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Sobre o Direito na escola de Frankfurt

Laércio Alexandre Becker
Advogado, mestrando pela UFPR e consultor Bonijuris
"la mera forma del derecho expresa dominación,
la diferencia insalvable entre los intereses
particulares y el todo en que se resumen abstractamente."
(Theodor Adorno, Dialética Negativa)

INTRODUÇÃO
Agora que se discute, nos meios acadêmicos, a teoria geral e a filosofia do direito à luz da Escola de Frankfurt, torna-se necessário que se diga algumas palavras sobre o assunto, para esclarecer alguns pontos e estimular o debate.1

 Conceituar a Escola de Frankfurt não é tarefa das mais fáceis. Ela - assim como o próprio Direito, além de vários instituos jurídicos - não tem definição satisfatória. Podemos, todavia, resumir e generalizar o suficiente para evitar certas questiúnculas recorrentes, e é só isso que podemos fazer nos limites desse artigo. Podemos dizer que se trata de um grupo de pensadores alemães, localizados no chamado "marxismo ocidental", que num primeiro momento se reuniu em torno do Instituto de Pesquisas Sociais (Institut für Sozialforschung). Tinham em MARX e HENGEL seus marcos teóricos e - à exceção de HABERMAS - foram influenciados pelo judaísmo e perseguidos pelo nazismo. Um grupo de pensadores de várias áreas: filosofia, história, sociologia, economia, direito, psicanálise, arte, literatura e até música. alguns transitavam por mais de uma área, como ADORNO, que escreveu sobre filosofia, sociologia, arte, literatura e música.

 Na verdade, a conceituação acima é insuficiente, como qualquer outra, pois,m em primeiro lugar, desloca o problema par o próprio marxismo ocidental, que não passa de um conceito impreciso, "uma noção lassa, frouxa, lábil e multivalente".2 Não obstante, MERQUIOR identifica, como denominador comum aos marxistas ocidentais, a preocupação preponderante com cultura e ideologia, a tendência à restauração do elemento idealista no marxismo, a visão firmemente humanista do conhecimento e o repúdio declarado à ciência burguesa, à cultura burguesa, à sociedade industrial, enfim, à "modernidade capitalista."3 Em segundo lugar, a reunião em torno do Instituto de Pesquisas Sociais foi apenas circunstancial, não tendo o condão de aparar as arestas teóricas entre seus membros.

 Como foi dito, alguns membros do Instituto de Pesquisas Sociais eram ligados à área jurídica. São eles Otto KIRCHEIMER (autor de Political Justice: the use of legal procedure for political ends, 1961, e Politics, Law, and Social Change, 1969) e Franz NEUMANN (autor de The Rule of Law: political theory and the legal system in modern society, 1936). Pouco divulgados no Brasil, estes autores na verdade tiveram papéis meramente secundários no grupo. Os artigos do primeiro, além de não adotarem as principais teses do núcleo frankfurtiano, eram quando muito "tolerados" pelos demais membros.4 Já NEUMANN, além de simplesmente ignorar algumas das teorias do Instituto, teve suas teses preteridas em favor de um artigo de um economista do Instituto, Friedrich POLLOCK ("State capitalism: its possibilities and limitations", 1941)5

 O fato é que os dois juristas do grupo não conseguiram o mesmo destaque, no direito, que os seus colegas obtiveram em suas respectivas áreas. Martin JAY noticia que a contribuição deles para o estudo do direito da República de Weimar e do período nazista tem sido retomada recentemente, em particular, por William SCHUERMAN (Between the Norm and the Exception: the Frankfurt School and the rule of law,1994)6

 Chegamos, com isso, a um falso impasse: afinal, se os juristas da escola de Frankfurt desempenhavam papéis de coadjuvantes, qual é a importância da referida corrente teórica para o direito? Segundo Otfried HÖFFE, a teoria crítica de MARCUSE, HORKHEIMER e ADORNO apresenta um grave déficit em teoria do direito: no de não aceitar nenhuma pretensão política ao poder, mesmo pela via da democracia.7

 Não obstante, em primeiro lugar, cabe observar que alguém não precisa necessariamente ser ligado à área jurídica para nele desempenhar um papel importante. ARISTÓTELES, KANT, HEGEL e - porque não? - FOCAULT são exemplos suficientes. Da mesma forma - e guardadas as devidas proporções, é claro - há muito da teoria dos frankfurtianos que merece atenção na teoria geral do direito, principalmente o seu caráter eminentemente crítico. Uma verdadeira teoria crítica do direito, que se queira como tal, não pode prescindir da pioneira teoria crítica da sociedade, desenvolvida com originalidade e vigor pelo Instituto de Pesquisas Sociais, a partir do famoso manifesto de HORKHEIMER.8

 E, em segundo lugar, o núcleo da Escola também produziu, incidentalmente, textos que tratam do direito. Daremos uma breve amostra.
 
 

A PRIMEIRA GERAÇÃO
De BENJAMIN temos o artigo "Zur Kritik der Gewalt", traduzido para o português, por Willi BOLLE, como "Crítica da violência - crítica do poder", para explorar justamente a ambigüidade do termo "Gewalt", que pode significar violência e também poder.9 Nesse artigo, BENJAMIN fala sobre greve, o papel do direito natural e do positivo e sua origem a partir do espírito de violência/poder. Ressalte-se que, a respeito, há comentário de werner HAMACHER, recentemente publicado no Brasil.10

 De HORKHEIMER, encontramos um capítulo em sua obra sobre filosofia da história, intitulado "Direito natural e ideologia", em que trata das concepções de HOBBES sobre direito natural (livre arbítrio e bem do estado) como ainda presentes em muitas teorias jurídicas da atualide. 11

 De ADORNO, temos três textos. O primeiro deles, "Os tabus sexuais e o direito hoje" (escrito em 1963), publicado em Eingriffe: neun kritische Modelle - do qual há tradução em espanhol - é centrado no problema do tabu (do qual demonstra uma compreensão psicanalítica), que, segundo o autor, está muito presente no terreno jurídico. No direito penal, principalmente, onde a ideologia da opressão sexual se faz sentir no que tange à prostituição, homossexualismo, pedofilia etc. Segundo ADORNO, "tanto en derechos en las costumbres, son vistas con simpatía las formas de comportamiento en que se prolongan formas de opresión social - también a la postre, de fuerza sádica -, mientras que se reacciona inexorablemente contra formas de comportamiento contrarias al proprio orden social que monopolizan la fuerza".12

 No segundo texto, "Contra as leis de emergência"(escrito em 1968), ainda não traduzido, assumindo a condição de não jurista a tratar de assunto jurídico, faz uma vigorosa crítica às legislações de oportunidade, que ameaçam inclusive a democracia.13

 Finalmente, não podemos nos esquecer de dois capítulos que integram, em seqüência, seu opus magnum, a Dialética negativa, com os títulos "A esfera do direito", e "Direito e eqüidade". 14 Nesses capítulos faz uma crítica radical a todo o sistema jurídico a partir da experiência nazista: "Por más que una sociedad sin derecho, como en Tercer Reich, se convierta en presa de la pura arbitrariedad, el derecho conserva en la sociedad el terror, al cual está constantemente dispuesto a recurrir con la ayuda de la ley pertinente."Para ADORNO, o direito tem servido para esconder as desigualdades sociais. A criação de uma segunda realidade (o "mundo jurídico") a partir da amputação de toda experiência particular não pré-juridicizada e a exclusão do que não está nos autos forma um recinto fechado, ideológico, que "se convierte en el poder real gracias a la sanción del derecho como instancia social de control", e sua realização mais perfeita é o mundo tecnocratizado.

 Em MARCUSE, pouco encontramos de referências diretas ao direito, salvo algumas páginas de Psychoanalyse an Politik- já traduzido para o português -, que fazem uma interessante aobrdagem do direito de resistência - a desobediência civil - enquanto direito natural, frente ao direito positivo e as instâncias de poder, concentradas nos monopólios da sociedade industrial.15
 

A SEGUNDA GERAÇÃO

De HABERMAS não há muito o que dizer, já que está na moda. Seu discurso é mais suave, para o paladar neoliberal, e por isso mesmo, segundo Enzo TRAVERSO, ainda está para ser feita uma crítica marxista radical à teoria habermasiana.16 Sua abordagem do direito, no início de sua carreira, ainda era fiel ao pensamento crítico. Veja-se algumas páginas de Mudança estrutural na esfera pública, Para a reconstrução do materialismo histórico, Crise de legitimação do capitalismo tardio e o ensaio "Direito natural e revolução"(de Teoria e práxis).

 Depois, contudo, ao contrário dos demais frankfurtianos, sua abordagem do direito tornou-se dogmática, positivista e conservador.17 A famosa linguistic turn, nesse ponto, não passa de uma guinada à direita, que mal disfarça a fetichização da "comunidade de comunicação ideal"- nada mais que uma utopia,18 criticada até mesmo pela direita.19 Uma corruptela pragmático-lingüística da teoria crítica original de ADORNO e HORKHEIMER. 20 Autolimitada a uma filosofia com intenções práticas, sua teoria veicula uma "moralidade aguada"(na expressão precisa de wolfgang Leo MAAR).21 Como já disse Michael LÖWY, sua utopia neo-racionalista pode significar uma regressão às ilusões liberais do racionalismo do século passado.22

 Segundo João Bosco da ENCARNAÇÃO, a teoria do agir comunicativo, com sua pretensão purista de não assumir qualquer ideologia, transofmra-se ela própria em ideologia, ":um canal vazio onde se pode colocar qualquer líquido", que "sobrevive do não confronto, do conformar-se de uma tábua que não enfrenta, mas que se mantém sempre ao sabor das ondas. Um caniço que não racha porque se curva na direção dovento. Parece que não se trata de uma dialética mas de uma aceitação."23 Isso é verdade, principalmente se levarmos em conta que reconhecidamente adaptou-se às críticas da direita pragmática norte-americana. "Mais que isso, porém, uma forma vazia e elástica, que se amolda procedimentalmente conforme o seu conteúdo. E isso, paradoxalmente, é devido a sua rigidez dogmática, bastante visível."24

 O agir comunicativo, no direito, vem sendo trilhado desde o ensaio "Como é possível a legitimidade por via da legalidade?"(escrito em 1987), até chegar a uma obra centrada no direito: Faktizität und Geltung (Facticidade e validez), que está sendo traduzida por flávio Beno SIEBENEICHLER e será em breve publicada pela Tempo Brasileiro. Nesta obra, faz a defesa do liberalíssimo direito mínimo,25 abandonando teoricamente, segundo Otfried HÖFE, os direitos humanos e apresentando equivocadamente as teorias modernas do direito natural.26

 HABERMAS, na verdade, está longe de ser uma "salvação"para a desconstrução do discurso marxista, operada pelo pós-estruturalismo francês, como queria Perry ANDERSON. 27 Sua teorização, ao substituir a práxis transformadora pela argumentação, ignora o impulso emancipatório da primeira geração da Escola de Frankfurt. 28 Assim, HABERMAS acaba assumindo o papel de neutralizador do próprio discurso marxista, na medida em que atrai para si os pensadores de esquerda com a bandeira de uma teoria pretensamente progressista, 29 e coloca nas demais teorias rótulos de "neoconservadoras" (reservado para os pós-modernos em geral), "metafísicas"(do qual ele mesmo não escapa, segundo Lúcia ARAGÃO)30 e outros adjetivos que servem justamente para desqualificar o discurso de esquerda. A "solução" habermasiana das aporias frankfurtianas implica em conformismo com o modo de produção capitalista. Por isso, hoje há quem defenda a retomada da teoria crítica da primeira geração. 31
 
 

Notas

 1 Recentemente, no Boletim Legislação Trabalhista Bonijuris, o prof. Aluízio Von Zuben publicou um artigo sobre o mito da imparcialidade, em que faz referência a HABERMAS, o que demonstra as possibilidades do tema (O mito da imparcialidade. Boletim Legislação Trabalhista Bonijuris, nº 170, p. 1970 e ss.)

 2 José Paulo NETTO. Lukács e o marxismo ocidental. In: Lukács: um Galileu no século XX. São Paulo: Boitempo, 1966. p.8.

 3 José Guilherme MERQUIOR. O marxismo ocidental. 2ª ed. rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987 . p. 14 e ss. ainda sobre o assunto, consultar Perry ANDERSON (Considerações sobre o marxismo ocidental.São Paulo: Brasiliense, 1989)

 4 Rolf WIGGERSHAUS.The Frankfurt Scholl. Cambridge, Mass.: MIT, 1995. p. 235-6.

 5 Martin JAY. The Dialectical Imagination. Berkeley: University of California Pres, 1996. p. 162 e ss.

 6 Martin JAY, op. cit., p. XV e XXII

 7 Otfried HÖFE. Sur la théorie du droit et de l'État de Habermas: Faktizität un Gelung de Habermas marque-t-il un tournant de la théorie critique? Archives de philosophie du Droit, nº 39. p. 316 e ss.

 8 Max HORKHEIMER. Teoria tradicional e teoria crítica. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1980.p.117 e ss. A ausência de uma verdadeira teoria crítica, nesses termos, já foi reclamada por Eros GRAU (O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1996 . p. 107). Também Prof. Luiz Fernando COELHO, em artigo publicado pelo Boletim Bonijuris,clama por uma oxigenação da teoria do Direito a partir, inclusive, da teoria crítica da Escola de Frankfurt (O pensamento crítico no direito, Boletim Informativo Bonijuris, nº 202, p. 2277)

 9 Walter BENJAMIN. Crítica da violência - crítica do poder. In: Documentos de cultura, documentos de barbárie. São Paulo: Cultrix, 1986. p.160 e ss.

 10 Werner HAMACHER, Aformativo, greve: a "Crítica da violência"de Benjamin. In: A filosofia de Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1997. p. 122 e ss.

 11 Max HORKHEIMER. Direito natural e ideologia. In: Origens da filosofia burguesa da história. Lisboa: Presença, 1984. p. 41 e ss.

 12 Theodor W. ADORNO. Los tabús sexuales y el Derecho hoy. In: Intervenciones: nueve modelos de critica. Caracas: Monte Avila, 1969. p. 107.

 13 Theodor W. ADORNO. Gegen die Notstandsgesetze. In: Gesammelte Schriften, nº 20.1: Vermischte Schriften 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1986. p. 396-7

 14 Theodor W. ADORNO. Dialéctica negativa. Madrid: Taurus, 1975. p. 306 e ss.

 15 Hebert MARCUSE. Psicanálise e política. 2° ed. Lisboa: Moraes, 1980. p. 78 e ss.

 16 Enzo TAVERSO. Marx, sempre presente... In: Em Tempo, nº 287. São Paulo: E. parte, 1996. p. 19.

 17 João Bosco da ENCARNAÇÃO. Filosofia do direito em Habermas.Taubaté: Cabral, 1997 p. 199 e ss. Também Wolfgang Leo MAAR percebe em HABERMAS um positivismo latente, "vinculado à 'recusa'da práxis no âmbito de uma transformação social material "revolucionária'. este positivismo explicita-se principalmente em HABERMAS, tornando-se dominante nos termos exclusivamente 'positivos'de sua apreensão de trabalho e natureza, que impossibilita a apreensão objetiva efetiva dessas realidades". (Wolfgang Leo MAAR. A reificação como realidade social: práxis, trabalho e crítica imanente em História e consciência de classe. In: ANTUNES, Ricardo; RÊGO, Walquiria Leão (orgs.). Lukács: um Galileu no século XX. São Paulo : Boitempo, 1996.p.34)

18 ENCARNAÇÃO, op.cit., p. 200-1. Segundo Daniel BENSAID,a razão comunicativa de Habermas parece mais "a comunhão de santos, na qual se extinguiria todo o conflito e onde o próprio diálogo terminará por se tornar supérfluo"(apud Enzo TRAVERSO, op. cit., p. 19).

 19 MERQUIOR chama de "o Santo Graal do diálogo" o agir comunicativo habermasiano (op. cit., p.277 e ss).

 20 RodrigoAntônio de Paiva DUARTE. Lulács: um Galileu dialético? Praga, nº 1, set./dez. 1996, São Paulo, boitempo, p.149.

 21 Wolfgang Leo MAAR. marcuse: em busca de uma ética materialista. In: MARCUSE, Herbert. Cultura e sociedade, v. I. Rio de Janeiro: 1997. p. 11, 13, 34-5.

 22 Michael LÖWY. A Escola de Frankfurt e a modernidade. Novos Estudo Cebrap, nº 32, p. 119 e ss.

 23 ENCARNAÇÃO, op. cit.,p. 201,204.

 24 ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 201-2.

 25 ENCARNAÇÃO, op. cit.,p. 204.

 26 HÖFFE, op. cit.

 27 Perry ANDERSON. A crise do marxismo: introdução a um debate contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1984.

 28 Rodrigo antônio de paiva DUARTE. Notas sobre açarência de fundamentação'na filosofia de Theodor W. Adorno. Trans/form/ação, nº 17, São Paulo, 1994, p. 39 e ss.

 29 Na arquitetura, esse fenômeno é denunciado por Otília e Paulo ARANTES (Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992. p. 89-90).

 30 Lúcia Maria de CarvalhoARAGÃO. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992. p. 140.

 31 J. M. BERNSTEIN. Recovering Ethical Life: Jürgen Habermas and the future of Critical Theory. London: Routlege, 1995.
 

retirado de: http://www.bonijuris.com/informat.htm