A Inconstitucionalidade de Normas Constitucionais Originárias - Sua Impossibilidade em Nosso Sistema Constitucional
José Carlos Moreira Alves
Professor Titular da UnB e Ministro do Supremo Tribunal Federal
A tese de que há hierarquia entre normas constitucionais originárias
a dar azo à declaração de inconstitucionalidade de
umas em face de
outras se me afigura incompossível com o sistema de constituição
rígida, como bem observou FRANCISCO CAMPOS (Direito
Constitucional, I, p. 392, Livraria Freitas Bastos S. A., Rio de Janeiro/
São Paulo, 1956) ao acentuar que "repugna, absolutamente ao
regime de constituição escrita ou rígida a distinção
entre leis
constitucionais em sentido material e formal; em tal regime são
indistintamente constitucionais todas as cláusulas constantes da
constituição, seja qual foi seu conteúdo ou natureza".
E repugna,
porque todas as normas constitucionais originárias retiram sua
validade do Poder Constituinte originário e não das normas
que,
também integrantes da mesma Constituição, tornariam
direito
positivo o direito suprapositivo que o constituinte originário integrou
à
constituição ao lado dos demais e sem fazer qualquer distinção
entre
esta e aquelas. É o que, com outras palavras, salienta JORGE
MIRANDA (Manual de Direito Constitucional, II, Nº 72, p. 291, 2ª
ed.
revista, Coimbra Editora, Limitada, 1983) :
"No interior da mesma Constituição originária, obra
do mesmo poder
constituinte (originário),não divisamos como possam surgir
normas
inconstitucionais. Nem vemos como órgãos de fiscalização
instituídos
por esse poder seriam competentes para apreciar e não aplicar, com
base na Constituição, qualquer das suas normas. É
um princípio de
identidade ou de não contradição que o impede. Pode
haver
incontitucionalidade por oposição entre normas constitucionais
preexistentes e normas constitucionais supervenientes, na medida
em que a validade destas decorre daquelas; não por oposição
entre
normas ao mesmo tempo por uma mesma autoridade jurídica. Pode
haver inconstitucionalidade da revisão constitucional, porque a
revisão funda-se, formal e materialmente, na Constituição;
não pode
haver inconstitucionalidade da Constituição."
Por isso mesmo , nossas Constituições republicanas- inclusive
a
atual- não mais contêm princípio distintivo que se
assemelhe ao
constante na Constituição imperial de 1824, que , em seu
artigo 178,
preceituava:
"Art. 178. É só Constitucional o que diz respeito aos limites,
e
atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos
Direitos Políticos,
e individuais do cidadão. Tudo, o que não é Constitucional,
pode ser
alterado sem as formalidades referidas, pelas Legislaturas
ordinárias."
Ao contrário, delas resulta a estrita observância do principio
da
unidade da constituição. Assim, na atual Carta Magna "compete
ao
Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição"(artigo 102, caput), o que implica dizer que
essa
jurisdição lhe é atribuída para impedir que
se desrespeite a
Constituição como um todo, e não para, com relação
a ela, exercer o
papel de fiscal do Poder Constituinte originário, a fim de verificar
se
este teria, ou não, violado os princípios do direito suprapositivo
que
ele próprio havia incluído no texto da mesma Constituição.
Ademais,
essa função de guardião da Carta Magna Federal que
é
expressamente conferida ao Supremo Tribunal Federal ele a exerce
por meio da declaração de inconstitucionalidade no controle
difuso e
no controle concentrado. Ora como reconhece BACHOF (Normas
Constitucionais Inconstitucionais ?, trad. CARDOSO DA COSTA, pgs.
62/63, Atlântida Editora, Coimbra, 1977), "se uma norma
Constitucional infringir uma outra norma da Constituição,
positivadora
de direito supralegal, tal norma será, em qualquer caso, contrária
ao
direito natural", o que, em análise, implica dizer que ela é
inválida,
não por violar a "norma da Constituição positivadora
de direito
supralegal", mas, sim, por não ter o constituinte originário
se
submetido a esse direito suprapositivo que lhe impõe limites. Essa
violação não importa questão de inconstitucionalidade,
mas questão
de ilegitimidade da Constituição no tocante a esse dispositivo,
e para
resolvê-la não tem o Supremo Tribunal Federal- ainda quando
se
admita a existência desse direito suprapositivo- competência.
A
propósito, bem acentua JORGE MIRANDA (ob. cit., II, nº 72,
p. 290)
:
"...não cremos que, a dar-se qualquer forma de contradição
ou de
violação dessa axiologia, estejamos diante de uma questão
de
inconstitucionalidade, mas sim diante de uma questão que a
ultrapassa, para ter de ser encarada e solucionada em plano diverso-
no da Constituição. O que não poderá haver
será
inconstitucionalidade: seria incongruente invocar a própria
Constituição para justificar a desobediência ou a insurreição
contra
as suas normas".
Ademais, a propósito BACHOF (ob., cit., ps. 54 e segs.), que
distingue a inconstitucionalidade de normas constitucionais por
contradição com normas constitucionais de grau superior da
inconstitucionalidade das normas constitucionais por "infração
de
direito supralegal positivado na lei constitucional", reconhece que,
quanto à primeira dessas duas hipóteses, o constituinte originário,
por não estar vinculado, ao direito suprapositivo, inexistente no
caso,
tem liberdade para determinar quais sejam essas normas
constitucionais de grau superior, podendo, igualmente, estabelecer
exceções a elas, no próprio dispositivo que as encerra
ou em outro,
salvo se essas exceções forem arbitrárias.
Portanto, não tendo o Supremo Tribunal Federal, como já se
salientou, jurisdição para fiscalizar o Poder Constituinte
originário,
não pode ele distinguir as exceções que, em seu entender,
sejam
razoáveis das que lhes pareçam desarrazoadas ou arbitrárias
para
declarar estas inconstitucionais. E isso sem considerar que a
restrição admitida por Bachof é incongruente, pois
quem é livre para
fixar um principio o é também para impor-lhe exceções.
Por outro lado, as cláusulas pétreas não podem ser
invocadas para a
sustentação da tese da inconstitucionalidade de normas
constitucionais inferiores em face de normas constitucionais
superiores, porquanto a Constituição as prevê apenas
como limites
ao Poder constituinte derivado ao rever ou ao emendar a Constituição
elaborada pelo Poder Constituinte originário, e não como
abarcando
normas cuja observância se imponha ao próprio Poder constituinte
originário com relação às outras que não
sejam consideradas como
cláusulas pétreas e, portanto, possam ser emendadas. Como
observa
Gilmar Ferreira Mendes (Jurisdição Constitucional, p. 120,
Ed.
Saraiva, São Paulo, 1996), a admissão dessas cláusulas
decorrem de
concepção que foi desenvolvida por CARL SCHMITT na vigência
da
Constituição de Weimar e que não se coaduna com a
aceitação da
tese da hierarquia entre normas constitucionais: "as emendas
constitucionais haveriam de pressupor uma Constituição e
seriam
válidas em virtude desta Constituição" e, portanto,
"nesse sentido,
uma mudança da Constituição seria apenas possível
se preservasse a
identidade e a continuidade do texto constitucional como um todo".
Daí, acentuar SCHMITT (Teoria de la Constitución, ps. 122/123,
Editora Nacional, México DF, 1966):
"Las decisiones políticas fundamentales de la constituicion son
asuntos propios del poder constituyente del pueblo aleman y no
pertenecem a la competencia de las instancias autorizadas para
reformar y revisar las leyes constitucionales. Aquellas reformas dan
lugar a un cambio de constitucion; no a una revision constitucional";
Para, mais adiante, tirar esta conclusão:
"Si por uma expressa prescripcion legal- constitucional se prohibe
uma cierta reforma da la Constituición, esto no es más que
confirmar
tal diferencia entre revision y supresión de la constitución".
Por isso, não se limitam as cláusulas pétreas a princípios
que
poderiam decorrer do direito suprapositivo ou supralegal a que
estaria sujeito o constituinte originário, direito esse caracterizado
por
BACHOF (ob. cit., p. 80) como direito natural, "não no sentido de
princípios regulativos, mas no de normas de conduta imediatamente
jurídico - vinculativas" encerrando " aquele mínimo sem o
qual uma
ordem já não merecia a qualificação de ordem
jurídica ". Assim, por
exemplo, a forma federativa de Estado - uma de nossas cláusulas
pétreas atuais - nada tem que ver com esse mínimo.
Não pode, pois, o Supremo Tribunal, em controle de
constitucionalidade difuso ou concentrado, fiscalizar o Poder
Constituinte originário, quer em face do direito suprapositivo não
positivado na Constituição, quer diante do direito suprapositivo
não
positivado na Carta Magna, quer com base em normas
constitucionais que seriam de grau superior ao das demais.
retirado de: http://www.geocities.com/WallStreet/2649/moreira.html