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O Direito aos Direitos - Reflexões sobre racionalidade jurídica moderna e pluralismo jurídico

MARCUS AUGUSTO MALISKA - Advogado

Um tema que está presente na crítica jurídica e necessariamente requer uma discussão mais profunda sobre seus alcances é o pluralismo jurídico. Sua presença nos meios acadêmicos intensifica a problemática das possibilidades de uma crítica jurídica sobre esse viés, como também faz surgir alternativas que procuram interpretá-lo não como um ideal de modelo jurídico, mas como elemento de uma teoria crítica que também deve atuar perante a racionalidade jurídica estatal.

Inicialmente cumpre observar que a alternativa paradigmática fundada na perspectiva pluralista, contraposta ao modelo atual identificado como monista, resta insustentável. O pluralismo jurídico, enquanto elemento identificador da existência de ordens jurídicas para além do Estado não se sustenta como alternativa ao modelo jurídico estatal. A contraposição entre as ordens jurídicas extra-estatais, possuidoras de um direito emergente, novo, legítimo, e a ordem jurídica estatal, caracterizada como elitista, conservadora e marginalizadora, não contribui para a construção de um novo paradigma, pelo contrário, apenas vem indicar a existência de uma miscelânea de códigos e critérios jurídicos. Os aspectos bloqueante e destrutivo de algumas jurisdicidades extra-estatais perante a jurisdicidade do Estado, reforça a tese de que pensar o plural sem a mediação do singular, significa afastar conquistas universais da humanidade, como a democracia, o Estado-de-Direito, o devido processo legal e outras. Desta forma, resta superar a contraposição existente entre pluralismo e monismo e conceber a teoria jurídica como elemento integrante tanto da jurisdicidade estatal como das jurisdicidades extra-estatais.

A insuficiência do paradigma pluralista na compreensão do fenômeno jurídico não o afasta da crítica jurídica, mas redefine-o para um papel de elemento integrante de uma crítica maior. Sendo assim, a crítica jurídica, tanto como atividade teórica ou ação política prática, encontra nos planos da racionalidade jurídica moderna uma inesgotável fonte de pesquisa e reflexão sobre o direito. O paradigma pluralista cede lugar à análise que tem na racionalidade jurídica moderna sua base. Como atividade teórica, os planos da racionalidade possibilitam ao estudioso visualizar o fenômeno jurídico como um conjunto de elementos que integram o direito, tanto como jurisdicidade estatal ou expressões plurais do direito enquanto racionalidade material. A atividade política prática possibilita indicar os instrumentos que necessitam os operadores do direito no trabalho de construção da cidadania. Enquanto atividade de aglutinação de intelectuais críticos, tanto na academia como na atividade profissional, o discurso da racionalidade jurídica identifica-se com os atores jurídicos, que são fundamentalmente técnicos do direito, e toda possibilidade de construção crítica ganha grande impulso se relacionada com a atividade profissional.

A racionalidade jurídica moderna é expressão de três planos: racionalidade jurídica normativa, racionali- dade jurídica formal e racionalidade jurídica material.1 O pluralismo jurídico está identificado no plano da racionalidade jurídica material, campo próprio de interesses, disputas políticas, lugar de divergências. Enquanto expressão de interesses, o pluralismo jurídico não se constitui no objetivo a ser buscado pela racionalidade, que justamente tende ao contrário, ou seja, ao caminho da previsibilidade, da garantia, do cálculo. A racionalidade voltada à interesses pode ser expressão de irracionalidade na medida que não existem critérios formais pré-estabelecidos. Na defesa de um interesse, o agir humano tende até mesmo ao irracionalismo. A racionalidade material somente é possível se conjugada com a racionalidade formal. O critério de validade formal é indispensável na compreensão do direito moderno, onde a luta pela positivação de direitos retrata posições divergentes.

O critério formal da racionalidade jurídica contribui à identificação das expressões plurais do direito como negadoras dos princípios da racionalidade normativa. Esta consubstancia os valores universais da humanidade, válidos em todas as épocas e indiferentes às ideologias. Quando ordens jurídicas extra-estatais promovem um direito violador da racionalidade normativa, resta como única alternativa viável a intervenção do Estado. O exemplo típico é o poder dos traficantes de drogas nas favelas cariocas, que mediante atos verdadeiramente despóticos, impõem toque de recolher, lei do silêncio, autorização para locomoção, etc. O critério formal, nesta hipótese, possibilita o restabelecimento da ordem, necessária em locais onde os mais basilares direitos da pessoa são constantemente violados.
O pluralismo jurídico caracteriza-se por dois sentidos: o negativo e o positivo. O sentido negativo está presente nas ordens jurídicas violadoras dos princípios da racionalidade jurídica normativa. Perante tais ordens torna-se necessária a intervenção estatal para restabelecer a ordem jurídica do Estado. A rigor, nestas hipóteses, não se estaria falando em pluralismo jurídico, mas em ordens paralelas ao Estado que procuram enfrentá-lo. O sentido positivo do pluralismo jurídico, ou pluralismo jurídico propriamente dito, é encontrado nas auto-regulações, ou seja, nas ordens jurídicas extra-estatais que propriamente não entram em confronto com a ordem do Estado, e sim reproduzem a ordem estatal e consequentemente a ordem jurídica normativa. O único sentido possível de pluralismo jurídico é aquele que estende, para além do Estado, a possibilidade de expressão do jurídico. Para isso, é necessário a interação entre o Estado e as ordens jurídicas extra-estatais, ou seja, entre a racionalidade formal e racionalidade material.

A mítica de que o Estado representa unicamente os interesses burgueses é o grande equívoco que sustenta a alternativa pluralista. A construção de uma nova sociedade através de caminhos alternativos, fora dos procedimentos da democracia formal, esteve muito presente no Brasil, por exemplo, durante o regime militar. A falta de democracia apresentava o caminho alternativo como a única saída. O momento atual é outro, a democracia formal possibilita o atuar crítico dentro da estrutura do Estado. A ação política se dá através dos mecanismos democráticos existentes.

A busca de expressões do jurídico para além do Estado, enquanto necessidade de sociedades sempre mais complexas, não inviabiliza o cami- nho inverso no sentido de investir contra o Estado para democratizá-lo, descentralizá-lo e publicizá-lo. A tradição de Estados como o brasileiro, marcados pela cultura patrimonialista privatista, sempre inviabilizou a construção da cidadania e o papel do Estado como provedor do bem comum. A necessidade de atuar perante o Estado, revertendo a tradição e efetivando direitos já garantidos, constitui-se num papel importante que realça o trabalho do operador jurídico na estrutura jurídica estatal.
As lutas pela positivação e efetivação de direitos se dão em várias frentes. Enquanto sociedade civil organizada, os movimentos sociais constituem-se em importantes atores sociais, pois suas atividades de pressão, aglutinação e reivindicação de interesses compartilhados legítimos expressa a necessidade do atuar político consciente, conhecedor dos limites da atividade política e desvinculado de posturas idealistas, possíveis somente no campo da utopia. Por outro lado, a atividade do operador jurídico crítico somente alcança objetivos consideráveis se vinculada a sua atividade profissional. Neste sentido, a atividade política está presente também no ministério público, na magistratura, nas procuradorias, na advocacia, na academia e outras.

Em suma, o pluralismo jurídico enquanto único elemento de crítica está superado. A necessidade da compreensão do pluralismo jurídico como também integrante do direito moderno, afasta a contraposição entre pluralismo e monismo e identifica o direito como racionalidade estatal (formal) e extra-estatal (material). É indispensável identificar pluralismo jurídico como auto-reprodução autônoma da jurisdicidade estatal, enquanto expressão do jurídico para além do Estado. Mesmo admitido como possibilidade do jurídico para além do Estado, o movimento crítico deve conciliar espaços jurídicos extra estatais com espaços jurídicos estatais. O trabalho de publicização do Estado constitui-se na implementação dos valores da modernidade. A busca de alternativas extra-estatais deve conciliar com a jurisdicidade estatal, de verdadeiramente fazer do Estado um ente presente e cumpridor de seus deveres perante a sociedade.

Democratizar e dar efetividade ao Estado talvez constitua-se na tarefa principal do operador jurídico.

Artigo retirado da internet: http:www.trfi.gov.br/Enfoque Jurídico