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Presidente de todos os brasileiros?

Plinio de Arruda Sampaio

Só se pode interpretar a mudança do discurso do presidente da República em relação às ocupações de terra como uma retribuição aos votos da bancada ruralista à emenda da reeleição.

Essas ocupações são vistas hoje, por muita gente, como uma pressão democrática destinada a acelerar a reforma agrária, porque, apesar da vastidão do território e da notória ociosidade das terras agrícolas, o Estado brasileiro mostra-se incapaz de assentar os milhões de trabalhadores rurais que não encontram trabalho nas fazendas, não possuem terra alguma para assegurar sua subsistência e não têm qualquer perspectiva de conseguir emprego nas cidades.

 Por A, por B ou por C, os latifundiários acham meios de bloquear essa reforma, repetindo, assim, na base dos mesmos sofismas, um tipo de pressão que vem frustrando - desde a Lei de Terras de 1850 - qualquer intento de democratizar o campo brasileiro.

 Em razão disso, em todos os Estados, milhares de famílias permanecem acampadas, meses e anos a fio, nas proximidades de fazendas notoriamente improdutivas, à espera de que se esgotem todos os meios legítimos e todas as chicanas de que os "grileiros" e latifundiários dispõem para impedir o Estado de desapropriá-las.

Ninguém no governo considera esse atraso como uma forma de violência contra os sem-terra, e ninguém se apressa em mudar a "jurássica" legislação que a possibilita. Mas, quando, diante da inação do Incra e da quebra reiterada de compromissos assumidos, essas famílias transpõem as cercas das fazendas na tentativa de conseguir a solução do impasse, são logo acusadas dos crimes de esbulho possessório e formação de bando e quadrilha.

A percepção desse desajuste entre uma legislação anacrônica e fatos sociais que gritam por justiça tem levado muitos juízes e tribunais a dar-lhes interpretações mais condizentes com a Constituição.

Recente decisão do STJ, concedendo habeas corpus aos líderes do MST presos em São Paulo, expressa bem essa visão.

Em seu voto, o ministro Luis Vicente Cernicchiaro declarou: "A ordem pública precisa ser percebida no contexto histórico. E também assim o modo de atuação das pessoas. É certo, evidente, se a lei formalmente é igual para todos, nem todos são iguais perante as leis. Sabe-se que as chamadas classes sociais menos favorecidas não têm acesso político ao governo, a fim de conseguir preferência na implantação de programa posto na Constituição da República. Quadrilha ou bando, a teor do disposto no artigo 288 do Código Penal, é delito que visa à prática de crimes. Ordem pública, clamor público precisam ser recebidos com cautela. Podem ser geradas artificialmente, para dar a idéia de inquietação na sociedade. Clamor público, ademais, não se confunde com reações (às vezes organizadas) de proprietários de áreas que possam vir a ser desapropriadas pela reforma agrária".

Na linha dessa interpretação, os secretários Belisário dos Santos Jr. e José Afonso da Silva, responsáveis pela atuação do governo Covas no Pontal do Paranapanema, no Estado de São Paulo, têm adotado uma conduta coerente com uma compreensão civilizada do conflito de terras - conflito que, reitere-se, surge unicamente em razão da recusa de poderosos fazendeiros em entregar terras que conseguiram irregularmente e que, nos termos de repetidas decisões judiciais, devem reverter ao aptrimônio público.

 Compreende-se, por isso, a reação viril do secretário Belisário à admoestação que FHC endereçou aos governandores estaduais, no programa "Palavra do Presidente" de 4/2. Nesse programa - certamente para retribuir os votos da bancada ruralista -, ele passou a considerar delito comum o que há meses tratava como reclamo social justo.

Com essa regressão às posturas primitivas da oligarquia rural, FHC chama a si uma grave responsabilidade. A conduta dos chefes de Estado é sempre paradigmática. Bastou o arroubo verbal de terça-feira para que a Polícia Militar do Rio Grande do Sul se arrogasse o direito de desalojar sem-terra, mesmo não tendo mandado judicial.

Essa flagrante transgressão da lei não provocou nos peseudopaladinos da legalidade nem um átimo da indignação que costumam ter contra a ocupação de terras improdutivas por famílias de agricultores sem outra alternativa de sobrevivência. O Jornal "O Estado de S. Paulo", por exemplo, usou a fala presidencial para defender projeto do deputado Jayme Martins, proibindo o Incra de realizar "vistoria administrativa" em terras ocupadas. Se aprovado, esse projeto não terá outro efeito senão o de legalizar falcatruas destinadas a bloquear desapropriações.

Felizmente, ainda que o processo de reforma agrária esteja caminhando a passo de cágado, a consciência da opinião pública sobre sua necessidade e sua urgência tem avançado velozmente. Os surrados argumentos para frustá-la não encontrarão, dessa vez, nenhum eco no seio do povo.

Plínio de Arruda Sampaio, 66, advogado, é membro do diretório nacional do PT, foi deputado federal (1985-91) e constituinte pelo PT-SP.

Retirado de: http://www.sanet.com.br/~semterra/plinio.htm