® BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Os direitos sociais na Constituição.

Ives Gandra da Silva Martins Filho

(Síntese da palestra proferida no I Congresso Brasileiro de Direito Constitucional, dias 22 a 24 de outubro de 1998, em Brasília)

1) Os direitos humanos fundamentais — Por uma feliz coincidência, celebramos, neste ano de 1998, duas datas de notável relevância que se relacionam muito de perto: o 50º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (10 de dezembro) e o 10º aniversário da promulgação da Constituição Federal brasileira (5 de outubro). Essa ‘‘coincidência’’ pode servir-nos de ponto de partida para uma reflexão mais aprofundada da relação existente entre essas duas manifestações de ordem jurídica: a primeira, de caráter ‘‘declaratório’’, explicita quais são os direitos inerentes à pessoa humana; a segunda, de caráter ‘‘constitutivo’’, garante ao cidadão brasileiro o gozo desses direitos fundamentais em todo o território nacional.

Ora, ‘‘declarar’’ quais são os direitos humanos fundamentais significa reconhecer que eles ‘‘pré-existem’’ a qualquer ordenamento jurídico nacional: são direitos que decorrem da própria natureza humana. Assim, a Constituição Federal de 1988 não ‘‘constitui’’ determinadas garantias pessoais em direitos: também ela, no que tange aos direitos humanos fundamentais, somente pode ter caráter ‘‘declaratório’’.

Essa é a relação tradicional existente entre o Direito Natural e o Direito Positivo: o ordenamento legal positivo deve albergar os direitos naturais básicos do ser humano, sob pena de instaurar uma ordem jurídica injusta quando houver descompasso entre Direito Positivo e Direito Natural.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, reconhece como núcleo básico dos direitos fundamentais da pessoa humana o direito à vida (III e VI), à liberdade (IV, IX, XIII, XVIII, XIX, XX e XXVII), à igualdade (I, II e VII), à justiça (VIII, X, XI e XXVIII) à segurança (V, XII, XIV, XXII, XXIX e XXX) à família (XVI), à propriedade (XVII), ao trabalho (XXIII e XXIV), à saúde (XXV), à educação (XXVI) e à cidadania (XV e XXI).

Esse núcleo básico podemos denominar de ‘‘normas primárias’’ que compõem qualquer ordenamento jurídico positivo e que cabe ao Estado apenas reconhecer. Todas demais, que constituem a sua grande maioria, podem ser consideradas como ‘‘normas secundárias’’, de livre fixação pelo Estado, observando-se o respeito ao princípio democrático de participação, na elaboração da norma, daqueles que a ela estarão sujeitos.

2) Os direitos sociais na Constituição de 1988. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em relação aos Direitos Laborais (artigos XXIII e XXIV), tratou das três questões básicas de toda proteção ao ser humano trabalhador: o salário justo, a limitação da jornada de trabalho e a liberdade de associação sindical para defesa desses direitos.

Nossa tradição constitucional, no campo dos direitos trabalhistas, remonta a 1934, quando a Carta Política previu o primeiro núcleo de direitos sociais (arts. 120-122). Passamos pela Constituição do Estado Novo (1967), que restringiu esse núcleo (art. 137), pela Carta Democrática de 1946, que o ampliou notavelmente (art. 157), pela Constituição de 1967, emendada em 1969, com nova restrição de direitos laborais (art. 165), até chegarmos, finalmente, à Constituição de 1988, que foi pródiga em ampliar os direitos trabalhistas (art. 7º), a ponto de comprometer a própria atividade produtiva das empresas.

Se, de um lado, o Constituinte de 1988, em relação a muitos direitos laborais, apenas trouxe para o texto constitucional o que já se encontrava previsto na CLT, por outro ampliou muitas dessas vantagens: salário mínimo mais amplo, para abranger os gastos com educação e lazer (IV); jornada semanal de 44 horas (XIII); adicional de 50% para as horas extras (XVI); abono de 1/3 sobre as férias (XVII); licença-paternidade (XIX); aviso prévio proporcional ao tempo de serviço (XXI); adicional de penosidade (XXIII); proteção em face da automação (XXVII); e prescrição qüinqüenal dos créditos trabalhistas (XXIX).

No entanto, para restabelecer o equilíbrio entre o aumento substancial de encargos trabalhistas e a justa retribuição ao capital, a Constituição de 1988 albergou o princípio da ‘‘flexibilização’’ das normas trabalhistas, sob tutela sindical, mediante negociação coletiva, para as seguintes hipóteses: redutibilidade salarial (VI); jornada de trabalho (XIII); e trabalho em turnos ininterruptos de revezamento (XIV).

A flexibilização representa a atenuação da rigidez protetiva do Direito do Trabalho, com a adoção de condições trabalhistas menos favoráveis do que as previstas em lei, mediante negociação coletiva, em que a perda de vantagens econômicas poderá ser compensada pela instituição de outros benefícios, de cunho social, que não onerarão excessivamente a empresa, nos períodos de crise econômica (efeito da globalização) ou de transformação na realidade produtiva (efeito do avanço tecnológico).

Nesse sentido, admitindo-se a flexibilização dos dois pilares básicos do Direito do Trabalho, que são o salário e a jornada de trabalho, todos os demais, ainda que não previstos expressamente, são suscetíveis de flexibilização, na medida em que constituem vantagens de natureza salarial ou garantias do descanso periódico ou circunstancial.

Mais do que isso: admitindo a Constituição o princípio da flexibilização para os direitos sociais, reconhece que não constituem cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º), sendo passíveis de alteração e redução por Emenda Constitucional. Na realidade, o que se assegura ao trabalhador é o direito a um salário justo e uma jornada de trabalho limitada, mas a ‘‘quantificação’’ desse direito é suscetível de adequação às circunstâncias de cada momento.

3) Implementação dos direitos sociais — Apesar de previstos constitucionalmente, alguns dos direitos sociais da Carta Política de 1988 não chegaram a ser implementados, por falta da legislação regulamentadora, exigida pela Constituição. São os casos de: aviso prévio proporcional ao tempo de serviço (XXI); adicional de penosidade (XXIII); e proteção em face da automação (XXVII).

Um dos caminhos da implementação desses direitos na órbita laboral é o da negociação coletiva: sindicatos obreiros, empresas e sindicatos patronais podem estabelecer os parâmetros concretos para torná-los efetivos. No entanto, o Poder Judiciário tem encontrado dificuldades em implementá-los, quando o Poder Legislativo ou o Poder Executivo não tomam a iniciativa de regulamentar tais dispositivos constitucionais.

Se o perfil traçado pelo STF para o mandado de injunção (CF, art. 5º, LXXI) foi o de uma ação declaratória de omissão inconstitucional (MI nº 107, rel. min. Moreira Alves), e não de uma ação constitutiva regulamentadora de dispositivo constitucional, tal instrumento processual tornou-se inócuo para atingir o fim pretendido pelo Constituinte. Já a ação de inconstitucionalidade por omissão (CF, art. 103, § 2), ao não estabelecer sanção para o descumprimento do prazo consignado ao Poder Legislativo para regulamentar o dispositivo constitucional não auto-aplicável, também não oferta instrumento processual eficaz para se implementar o direito social questionado.

Assim, parece-nos que o único instrumento processual passível de ser utilizado para a efetiva implementação dos direitos sociais constitucionalmente garantidos, mas não legalmente regulamentados, é o dissídio coletivo.

O poder normativo da Justiça do Trabalho, de estabelecer normas e condições de trabalho além das previstas em lei (CF, art. 114, § 2º) permite que, ‘‘no branco da lei’’, os tribunais trabalhistas venham a tornar efetivo, para cada categoria, o que a Constituição previu genericamente para toda a classe trabalhadora, mas não chegou a estabelecer os parâmetros concretos de funcionamento. Assim, a sentença normativa, como inovadora da ordem jurídica, teria o condão de sanar a omissão inconstitucional, na medida em que se reconhecer que a remissão ao disciplinamento legal feita pelos dispositivos constitucionais não auto-aplicáveis não se refere apenas à lei ‘‘estrito senso’’, mas a qualquer instrumento normativo com poder de inovar no mundo jurídico, como é o caso da medida provisória.
 
 

Ives Gandra da Silva Martins Filho
Subprocurador-geral do Trabalho, assessor especial da Casa Civil da Presidência da República e mestre em Direito Público pela Universidade de Brasília
 

extraído do site do jornal Correio Braziliense

retirado de http://www.neofito.com.br/artigos/const23.htm
 
 

Copyright © O Neófito