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Alguns aspectos atuais da globalização: o novo conceito de soberania e o ideal da união entre os países

Lisandra Cristina Lopes

 

Há algum tempo atrás, um cantor e compositor conhecido mundialmente, que outrora havia sido vocalista de um grupo que marcou a história da música no nosso século, começou a cantar uma música muito interessante, espécie de sonho-profecia, na qual ele pedia ao seu interlocutor que imaginasse um mundo em que não existissem países, nem fronteiras, nem religião, e onde toda a humanidade formasse uma "irmandade de homens". E desafiava o ouvinte, com frases do tipo "eu imagino se você consegue", ou "não é difícil fazê-lo". E acabava por concluir que, embora ele parecesse um sonhador, não era o único. No estágio de desenvolvimento em que nos encontramos, arrisco-me a afirmar que ele estava certo, ao menos em parte. O objetivo deste trabalho, que mais se assemelha a um ensaio, é precipuamente este: analisar, de forma despretensiosa, alguns aspectos das relações internacionais, tentando contaminar o leitor, evidentemente sem a poesia e sem a magia do grande Lennon, com essa idéia de ver o mundo unificado.

 

 

I. Contexto internacional: o advento da Sociedade Global e sua inter-relação com a soberania

No século XIX, a Sociedade Internacional era definida como Comunidade ou Comunidade clássica. Nela, apenas os Estados eram tidos como sujeitos do Direito Internacional, havendo a desconsideração destes entes que hoje não apenas são sujeitos, mas participam ativamente da vida internacional, influindo e tomando decisões: as organizações internacionais. Nesse estágio, imperava a compreensão de Estado como unidade territorial definida por três elementos básicos: soberania, territorialidade e povo, havendo também aqueles que apontavam o vínculo jurídico, ou ainda uma finalidade. (Dallari, pg. 71). Hoje, esses conceitos estão atravessando um período de transição, com destaque para as mudanças ocorridas na noção de soberania, como se verá adiante.

O conceito de soberania atingiu um grau que poderíamos chamar de científico já no século XVI. Foi basicamente a partir da disputa de poder entre os reis e os senhores feudais que os primeiros começaram a se afirmar. Alcançou então, a soberania, o denominado grau superlativo, sendo definido como poder supremo, sem parâmetros ou medidas, que o Estado não encontrava igual, a não ser, evidentemente, o poder soberano dos outros Estados. Tal poder, em princípio, era consubstanciado na pessoa do monarca. Aos poucos, todavia, a titularidade desse poder foi sendo transferida do rei para o povo, idéia que tomou corpo, no plano teórico, através de Rousseau, com seu livro "O contrato social". A idéia de soberania popular exerceria, então grande influência como propulsora ideológica das revoluções, principalmente a Revolução Francesa. Foi somente a partir da metade do século XIX que o Estado passou a se afirmar como o verdadeiro titular da soberania. Com a evolução natural do pensamento, ela foi, aos poucos, deixando de ser um conceito apenas político para alcançar uma compreensão jurídica, como "poder jurídico utilizado para fins jurídicos". Finalmente, uma concepção culturalista define a soberania tendo em vista não apenas o direito, mas também as finalidades éticas de convivência. (Dallari, pg. 80) No âmbito do Direito Internacional, a questão da soberania fez-se muito presente em algumas teorias concebidas para explicar o fundamento desse direito tendo como base a vontade dos Estados (escolas voluntaristas), dentre elas destacando-se, para o nosso estudo, a da autolimitação, segundo a qual o Estado soberano não poderia estar subordinado a nenhuma vontade, a não ser à sua própria. Note-se a importância aqui atribuída à soberania, pois , segundo essa teoria, não poderia haver qualquer força exterior capaz de subjugar a vontade de um Estado, a não ser sua própria força; cabia a ele não se deslimitar. Pelos evidentes paradoxos que encerra, essa teoria não prevaleceu.

O conceito de soberania, contudo, que havia se firmado como elemento imprescindível de um Estado, passou a ser continuamente minado em sua concepção tradicional com o advento da chamada sociedade global. A globalização, em nosso século, firmou-se como realidade incontestável. Ela passou a ser um tema recorrente e a integração, uma palavra de ordem. Apesar de se saber que esse fenômeno não é novo, inquestionavelmente ao menos a sua dimensão é nova: nunca se estudou tanto e se falou tanto em globalização. A antiga Comunidade Clássica agora é "sociedade global".

 

 

II. A globalização e o novo conceito de soberania

Resultado da soma de todas as sociedades nacionais e de todas as demais formas de representação, a sociedade internacional é permanente, particularizando-se e assumindo uma determinada feição em cada momento da vida social. No nosso século, as relações se aperfeiçoaram e chegamos ao estágio definido como " sociedade global" . Aqui, as relações são intensas, não só entre os Estados, mas também entre estes e as Organizações, ou entre estas últimas apenas. Todos estão, em virtude dessa compreensão de sociedade, inseridos em um mesmo processo cultural, filosófico e econômico. A base física é todo o planeta e, apesar de haverem inúmeros grupos heterogêneos, tais grupos encontram-se em um sistema de atitudes coletivas, de regras e valores comuns. Define-se a sociedade global pelo modelo democrático-liberal, adotado mundialmente. Entenda-se aqui o liberalismo sobretudo como um conceito filosófico, que privilegia o individualismo, a livre iniciativa, que direciona todos os seus esforços para a promoção do homem livre. Veja-se que na Inglaterra, por exemplo, ainda subsiste o modelo da realeza, todavia a base, o arcabouço de seu sistema é democrático. O modelo democrático-liberal é, pois, o modelo da cidadania, das declarações de direitos, e também do capitalismo e da tecnologia.

Seus valores supremos são a liberdade, o individualismo e a proteção do homem. Tais valores refletem sobremaneira na forma de estruturação do poder no âmbito da sociedade. Com efeito, os Estados são independentes (independência = binômio liberdade e autonomia), o poder é difuso e definido horizontalmente, imperando entre eles o princípio da igualdade. Em outras palavras, não há hierarquização na Sociedade Internacional Global, e sim um regime de coordenação.

Nesse contexto, as relações internacionais alcançaram uma abrangência realmente impressionante. Inicialmente sobretudo no âmbito comercial, com a idéia de formação de zonas de livre comércio, as trocas foram em seguida se acentuando, culminando com o mercadejo de informações, de ideologias, deslocamento de pessoas e amplo intercâmbio cultural, com a formação inclusive de uma espécie de idioma universal: o inglês. O grande avanço dos meios de comunicação de massa e dos processos de informática exercem, nesse contexto, um papel de extrema relevância.

Surgem os blocos de países, caracterizando o fenômeno da integração entre os Estados, tais como a União Européia e o Mercosul. A soberania, destarte, vê alterada a sua base, deixando de ser imposição para alcançar uma compreensão bastante diferente de seu conceito originário: a cooperação. É a atuação do princípio da solidariedade, e a própria redefinição do modelo de Estado, com a progressiva desconsideração das fronteiras (o que não implica, note-se, desconsideração da nacionalidade).

Trata-se do fenômeno da globalização, ou mundialização, ou transformação do mundo em uma "aldeia global" ou ainda num mundo sem fronteiras. São várias as denominações, ou metáforas, como nos fala Octávio Ianni, que sempre procuram imprimir essa idéia de integração, de algo muito positivo, forte e fatal. Inúmeras discussões há sobre esse assunto, sendo que alguns chegam questionar sua própria existência como fenômeno novo e realmente abrangente e atuante, ao menos como parece ser.

Sabe-se que a interação entre os mercados não é tema novo. Existe mesmo desde a época das grande navegações, quando os homens passaram a deixar suas fronteiras para descobrir novos mundos. Também já há pouco tempo, o que era conhecido como monopólio, cartel e outras formas de organização mercantil eram já prenúncios do que viria a ser o nosso "mundo sem fronteiras" .

Há quem afirme que a globalização é apenas aparente, e dá uma falsa idéia de ser um grande fenômeno, e positivo para o mundo. Afirma-se ainda que a integração não existe, mas simples comercialização internacional e não "global"( Barbalho e outros, p. 71) . Todavia, e isso todos reconhecem, nunca houve uma intensificação tão grande das relações internacionais. Segundo Ianni, o globo deixou de ser uma figura astronômica para adquirir contornos de um elemento histórico (pg. 14).

Tudo isso vem proporcionando, se não o declínio, uma redefinição do Estado e consequentemente do conceito de soberania. O Estado perde parte de suas prerrogativas e funções. Enquanto ele, no século passado, era uma espécie de pai de seus nacionais, tendo que velar pelo bem-estar e pela proteção da economia interna, atualmente está envolvido numa compreensão bem mais abrangente, na qual tem que velar para que a economia interna caminhe no mesmo compasso da economia internacional. É uma espécie de regulador, totalmente inserido nesse novo contexto. (Ianni, pg. 24).

Com um exercício de imaginação bastante audacioso poder-se-ia mesmo afirmar que, daqui a alguns anos, haverá uma roupagem nova para o "contrato social": os Estados cederão um pouco da sua soberania para formar uma espécie de soberania conjunta, da Organização. Segundo Celso Mello (pg. 42), " a figura do Estado tende a ser substituída por forças mais atuantes que correspondam melhor às necessidade políticas, econômicas e sociais do nosso século" (embora o mesmo autor afirme com convicção que o direito internacional ainda é, predominantemente, interestatal). Segundo W. Hein, citado pelo mesmo Celso Mello (pg. 332), os conceitos de Nação e Estado-Nação são produtos de processos históricos, que, certamente, serão substituídos por outras formas de representação e organização. Prenuncia o autor o surgimento de uma "estatalidade transnacional".

 

 

III. A idéia da unificação. Direito Supranacional, Constitucionalismo global: imagine que não há fronteiras...

Uma observação se faz necessária: a globalização não é apenas esse processo positivo e forte como quer-nos parecer. Ela também é bastante contraditória (uma globalização que deixa à margem dos processos culturais e de produção uma boa parte dos países, como os africanos) e ocorre de forma desigual, dependendo do local em que o viajante da "nave espacial" (Ianni, pg. 15) se encontre. Contudo, aspectos positivos existem, com destaque para o jurídico: a globalização dos direitos humanos, sua universalização, por meio da propagação de um direito supranacional. Canotilho, por exemplo, apresenta a idéia da formação de um "constitucionalismo global".

Em princípio, pode-se pensar que se trata de verdadeira subversão de toda a Ordem Jurídica Internacional, com a criação de uma Constituição Mundial. Sabe-se que, entre as muitas teorias que procuram fundamentar o Direito Internacional, destaca-se a de Kelsen, como "Teoria da norma-base", da escola objetivista. Segundo ele, as normas são organizadas hierarquicamente, de modo que uma norma retira o seu fundamento da que lhe é imediatamente superior, havendo uma norma-base, que, na ordem Internacional, é a norma "pacta sunt servanda". Transpondo para o plano nacional, temos que o correspondente interno a essa norma-base é a Constituição. Todavia, no plano internacional, não há uma constituição mundial nem hierarquia entre as normas, que são convencionais, fruto da negociação de seus próprios destinatários (Rezek, pg. 1). Elemento essencial da Ordem Internacional é, portanto, o consentimento.

Todavia, não é essa Constituição mundial que ele propõe, mas um constitucionalismo. Seria a criação de um direito supranacional, através da inserção, em todos os sistemas constitucionais do mundo, de certos princípios que constituem uma espécie de "mínimo constitucional" , tais como repúdio à tortura, preservação da dignidade humana, entre outros. Rezek, citando Pirre Dupuy, afirma que a Carta de São Francisco conferiu aos direitos humanos idealmente uma "estrutura constitucional" no ordenamento internacional. E muitos autores usam expressões semelhantes. Norberto Bobbio também compartilha dessa mesma idéia, defendendo a criação de uma jurisdição internacional, que se sobreponha às jurisdições nacionais, em que os cidadãos tenham garantia contra o Estado( Ana Martuscelli). No fundo, é uma proposta que retoma os princípios do direito natural. As características desse constitucionalismo seriam as seguintes, nas palavras de Canotilho: alicerçamento do sistema jurídico-político internacional não apenas no clássico paradigma das relações horizontais entre Estados mas no novo paradigma centrado nas relações entre Estado/povo.; emergência de um "jus cogens' internacional materialmente informado por valores, princípios e regras universais progressivamente plasmados em declarações e documentos internacionais; tendência à elevação da dignidade humana a pressuposto ineliminável de todos os constitucionalismos (Canotilho, pgs. 1217/1218).

Essa idéia de constitucionalismo global certamente pressupõe um sistema de integração bem maior do que este que ora vivenciamos, e encontra um obstáculo que reside na própria estrutura do Direito Internacional: a ausência de sanção, que Bobbio chama de " garantia , de meios jurídicos aptos a defender tais direitos, uma vez que sua inserção nos sistemas constitucionais internos não passa, na realidade, de uma espécie de concessão dos Estados, que podem, a qualquer momento, criar uma nova ordem e suprimir tais direitos. Ou, nas palavras de Rezek, falta uma "autoridade central provida de força física" (pg, 2).

Entretanto, já se pode constatar que cada vez mais tais direitos se fazem presentes nos textos de convenções e tratados. E, embora não existam sanções expressas, há aquelas veladas, de pressão, utilizando-se de artifícios econômicos e políticos.

 

 

IV. Conclusões e Prognósticos

Neste ponto, já podemos decantar algumas conclusões:

1. Desde a época em que a sociedade Internacional era conhecida como "Comunidade Clássica" até os nosso dias, profundas transformações se deram no âmbito dessa mesma sociedade, refletindo no plano jurídico: surgiram novos sujeitos de Direito Internacional, passando as Organizações Internacionais a desempenhar relevante papel no contexto das relações internacionais;

2. o estágio atual da Sociedade Internacional, definido como sociedade global, impôs uma modificação na estrutura de muitos conceitos políticos, principalmente o da soberania, agora calcado na cooperação, e não na imposição, o que implicou uma redefinição do modelo de Estado;

2. a progressiva integração entre os Estados pode, com a evolução das relações sociais, ocasionar a emergência de uma espécie de "novo contrato social", por meio do qual os Estados, baseados na premissa de cooperação, apoiados no princípio da solidariedade, cedem uma parcela de sua soberania à própria organização ou entidade;

3. O fenômeno da globalização, compreendido em sua expressão mais ampla, como intercâmbio não só de mercadorias, mas também de informações, ideologia e cultura (ou, se se preferir, da transformação de todos esses itens em mercadoria), apesar de nem sempre positivo, homogêneo e enorme como nos parece, é uma realidade;

4. A integração entre os Estados e a globalização ocasionaram o surgimento da proposta de um direito supranacional, a partir sobretudo da defesa de um constitucionalismo global, que procura preservar em todos os Estados a observância de certos princípios básicos, de defesa de direitos humanos, em uma concepção que retoma preceitos do direito natural, só que com base racionalista. O principal obstáculo parece residir em um elemento integrante da própria estrutura do direito internacional: a inexistência de sanção;

5. Apesar das dificuldades, pode-se notar que cada vez mais tais princípios são inseridos em Tratados e Convenções, principais meios de veiculação do Direito Internacional atualmente, o que nos faz imaginar que a criação de um direito efetivamente supranacional pode ser apenas uma questão de tempo, e a concretização da unidade, mais do que um sonho, pode ser um prognóstico. Lisandra Cristina Lopes é Advogada no Rio Grande do Norte

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBALHO, F. C., COSTA, M. C., GOMES,O . C. S. et al. Globalização como reflexo da ideologia neoliberal. In: Revista Jurídica "In Verbis", editora da UFRN.

CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 2 ed. -Portugal: livraria Almedina, 1998.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 20 ed. atual. São Paulo: Saraiva, 1998.

IANNI, Octavio. A sociedade global. 5 ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

____________. Teorias da Globalização. 3 ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1996.

MARTUSCELLI, Ana. Uma interpretação de Bobbio sobre a soberania. Artigo publicado na Internet. Orientador: Ângelo Luís Vargas.

MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de Direito Internacional Público. 1o vol. 11 ed. (ver. e aum.). Rio de Janeiro: Renovar, 1997.

 

 

Texto retirado de http://www.faroljuridico.com.br/art-conceitoglobalizacao.htm