de elaborar nesse momento, antes, nosso objetivo
consiste num exame de cunho mais analítico de suas idéias, com vistas a resgatarmos o
que delas pode ser útil nessa época de relativa crise de referenciais.
Max Weber, por seu turno, tem
sido não poucas vezes revisitado . Com efeito, o pai da sociologia compreensiva revela
sua atualidade seja quando analisa os caracteres do Estado contemporâneo, e do seu
corolário específico que é a burocracia, seja quando abraça a problemática do método
e das relações entre fato e valor. Também com relação a ele multiplicam-se as
interpretações, o que não é de se estranhar em se tratando de uma obra complexa,
paradoxal, sutil e plena de aspectos contraditórios, havendo até que afirme que o autor
de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo teria sido excessivamente marxista
(!) .
Por essa forma, autorizamo-nos
também a interpretá-los a ambos e apontar suas eventuais convergências e
discrepâncias, não atrás de uma síntese eclética simplista, porém na tentativa de
colher alguns elementos conceituais que nos permitam repensar o direito e a política na
atualidade, cujas instituições se interpenetram de forma constante e indissolúvel.
O interesse por essa
correlação, convém dizê-lo, surgiu a partir dos estudos desenvolvidos pelo Programa
Especial de Treinamento PET de Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina, acerca dos pensamentos de Weber e Gramsci durante o segundo semestre de 1996,
sob a orientação do professor Edmundo Lima de Arruda Jr., que nos forneceu elementos
para visualizarmos a direção em que tal correlação seria possível.
2. Weber: a visão de mundo
Quem quer que se proponha a analisar
atentamente a vasta obra de Max Weber será tomado por uma mesma impressão: a completa
dispersão intelectual, a falta de unidade, de sistematização, e a total ausência de um
núcleo central de preocupação do autor. Essa dispersão, entretanto, nada tem a ver com
vagueza ou imprecisão de conceitos ou reflexões. Em verdade, ninguém mais do que ele se
preocupou com a perfeita precisão dos termos que utilizava, seu alcance e sentido, assim
como poucos souberam remanejar suas categorias com tanta habilidade. A paixão com que se
dedicou aos problemas do método, a fim de evitar as superficialidades e as confusões,
sobretudo reducionismos de qualquer ordem, é prova inequívoca de que não é esse o
caso. Antes, o caráter fragmentário da obra weberiana encontra explicação na sua
própria visão de mundo, que tentaremos explicitar.
Weber parte do pressuposto
intuitivo de que a realidade é infinitamente complexa ao nosso entendimento. Complexidade
que se reveste de um duplo aspecto: por um lado, extensivamente, no sentido de que jamais
poderemos julgar que nossos estudos esgotaram o fenômeno em questão, ou seja, pretender
extrair de uma teoria ou conceito a realidade, porquanto pode ser esta sempre visualizada
de uma perspectiva inteiramente nova; por outro lado, intensivamente, no sentido de que
nunca exauriremos sequer a menor parcela do real, nem mesmo de uma única perspectiva.
Portanto, embora Max Weber recusasse conscientemente a sistematização de seu pensamento,
não era avesso a ela por princípio; pelo contrário, acreditava que a unidade e a
ordenação da pesquisa só poderiam ser essenciais para dar-lhe consistência e
inteligibilidade. Todavia, o que não admitia era a jactância de um sistema de pensamento
que se pretendesse global e espelho da realidade empírica. Conhecia bem demais as
vicissitudes históricas e a rica e meticulosa cadeia causal dos fenômenos que nela tomam
parte para se sentir atraído pela idéia de reduzi-la a um sistema fechado, monolítico,
que não se permitisse completar. Tal construção, por trás da imponência e majestade
que procura aparentar, só poderia lhe parecer dogmática, pueril, e coisa de iniciantes.
A lucidez e o brilho de seu pensamento lhe permitiu compreender a verdadeira missão da
ciência: "...toda obra científica acabada não tem outro sentido senão
o de fazer surgir novas indagações: ela pede, portanto, que seja
ultrapassada e envelheça" . Esse aspecto da visão de mundo weberiana é
importante para o nosso propósito e a ela cabe fazer ainda mais algumas considerações.
Vimos que a natureza
fragmentária da obra de Weber é condicionada diretamente pelo caráter igualmente
fragmentário do mundo empírico tal como ele o concebia. Com efeito, o real, na sua
concepção, constitui um mosaico infinitamente rico de aspectos ou fatores, que se
combinam das mais diversas maneiras para engendrar cada fenômeno. A dupla complexidade
que procuramos acima esboçar uma noção significa que, por mais densa que seja nossa
teia de conceitos, a distância entre a teoria e o fato que ela visa a explicar é e será
sempre infinita em termos lógicos, ou seja, o nosso estudo, por mais aprofundado que
seja, será sempre pobre e superficial diante da realidade, a qual contém sempre mais
elementos do que podemos apreender. Aqui é necessário captar uma conclusão de
importância capital: se não nos é possível elaborar uma reflexão acerca do mundo
empírico que substitua o fenômeno em sua incomensurável riqueza de aspectos não raro
conflitantes, isso implica que nos vemos obrigados invariavelmente a selecionar alguns, e
precisamente aqueles que consideramos mais culturalmente relevantes para nosso estudo,
tendo por base a nossa própria relação com os valores. Essa afirmação tem
conseqüências de largo alcance. Voltaremos a essa questão mais adiante.
Desse modo, é a partir dessa
desanimadora situação em que está imerso o pesquisador, que Weber desenvolve o seu
método do tipo ideal. Consiste esse método na análise (decomposição) do fenômeno ora
estudado, tanto quanto possível, em seus elementos constituintes, e procedendo ao exame
de cada um isolada e unilateralmente. Com efeito, sendo o objeto de estudo o resultado de
uma combinação algo "vetorial" de diversas variáveis, é
"dissecando-as" cada uma separadamente que se poderá compor um quadro
homogêneo de inteligibilidade em torno dele, haja vista ser impossível determinar
cientificamente, ou melhor dizendo, quantificar com exatidão a influência de cada uma no
desencadeamento global do fenômeno.
Convém dar ênfase aqui à
crítica que a metodologia weberiana carrega intrinsecamente ao historicismo em todas as
suas formas, por sua tendência imanente a criar sistemas fechados, consistindo mais em
doutrinas do que propriamente em ciência . Weber recusava definitivamente toda e qualquer
filosofia da história, isto é,
toda concepção que pretendesse
deduzir do estudo da história um significado a ela imanente assim como leis que regessem
o seu desenvolvimento rumo a uma sociedade que conjugasse todas as virtudes. O
historicismo, de uma forma geral, admite de bom grado a existência de forças históricas
que determinam de forma inexorável o devir das civilizações, contra o qual nada se lhe
poderia opor. De posse, pois, do conhecimento dessas leis e, conseqüentemente, do futuro
que se anunciaria à humanidade, os historicistas taxavam as ideologias de
"progressistas" ou "reacionárias" .
É bem sabida a veemência com
que Weber atacou tais inconseqüências e superficialidades. A ciência não é afeita à
profecias, e qualquer tentativa de predizer o futuro do gênero humano atribuindo-lhe
caráter inevitável não pode passar de um "simulacro" de ciência. Entretanto,
é evidente que as concepções historicistas se preocupavam muito mais em transformar o
mundo do que em compreendê-lo efetivamente (assim afirmou Marx), ou seja, antes com o
"dever ser" que com o "ser". Contudo, ninguém foi mais radical que
Max Weber ao distinguir os dois planos; o conhecer e o agir, não obstante sejam
reciprocamente complementares, envolvem estados de espírito diferentes, cada qual com
significação e problemática que lhe são próprios. Mas tudo isso nos conduz a nosso
próximo ponto, qual seja os limites que Weber impõe entre fato e valor, ciência e
política.
3. O maniqueismo weberiano: fato e valor
A questão dos valores, a
influência destes na pesquisa científica, assim como a relação desta última com a
política, constitui um tema crucial da obra de Max Weber, e é a ele que tornaremos
nossas atenções nesse momento.
Friedrich Nietzsche, em Além do
bem e do mal afirma, no estilo hiperbólico que lhe é peculiar, que "nós somos,
até a medula e desde o começo habituados a mentir" (§ 192). À
sensibilidade psicológica de Nietzsche não poderia passar despercebido o lado obscuro de
toda pretensão objetiva, não podia deixar de sorrir ironicamente em face da jactância
positivista que então dominava o espírito científico, o qual se dispunha a descrever o
real "tal como ele é". Ingenuidade que também impressionou e irritou o sábio
Weber que não se cansou de denunciar as frivolidades das teorias que ele chamava de
doutrinas "emanatistas" .
Suscitamos de passagem que em
sendo a realidade empírica muito mais rica de detalhes do que podemos apreender
intelectualmente, somo obrigados a selecionar alguns aspectos dessa realidade, e
selecionamos precisamente aqueles que nos saltam aos olhos como os mais relevantes
culturalmente face os objetivos da pesquisa. Ora, o critério mediante o qual reduzimos a
complexidade do real aos níveis do inteligível e operamos tal ordem de seleções
sustenta-se em nossa própria escala subjetiva de valores. Com efeito, todos nós
possuímos um determinado paradigma valorativo, à base do qual submetemos a nossa
análise os mais variados objetos. Tal escala de
valores é essencial, porquanto
sem ela não teríamos como atribuir significação aos fenômenos estudados, tampouco
compreendê-lo, e nenhum conhecimento seria possível. Todavia, essa mesma escala
subjetiva de valores, enquanto paradigma, acaba por "filtrar", por assim dizer,
os dados obtidos, captando aqueles que encontram significado e relevância em nossa
relação com os valores. Os demais elementos são por nós reputados irrelevantes, ou
não os compreendemos, tendo-os por irracionais ou ininteligíveis, ou simplesmente não
os percebemos.
Por conseguinte, toda
objetividade e toda neutralidade na ciência esbarra nessa dificuldade absolutamente
insuperável: a impregnação pelos valores do sujeito cognoscente.
Consciente dessa dificuldade,
Weber percebeu que o jeito era encará-la com dignidade. Em cada análise de qualquer
fenômeno histórico, ao atribuir-lhe sentido e significação, tinha sempre a prudência
de mencionar a escala de valores em que se situava. Era lúcido o bastante para não
julgar as ações históricas confundindo as diversas ordens de valores. Se desejamos
compreender que significado assumiu um determinado evento para uma determinada sociedade,
devemos avaliá-lo em relação aos valores que esta sociedade cultivava como primordiais.
Procedendo dessa forma, Weber não se permitia reduzir as transformações históricas a
um único sistema de significação; pelo contrário, cada evento se deixa compreender de
várias maneiras, por cada sociedade situada espacial e temporalmente, conforme os pontos
de vista em que cada uma se situa em relação com os seus respectivos valores, sendo que
cada perspectiva pode ser contraposta às outras como igualmente válida. Não é raro
constatar quão monstruosas inconseqüências e quão monstruosos equívocos surgem quando
esta noção não se encontra suficientemente clara.
Por mais paradoxal que possa
parecer, portanto, o passado não é, aos olhos da ciência, algo acabado, mas, isso sim,
um constante e reiterado processo de interpretação, no qual somos obrigados a salientar
determinados aspectos em detrimento de outros, a assumir uma determinada perspectiva; e
jamais saímos impunes dessa condição: "somos habituados a mentir".
Todas as nossas concepções de
mundo são, pois, atravessadas de alto a baixo pelos valores que escolhemos.
"Escolhemos", ou seja, os valores não são passíveis de objetivação, pelo
que se deduz que os mesmos se encontram adstritos à esfera da vontade, não tocando à
ciência a tarefa de estabelecer quais os corretos e quais os enganosos. Aqui chegamos a
um ponto chave do pensamento weberiano, a saber: a distinção entre o conhecer e o agir,
e o politeísmo de valores.
A questão pode ser colocada da
seguinte maneira: qual a função da ciência? Quais são os seus limites? Weber atribui
à ciência um caráter instrumental, no sentido de que a ela cabe a análise dos meios;
os fins escapam a sua jurisdição. Cabe apenas aos homens e às paixões que impulsionam
as suas vontades decidir a que dedicarão e utilizarão os conhecimentos proporcionados
pela ciência, sendo esta incompetente para julgá-los. A célebre máxima de Nietzsche, o
velho Deus morreu, encontra aqui todo o seu significado. A modernidade já não tem mais
lugar para abrigar em seu seio crenças ingênuas de um princípio unificante que conjugue
todos os valores e nos diga que ideais devemos buscar. O devir das sociedades humanas
estará eternamente jogado às batalhas entre os mais diversos deuses e demônios que
lutam pelo controle do espírito do homem. O fato e o valor, o conhecer e o agir estão
radicalmente separados, quanto ao seu sentido, por planos diversos, relacionando-se o
primeiro com os meios, e o segundo com os fins.
Não se trata, contudo, de planos
contraditórios, porém reciprocamente complementares, pois não se concebe um homem só
de meios, ou só de fins; em ambos os casos, permanecerá sempre uma alma mutilada. É
impossível nesse momento não pensar em Nietzsche:
"O homem objetivo, que já não
amaldiçoa e xinga como o pessimista, o erudito ideal, no qual o instinto científico vem
a florir por inteiro, após mil malogros totais e parciais, é seguramente um dos
instrumentos mais preciosos que existem: mas isto nas mãos de alguém mais poderoso. Ele
é apenas um instrumento; digamos que é um espelho não uma finalidade em
si. (...) O homem objetivo é um instrumento, um precioso, facilmente vulnerável e
embaraçável instrumento de medição e jogo de espelhos, que devemos poupar e respeitar;
mas ele não é uma meta, não é uma conclusão e elevação, um homem complementar em
que se justifique a existência restante, um término e menos ainda um começo,
fecundação e causa primeira, nada de sólido, poderoso, firme em si mesmo, que aspire a
dominar: antes um delicado, inflado, fino e flexível recipiente de formas, que deve
esperar por uma substância e conteúdo qualquer para então se configurar de
acordo geralmente um homem sem conteúdo e substância, um homem sem
si" (§207, grifos nossos)
Tal também era a opinião de Max Weber, nas palavras de Julien Freund:
"... há uma verdadeira solidariedade entre o comportamento que ele (Weber) exige do sábio e o do homem de ação, conquanto sejam opostos relativamente a seu sentido. A separação estrita que ele acredita encontrar entre valor e fato, entre vontade e saber, tem por objeto não somente delimitar claramente a essência lógica de cada uma das duas atividades, seu respectivo domínio e, por conseguinte, a natureza dos problemas que cada uma delas é capaz de resolver com os meios que lhes são próprios, mas também tornar mais frutífera sua eventual colaboração, por força mesmo de sua distinção, por eliminação das confusões que são prejudiciais a uma e a outra. É em virtude dos limites do trabalho científico que a ação adquire todo o seu sentido, com seu corolário que é a escolha entre valores cuja validade escapa à jurisdição da objetividade científica. A ciência ajuda o homem de ação a compreender melhor o que quer e pode fazer, mas não poderia prescrever-lhe o que deve querer" .
Eis aí o significado do
politeísmo de valores. Após a morte de Deus, cada homem é livre para decidir a que
deuses ou demônios está disposto a servir, de sorte que ninguém lhe poderá ajudar
nesta escolha. Nem a ciência, nem tampouco qualquer pretensa lei do desenvolvimento
histórico poderá jamais estabelecer o que devemos fazer, que destino dar a nossas vidas.
Tais questões pertencem ao domínio próprio da política que cada vez mais exige dos
indivíduos virilidade para encarar com coragem o irracionalismo ético do mundo. Não é
sem razão, pois, que a virilidade e o senso de responsabilidade é o traço mais marcante
no perfil do homem político traçado por Weber, e também não é à-toa que é
precisamente na reflexão acerca da política que as semelhanças entre o seu pensamento e
o de Nietzsche se acentuam ainda mais. Porém isso já é assunto do nosso próximo ponto.
4. Weber e o estatuto da atividade política
Procuramos, até o presente
momento, estabelecer, no interior da visão de mundo weberiana, onde se localiza a ação
política, o "fazer política", assim como buscamos esboçar suas
características primordiais de modo a distingui-lo do "fazer ciência" e das
outras formas de ação em geral. Afirmamos que em Weber o caráter específico da
política reside no fato de que esta está inevitavelmente perpassada pelo irracionalismo
ético do mundo, com o qual deve constantemente lidar e que consiste no seu locus
próprio. Tivemos a oportunidade de salientar um dos aspectos desse irracionalismo, o que
ele batizou de politeísmo de valores, significando o completo isolamento espiritual do
ser humano no tocante ao sentido de sua vida, isto é, às escolhas das ordens de valores
que pretende adotar e aos ideais pelos quais deseja lutar.
Os estudos de Weber acerca das
peculiaridades da civilização ocidental o levaram a uma solução um tanto quanto
maniqueísta: o processo de racionalização que marcou de forma singular essa parte do
mundo não conseguiu expurgar o aspecto irracional de nossa existência, mas antes
consistiu na sua mais radical afirmação, confinando-o a um domínio próprio; o
espírito objetivo e o espírito subjetivo embora constituam verso e reverso de uma mesma
moeda, permanecem, enquanto tais, mutuamente excludentes. O primeiro caracteriza-se pela
natureza instrumental, destinado a elaborar conhecimento a ser utilizado a serviço de um
determinado fim que, contudo, não lhe diz respeito; o segundo, situa-se no domínio do
extra-científico, referindo-se aos fins a que os conhecimentos e meios engendrados pelo
primeiro devem servir. Estes fins são produto de uma escolha, tendo por base valores
absolutamente iguais entre si do ponto de vista objetivo. Portanto, à ciência cabe,
assim como a seu corolário específico que é a objetividade, desenvolver conhecimentos e
meios idôneos à perfeita consecução dos fins, produtos de uma escolha da vontade.
Tratam-se a objetividade e a
subjetividade, pois, de estados de alma que se completam mutualmente: o meio é um ato de
conhecimento; o fim, um ato de vontade. Como já tivemos a oportunidade de salientar, um
homem que permaneça confinado a apenas uma dessas esferas, que não se esforce por
desenvolver suas potencialidades espirituais em ambas as direções, será sempre
unidimensional e incompleto, pois o espírito objetivo nada cria (no sentido moral),
porquanto ação lhe seja avessa por princípio; por outro lado, o espírito subjetivo por
si só nada criará de sólido e edificante senão acidentalmente, uma vez que a ação
que ignora as circunstâncias sobre as quais incide é estéril e ineficaz.
O outro aspecto do irracionalismo
ético do mundo ao lado do politeísmo de valores é o paradoxo das conseqüências, isto
é, o fato de que o resultado de uma ação política dificilmente coincide, em todo o seu
alcance, com a intenção original do agente. Esse aspecto, como o anterior, decorre da
constatação da infinita complexidade intensiva e extensiva da cadeia causal. São as
circunstâncias que se interagem a cada momento, e não a vontade dos homens, que
determinam os efeitos de uma ação, sendo que as conseqüências por ela geradas
extendem-se por toda a eternidade, não podendo ser interrompidas em um momento dado, ao
nosso bel prazer.
Se o politeísmo de valores nos
permite definir o locus da política no interior da existência humana, as suas
características e a atividade específica do homem político, é o paradoxo das
conseqüências que nos ajudará a compreender qual deve ser a atitude, vale dizer, a
postura desse homem político em face de sua atividade mesma. Antes, porém, faz-se mister
lembrarmos a distinção de Weber entre ética de convicção e ética de
responsabilidade, com vistas a determinarmos a contribuição de ambas para configurar a
ação política.
A ética de convicção é a
ética incondicional, do "tudo ou nada", do "custe o que custar", em
outras palavras, uma ética que não leva em conta o paradoxo das conseqüências. O
partidário da ética de convicção sacrifica tudo ao valor que seu ideal representa,
não se importando com as conseqüências funestas a que ele poderia dar origem. E se
alguma vier a efeito em virtude de sua ação, ele tenderia a negar a sua
responsabilidade, atribuindo-a antes à imbecilidade do mundo ou à vontade de Deus. A
linearidade de seu raciocínio não lhe permite compreender como um ideal bom pode gerar
maus resultados.
A ética de responsabilidade, por
sua vez, parte da consciência de que só muito raramente os resultados de uma ação
política correspondem às intenções originais de quem a efetua, em virtude justamente
da complexa gama de fatores que compõe uma determinada situação histórica, e que
impede que a relação causa/efeito se dê de forma tão linear. Assim, o partidário da
ética de responsabilidade tem em consideração os possíveis efeitos colaterais de sua
ação, do mesmo modo que avalia os meios mais adequados tendo em vista os fins que busca
atingir, ciente inclusive de que o recurso a violência constitui um risco necessário e
inevitável. Além disso, aquele que assume tal ética têm em conta a própria fraqueza e
incompetência e as dos homens, e se porventura os efeitos de sua ação se revelam
prejudiciais, não deposita a responsabilidade sobre os ombros alheios, mas antes a chama
para si, como conseqüências previsíveis de sua própria deliberação.
Cumpre ressaltar que conquanto a ética
de responsabilidade e a ética de convicção sejam duas posturas irredutivelmente
opostas diante do mundo, isso não
significa que a responsabilidade e a convicção não possam coexistir num mesmo
indivíduo.
Pelo contrário, o político por
vocação, segundo Weber, deve dedicar-se com devoção apaixonada em favor de uma causa,
viver para a política, sem, contudo,
perder de vista o senso de proporção. O político autêntico é a um só tempo
responsável e
convicto . Assim sendo, ambas as
éticas permitem-se completar uma à outra, e o verdadeiro homem de ação é aquele que
sabe conjugar a paixão pelos seus
valores e ideais à responsabilidade pelos seus atos; aquele que permanece infatigável
ainda
que diante de sucessivos fracassos,
presenciando mediocridade após mediocridade, estupidez após estupidez.
Ora, essas considerações até
agora expostas apenas nos fornecem uma idéia pálida e tosca de como Max Weber concebia o
homem político e o "fazer
política". É necessário, nesse momento, aprofundarmo-nos um pouco mais no interior
da
personalidade desse político ideal, a
fim de conhecermos com mais detalhes a essência de sua atividade.
As influências de Nietzsche
sobre Weber se tornam particularmente mais nítidas quando se trata de identificar as
paixões que
movem a roda da história. Como se
sabe, ambos rejeitam qualquer concepção que tente reduzi-la a um único sistema de
significação, logo eles vêem como
tola e ingênua toda idéia de história universal, toda filosofia da história, enfim,
qualquer
concepção que proclame uma
"evolução" em termos unívocos. A noção de um politeísmo de valores os
impede de reconhecer
qualquer conteúdo moral ao seu
significado. Inexistindo qualquer valor universal,
sendo todos eles humanos
demasiado humanos, e, portanto, absolutamente iguais entre si do ponto de vista objetivo,
a história
está entregue à disputa irracional
entre os mesmos, de sorte que a vitória de um valor sobre outro só pode ser considerado
uma melhora, uma evolução, um
progresso por quem vence, enquanto objetivamente falando a noção de evolução só tem
sentido se associada unicamente à
idéia de transformação; qualquer outro conteúdo de ordem moral ou ontológica é
destituído
de sentido.
Por conseguinte, é o atrito
entre as vontades que engendra toda evolução histórica, assim como qualquer
transformação numa
escala de valores de uma determinada
sociedade em determinado período. Pode-se mesmo afirmar que todo desenvolvimento
ético é um ato de força, se
entendermos por tal qualquer forma de sucesso de uma vontade (as escala de valores não
são um
ato de conhecimento, senão de vontade)
sobre outra, seja por meios violentos, seja pelo consenso ou diálogo. E aquele que
conseguir levar o seu valor, produto de
sua vontade, a efeito sobre os dos outros, buscará fazer crer a estes que a mudança
por ele introduzida representa um
"progresso", uma "evolução", ou o que seria até
objetivamente mais correto uma
conquista, e não hesitará em
autodenominar-se o "arauto dos novos tempos", das luzes e do progresso, "o
sujeito da história
universal", ao passo que
qualificará seus antagonistas de "reacionários", "ultrapassados pela
história" .
Não é difícil deduzir as
conseqüências desse ponto de vista. A política torna-se a grande arena dos embates de
valores, do
choque entre as visões de mundo, onde
não há espaço para cavalheirismos, inclinando-se um diante do outro em concessões
mútuas. Parafraseando Nietzsche,
poderíamos dizer que a política "é mulher e não
gosta senão de guerreiros";
com efeito, quem quer que deseje triunfar nesse meio deve estar preparado para ser
impiedoso,
disposto a lutar com feroz obstinação
contra os homens para fazer valer os seus ideais. Weber não encontrará a menor
dificuldade em aderir à idéia
nietzschiana do mundo enquanto vontade de poder e dominação, conforme o testemunho de
Fleischmann:
"A essência da política,
fundada no egoísmo nacional, é a luta. A paz e a felicidade são ideais infinitos. É um
ato criminoso
educar a juventude em um espírito
pacifista e na utopia de um mundo melhor. Para manter a cultura alemã em alto nível, é
preciso adestrar os jovens para a luta
perpétua e impiedosa do homem contra o homem. (...)E mais, toda a civilização nada
mais é do que uma luta pela vida, onde
os mais viáveis prevalecem e dominam segundo um processo de seleção. Essas
categorias explicativas de
luta e de seleção não estão em Weber no sentido biológico
darwiniano, mas, como em
Nietzsche, num sentido moral: a ética
da piedade e da não-violência é a ideologia dos fracos, dos desfavorecidos pela
natureza
e pela sociedade a referência
é aos cristãos, aos democratas e aos socialistas da qual é preciso livrar-se
para
desenvolver plenamente suas próprias
forças, físicas e morais, enquanto homem novo" .
Sendo, como insistimos, os
valores produtos da vontade humana, inexistente nas próprias coisas, mas sendo o próprio
homem
que lhos imputa, não é senão a
vontade dos indivíduos que sustenta um determinado valor, e este será tão mais forte
quanto
mais forte for a vontade de quem o
sustenta. Destarte, em se tratando de política, só há uma virtude indispensável: a
força de
convicção, a paixão pelos seus
ideais, da mesma forma que há apenas um vício verdadeiramente condenável: a falta de
convicção, de obstinação e a
indiferença com relação a qualquer ideal ou valor. Tratam-se estes, sem dúvida, dos
"últimos
homens", fracos, decadentes,
carentes de vontade. Mais do que qualquer outra coisa, a essência da atividade vital
consiste não
tanto em subsistir como em dominar. A
vida mesma não é senão vontade de poder. De novo o pensamento de Weber
converge com o de Nietzsche:
Dado que, para Weber, os
valores são absolutamente subjetivos e irracionais, não cabe distinguir
entre eles (nem há algum
meio humano para chegar a tanto) e é
sempre a vitória nessa luta politeísta que irá impor o valor do
mais forte. A luta de
poder pelo poder confunde-se, portanto,
com a luta por um valor" .
É conveniente, todavia,
fazermos uma ressalva. Na verdade, a virtude política, para Weber assim como para
Nietzsche,
encontra-se suspensa entre dois pólos:
se, por um lado, nada pode ser mais condenável em política do que a carência de
obstinação; por outro, não é o
sucesso ou o fracasso político o critério de virtude. Com efeito, o que conta é o gosto
pela luta
e não a vitória; a convicção pura e
simples, não o sucesso.
5. Gramsci: a visão de mundo
A partir de agora, nosso
objetivo será localizar, no interior do pensamento de Antonio Gramsci, onde se situa a
atividade
política, e qual o estatuto que a
orienta. Para tanto, adotaremos como ponto de partida o que se acredita ser o seu conceito
principal, qual seja o de bloco
histórico. Com efeito, trata-se de um conceito mediante o qual Gramsci estabelece um
quadro
da sociedade e que designa uma
situação histórica global, na qual se distingue, de um lado, uma estrutura, composta
pelo
conjunto das relações materiais de
produção, e, de outro, uma superestrutura ideológica e político-jurídica. É a partir
dessa
"figura" que ele irá
retrabalhar as questões centrais do marxismo. Sua análise do bloco histórico, conforme
salienta Hugues
Portelli , eclode em três perspectivas
que se interagem para compor um panorama geral das sociedades historicamente
situadas, das transformações que
nelas ocorrem e do significado que assumem essas mesmas transformações: em primeiro
lugar, a análise do bloco histórico
comporta o estudo das relações entre a estrutura e a superestrutura e de seus
condicionamentos recíprocos; em
segundo lugar, convém analisar o bloco histórico de um ponto de vista dinâmico,
através do
estudo das relações entre sociedade
política e sociedade civil no seio da superestrutura e do papel da hegemonia; finalmente,
é
a partir do bloco histórico que
Gramsci busca compreender como se desagrega a hegemonia da classe dominante, e qual o
significado dessa desagregação.
As análises de Gramsci são
inspiradas por uma constatação que já não mais poderia ser dissimulada: a evidente
insuficiência
teórica do marxismo para explicar a
resistência da hegemonia
burguesa em face das pressões das forças produtivas. Tinha claro que tal resistência
só poderia ser
compreendida levando-se em conta a
influência exercida pela superestrutura, e, por conseqüência, a partir de uma
reelaboração teórica das relações
entre esta e a estrutura econômica. Como se sabe, no marxismo ortodoxo a superestrutura
é
vista como um reflexo da estrutura
econômica subjacente. Com efeito, lembre-se da mais que célebre passagem do Prefácio à
Crítica da economia política: "o
conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, ou
seja, a
base real sobre a qual se eleva uma
superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas determinadas de
consciência social". Podemos
afirmar, portanto, com razoável precisão, que em sua relação recíproca, para Marx, a
estrutura
constitui o momento condicionante e
primordial, enquanto que a superestrutura consiste no momento condicionado e
secundário. Além disso, a ortodoxia
tende a uma concepção mecanicista desse condicionamento, chegando mesmo a situar o
momento do Estado e das ideologias como
"epifenômenos" do momento econômico. Em Gramsci, tudo isso é posto, de certa
forma, de cabeça para baixo.
Conforme salienta Norberto Bobbio
, o ponto chave que determina as principais diferenças entre os pensamentos de Marx e
Gramsci, reside na divergência de
ambos no que se refere ao conceito de sociedade civil, a partir da concepção hegeliana,
ambos operando um "corte" na
definição. Para Hegel, a sociedade civil compreende tanto as relações econômicas e a
formação das classes quanto a
administração da justiça e regulamentação dessas relações. Assim, Marx e Gramsci
assimilam
aspectos distintos desse amplo conceito
com que Hegel trabalha: o
primeiro o reduz a um locus das
relações de produção; o segundo o eleva ao momento da superestrutura, como conjunto da
vida espiritual, intelectual e
cultural-ideológico. como fica claro em Os Intelectuais e a Organização da Cultura:
Por enquanto, pode-se fixar dois
grandes planos superesteruturais: o que pode ser chamado de sociedade civil
(isto é, o
conjunto de organismos chamados
comumente de privados) e o da sociedade política ou Estado, que
correspondem à
função de hegemonia que o grupo
dominante exerce em toda sociedade e àquela de domínio direto ou de comando,
que se
expressa no Estado e no governo
jurídico" .
As conseqüências engendradas
por essa diferença são de grande alcance. Se Gramsci está de acordo com a concepção
marxista de que é na sociedade civil
que tomam parte as transformações históricas, isto é, que a sociedade civil é o
"teatro de
toda história", ela representa um
deslocamento na relação entre estrutura e superestrutura. Talvez essa afirmação
requeira
algumas explicações.
O bloco histórico, como pudemos
salientar, designa uma situação social formada por uma estrutura econômica soldada,
dialética e organicamente, às
superestruturas ideológicas e políticas. Portanto, estrutura e superestrutura constituem
uma
relação dialética real, e a
organicidade que lhe é imanente implica na negação do mecanicismo e do espontaneísmo,
no sentido
em que as modificações econômicas
por si mesmas não são capazes de levar a efeito qualquer transformação em nível
superestrutural. Em outras palavras, as
relações entre ambas as esferas sociais é complexa e meticulosa, e não se dá de forma
linear; para torná-la inteligível,
faz-se mister a compreensão tão profunda quanto possível da vida espiritual, cultural,
e política
de cada nação. Ora, tanto Gramsci
quanto Marx invertem Hegel ao situar o momento primordial das transformações
históricas, o seu momento ativo e
positivo, na sociedade civil e não mais no Estado. Entretanto, em Marx, esse mesmo
momento ativo é estrutural, ao passo
que Gramsci o coloca ao nível da superestrutura. Logo, é de se concluir que, para este
último, trata-se do momento
superestrutural, ao contrário do pensamento marxista, como elemento condicionante da
evolução
das sociedades humanas. As citações
que corroboram esse raciocínio são abundantes:
"Inicialmente, pode-se excluir
que, de per si, as crises econômicas imediatas produzam acontecimentos fundamentais;
apenas
podem criar um terreno favorável à
difusão de determinadas maneiras de pensar, de formular e resolver as questões que
envolvem todo o curso ulterior da vida
estatal" .
Gramsci já apontava um tanto intuitivamente para essa conclusão em 1926 quando afirmou que:
"nos países de capitalismo
avançado, a classe dominante possui reservas políticas e organizativas que não
possuía, por
exemplo, na Rússia. Isso significa que
até mesmo as crises econômicas gravíssimas não têm repercussões imediatas no plano
político" .
Entretanto, tudo se torna mais claro nos Quaderni:
"Nos Estados mais avançados, a
sociedade civil tornou-se uma estrutura muito complexa e resistente às
irrupções
catastróficas do elemento econômico
imediato (crises depressões etc.); as superestruturas da sociedade civil são como o
sistemas de trincheiras na guerra
moderna."
"Um grupo social pode, ou, antes,
deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamental (e esta é uma das
condições para conseguir a conquista
do poder)" .
Dito em outras palavras, as
modificações fundamentais em um bloco histórico não são geradas imediatamente ou
espontaneamente por novas condições
materiais de produção, mas sim somente a partir do momento em que uma classe social
adquire a consciência dessas novas
condições e das novas necessidades que elas dialeticamente engendram, transpondo,
assim, a luta de classes do momento
econômico para o momento ético-político. Norberto Bobbio resume com insuperável
simplicidade:
"... o momento
ético-político, enquanto momento da liberdade, entendida como consciência da
necessidade (isto é, das
condições materiais), domina o
momento econômico, através do reconhecimento que o sujeito ativo da história faz da
objetividade, reconhecimento que
permite transformar as condições materiais em instrumento de ação, e, portanto,
alcançar o
objetivo desejado" .
É de concluir-se, portanto,
que o momento ético-político para Gramsci é que impulsiona a "roda da
história". Desnecessário
afirmar que, assim sendo, a atividade
política é o que determinará em última análise o curso do desenvolvimento histórico.
Mas
em que consiste essa atividade? A
questão do estatuto da política é tema fundamental no seu pensamento, pelo que ficou
conhecido como o teórico da hegemonia.
6. Gramsci e o estatuto da atividade política
No que se refere
especificamente à reflexão política, Gramsci denuncia um grave erro conceitual do
marxismo. No seu modo
de entender, esse erro origina-se de
uma má compreensão do que seja efetivamente o Estado. Com efeito, podemos dizer
que, de um modo mais geral, Marx e os
seus seguidores mais tradicionais pautam-se por uma concepção negativa do Estado,
isto é, independentemente da
configuração que assuma, sua essência constituirá no que é e sempre foi, uma ditadura
de classe,
destinado a perpetuar as contradições
da sociedade e assegurar a prevalência do grupo economicamente dominante. Na
verdade, Gramsci não nega que o Estado
consista realmente num apanágio de classe cuja função seja precisamente essa,
todavia ele insere um plus na atividade
estatal, no que tange especialmente aos meios mediante os quais o domínio da burguesia
é assegurado, e que pode ser expresso
na seguinte equação: Estado = ditadura + hegemonia.
"Se o Estado é realmente a
ditadura de uma classe, definida antes de mais nada por seu primado econômico, ele é
também um
sistema em que a hegemonia da burguesia
se apóia essencialmente na direção intelectual e moral, na impregnação ideológica
do conjunto da sociedade. É agindo no
nível supra-estrutural que a burguesia articula vínculos sólidos com aqueles que ela
explora, difundindo sua concepção do
mundo por intermédio da filosofia, da religião, do folclore, ou mesmo por intermédio
simplesmente do senso
comum, criando, além disso, as organizações responsáveis por essa difusão e
aperfeiçoando o
material ideológico, isto é, os
instrumentos técnicos dessa difusão (sistema escolar, mass media, bibliotecas...)"
.
Portanto, ao lado dos aparelhos
repressivos, o Estado lança mão de outras instituições cujo escopo é disseminar no
seio da
sociedade civil a visão de mundo da
classe dominante. Convém ressaltar, que o caráter no mais das vezes privado dessas
instituições, sua aparente
independência em relação a qualquer grupo social, aliado ao uso da ideologia ao invés
da violência,
torna a atuação delas muito mais
sutil, e, por isso mesmo, mais eficiente. O domínio de classe se fortalece sobremaneira a
partir do momento que esta consegue que
seus valores perpassem todo o social. E ela será tão mais hegemônica quanto mais
fizer com que sua ideologia seja
disseminada em nível de senso comum. Nesse ponto, seu poder político e econômico será
robusto o bastante para suportar até
mesmo as mais catastróficas crises econômicas.
Nesse conceito de Estado ampliado
é possível destacar dois momentos, que são como que as suas duas frentes de ação: o
momento da sociedade civil e o momento
da sociedade política, correspondendo, como vimos, o primeiro, à função de
hegemonia do grupo dirigente, e o
segundo, à de "domínio direto", valendo-se do "governo jurídico".
Em outras palavras,
trata-se, respectivamente, de coerção
e consenso. A partir dessa noção torna-se compreensível a natureza
"centáurica" do
Estado, tal como Gramsci o concebia.
Se Marx visualizava a
instituição estatal apenas como aparato coercitivo, vale dizer, somente enquanto
sociedade política,
para Gramcsi o Estado é o resultado do
equilíbrio entre sociedade política e sociedade civil. A figura do centauro para
caracterizar a essência da atividade
política representa nada senão precisamente esse equilíbrio entre a violência e o
diálogo, o
animalesco e o humano. Assim sendo,
este Estado bifacetário (isto é, enquanto sociedade civil + sociedade política)
articula-se
de maneira orgânica à estrutura
econômica, ao passo que as ideologias constituem precisamente as pontes que interligam os
dois planos, tal ligação é
assegurada e dinamizada pelo que Gramci denomina de "os funcionários da
superestrutura os
intelectuais:
"Cada grupo social, nascendo no
terreno originário de uma função essencial no mundo da produção econômica, cria para
si,
ao mesmo tempo, de um modo orgânico,
uma ou mais camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da
própria função, não apenas no campo
econômico, mas também no social e no político..." .
Há que se ressaltar, contudo,
que as relações entre os intelectuais e as classes sociais de provêm são de natureza
orgânica, ou
seja, eles não consistem em meros
"reflexos", ou agentes passivos de um determinado setor da produção material.
Não é
senão a sua relativa independência
que torna possível os embates ideológicos pela hegemonia, o que vale afirmar, a luta
pela
conquista do senso comum e dos demais
grupos de intelectuais, entre os quais os chamados intelectuais "tradicionais",
isto é,
aqueles representantes de um bloco
histórico anterior, ainda presentes pela continuidade histórica. Conforme pudemos
constatar, Gramsci acreditava que o
momento das ideologias deveria preceder a própria conquista do poder como condição
de estabilidade do bloco histórico
emergente.
Por conseguinte, se para Marx,
tanto como para Lenin, as ideologias são vistas como um momento negativo, de
justificação a
posteriori e com função de
mistificação e deformação da realidade, em Gramsci, trata-se justamente do contrário:
a vitória na
luta cultural é o primeiro passo para
a efetiva conquista do poder político. Apenas a partir da obtenção da hegemonia
ideológica, uma classe social poderá
estar em condições de organizar forças par levar a efeito transformações duradouras
em
nível da sociedade política.
Dessas considerações, podemos
concluir que a atividade política, em essência, deixa-se definir por dois planos: o
momento
da luta ideológico-cultural, por meio
da qual se pretende a difusão de uma certa cosmovisão a fim de consolidar a hegemonia;
e o momento da coerção e da
violência, de sorte a garantir a aquisição ou a conservação da direção política.
7. Considerações Finais
Conforme dissemos no início,
nosso objetivo na presente incursão consiste em refletirmos acerca das possibilidades de
aproximação, mormente no que tange ao
estatuto da atividade política, entre essas duas tradições do pensamento moderno ora
em exame: de um lado, Weber,
representante da sociologia liberal clássica, e, de outro, Gramsci, um dos mais fecundos
arautos do pensamento marxista.
Cumpre salientar, de início, que
ambos tinham o fenômeno político em alta conta, razão pela qual ele representa uma
considerável parcela de suas obras.
Com efeito, consoante é notoriamente sabido e amplamente assinalado, tanto Weber
como Gramsci rejeitam toda e qualquer
forma de reducionismo, vale dizer, qualquer tendência de se atribuir aos fenômenos um
significado unívoco, bem assim de
tentar compreendê-los a partir de estruturas pré-concebidas e estáticas; ambos tinham
como bem clara a contingência do
tecido histórico.
Daí decorre que tanto um quanto
outro acreditavam na política enquanto instrumento de mudança social e transformação
histórica. Gramsci, o grande teórico
da hegemonia, soube valorizar melhor que qualquer de seus pares a função decisiva da
superestrutura ideológico-cultural,
postulando, inclusive, a necessidade da conquista pelo pensamento antes da investida
armada se esta fosse indispensável.
Mais do que isso, foi Gramsci quem mostrou aos marxistas que o Estado pode ser
conquistado e utilizado pelo
proletariado em seu próprio benefício . Para tanto, não se prescinde da ação
política. Weber, por
seu turno, acreditava que os homens
detinham em suas mãos a chave de seu destino, de maneira que é na política que as
tendências históricas se revelam e se
compõem, conforme sejam fortes ou fracas, mas de um forma ou de outra, o futuro é
escolha, ainda que condicionada por uma
multiplicidade de circunstâncias. Em outras palavras, é na política que se rearranja o
universo das possibilidades.
Um outro aspecto em que é
possível conciliar o pensamento dos dois autores diz respeito ao perfil do homem
político. Para o
autor de A Política Como Vocação, o
político ideal deixa-se definir por três qualidades fundamentais: força de convicção,
responsabilidade e senso de
proporção. Consistindo a atividade política em motor essencial do desenvolvimento
histórico,
sendo essa precisamente a sua função,
um homem político apenas autenticamente o será quando, e na medida em que, seu
escopo constitua efetivamente em
provocar transformações em seu ambiente social, em introduzir os dedos entre os raios da
grande roda da história. Destarte, a
paixão por um ideal chega a ser, para Weber, elemento constitutivo da própria
definição
de político. Todavia, seus sentimentos
não devem jamais manifestar-se de forma inadvertida e inconseqüente. Na verdade, o
que distingue o político por vocação
do mero diletante é a perspectiva, a responsabilidade, e a consciência de que não lhe
é
dado, em nome de seus valores pessoais,
passar por cima de tudo e de todos, provocando mais prejuízos do que efetivamente
enriquecendo o espaço público. Com
efeito, Weber corrobora a assertiva de Friedrich Schiller, para quem "as naturezas
nobres manifestam-se naquilo que são,
as vulgares no que fazem" . Não se trata do sucesso ou do fracasso na conquista do
poder que dita os critérios de
moralidade. O traço marcante do bom político, em oposição ao mau, é a fidelidade a
seus ideais
e compromissos, não a vitória
política em si mesma.
Por sua vez, Gramsci não fica
atrás. Compreendia muito bem a natureza bifacetária do homem político, eis que se
dedicou a
analisar o pensamento de Maquiavel:
"... O príncipe precisa saber ser
animal e homem. Esta regra foi ensinada aos príncipes, em palavras veladas pelos antigos
autores que escreveram, como Aquiles e
vários outros senhores do tempo passado foram confiados ao centauro Quíron, para
os educar sob sua disciplina. Ter,
assim, por preceptor um ser meio animal e meio homem, só significa que um príncipe deve
saber utilizar uma e outra naturezas, e
que uma sem a outra não é durável" .
Uma vez que, tal como Weber,
Gramsci situava no momento político o "palco da história", as ideologias não
são senão o
espírito mesmo que inspira o homem de
ação enquanto tal. Por outro lado, não obstante, ninguém melhor que o autor de
Maquiavel, a Política e o Estado
Moderno soube desenvolver o conceito de atividade política enquanto tática (ressalte-se
ainda uma vez os conceitos de guerra de
posição e guerra de movimento), de sorte que, estendendo a mão à Weber, a
responsabilidade e a perspectiva
também assumem um papel preponderante.
Convém assinalar ainda, e por
último, que como conseqüência dos pontos anteriores a política em ambos os pensadores
constitui-se numa grande arena onde se
enfrentam as mais variadas visões de mundo pelo controle da mão da história, a
atividade política confunde-se,
portanto com a luta por um valor, ou, em termos gramscianos, com a luta pela hegemonia.
Essa
conclusão aparentemente simples dá
margem a reflexões mais tanto profundas do que faz parecer em primeira leitura. A partir
do momento em que Weber, como Gramsci,
concebiam a política enquanto
espaço, ou seja, enquanto locus
das transformações sociais, na medida em desacreditam as filosofias da história, e,
principalmente, quando sustentam que a
multiplicidade de concepções apenas torna mais rico o espaço público de debate, a
democracia parece ser o regime
político mais adequando a sua atividade. As possibilidades de progresso parece
condicionar-se, na opinião desses
autores, à manutenção do pluralismo ideológico.
Por essa forma, em virtude do que
foi assinalado, defendemos que esses autores muito têm a contribuir com suas categorias e
reflexões para o aperfeiçoamento das
instituições democráticas. O presente artigo pretende ser um esboço nesse sentido, que
inspire talvez análises mais detidas
acerca do alcance e limites da interpretação que oferecemos. De um modo ou de outro,
sentimo-nos confiantes ante as
possibilidades de convergência entre os pensamentos ora em exame em favor de um Estado e
um Direito em favor de todos.
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