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O Juiz e a Lei

FERNANDO DA COSTA TOURINHO NETO - Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região

1 - As decisões, sejam do juiz do primeiro grau, do segundo, dos Tribunais Superiores ou do Supremo Tribunal Federal, que não atendem aos clamores do povo, que não produzem um resultado efetivo e útil para a sociedade, são, parodiando Vieira, "tiros sem balas; atroam, mas não ferem". Nada resolvem, complicam. Não solucionam conflitos, criam.
2 - As leis devem conter as normas já estabelecidas pelo povo e o que esse povo entende que é necessário para ser feliz. Daí ter Montesquieu assinalado que as leis devem ser "adequadas ao povo para o qual foram feitas", considerados o clima; a qualidade do solo; o gênero de vida; o grau de liberdade "que a constituição pode permitir"; a religião dos habitantes; suas inclinações, costumes etc.

Exemplos temos às mãos cheias em nosso país. Explica Jacques Lambert, em "Os dois brasis", que a "comunidade rural do interior vive fora do alcance da lei e segue os seus próprios costumes".
Fui Promotor Público em municípios do sertão da minha querida Bahia. Lá, aquele que plantava estava obrigado a cercar, contrariando frontalmente o § 3º do art. 588, do Código Civil, que dispõe que a "obrigação de cercar as propriedades para deter nos seus limites aves domésticas e animais, tais como cabritos, porcos e carneiros, que exigem tapumes especiais, cabe exclusi- vamente aos proprietários e detentores". Numa ação que envolva tal questão, o juiz deve obedecer à lei?

Já é pacíficio que o reajustamento das prestações da casa própria deve estar relacionado com o reajuste do salário do mutuário, ainda que o contrato assim não preveja, pois a liberdade de contratar não pode transformar-se em instrumento de opressão.
E que dizer-se do tribunal quando, em ação cautelar, suspende a eficácia da coisa julgada?
Não reconheceu o Supremo, sem que houvesse lei, as conseqüências advindas da união de concubinos (súmula 380)?

3 - As leis não podem abarcar toda a complexidade da vida.
A força da lei não está na fonte formal de onde promana e sim da aceitação que obtém na sociedade. Isto porque "o Povo é, não só depositário do seu Direito, mas também seu emissor", como lembrado por Edmond Picard, que explica com grande perspicácia: "O Povo deve ser governado não para servir de corpo de experimentação às lucubrações pessoais dos legisladores, mas para orientar, executar as suas próprias indicações, para realizar o Ideal que ele segrega".
Se o legislador se afasta dos anseios populares a lei que produz é de má qualidade: ao invés de ordenar, de disciplinar, prejudica, gera conflitos. Não tem pois legitimidade. Logo, o juiz não pode aplicá-la, pois lhe é lícito, como afirmado por Eduardo Espínola, deixar de aplicar a lei que não corresponde às necessidades sociais (in A Jurisprudência dos Tribunais, sua função e técnica, nas Pandectas Brasileiras, vol. I, 1ª parte, pp. 7 e segs.).

Lembremo-nos de que, geralmente, são os grupos econômicos que elegem os congressistas, que, assim, na verdade, representam os interesses desses grupos e não os do povo. As leis são, em verdade, elaboradas por uma elite divorciada da realidade social. Não esqueçamos, também, que, hoje em dia, quem legisla é o Poder Executivo, mediante medidas provisórias, que têm por objetivo, na sua quase maioria, fortalecer o Governo, e não buscar a melhoria do povo.
Não se pode entender a lei como a comparou certo juiz inglês: "A lei, como o Hotel Ritz, está franqueada aos ricos e aos pobres, indistintamente". (cf. A idéia de lei, de Dennis Lloyd). Mas só os ricos a ela poderiam ter acesso. A lei assim deve ser interpretada?

4 - Para deixar de aplicar a lei injusta não é difícil. Se o julgador não encontrar a solução no art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, encontrará, certamente, no art. 3º da Constituição Federal.
Se a lei contraria esses princípios não pode, não deve, o juiz aplicá-la. O Juiz não pode ser prisioneiro da lei. Se a lei contraria a vontade popular, deve o juiz afastá-la, e julgar procurando o justo, isto é o que satisfaz a coletividade. Cabe ao juiz fazer justiça, e em busca dessa justiça deve até julgar contra a lei que está sob seu exame. E sempre para isso encontrará amparo no ordenamento jurídico. Não é o forte que é justo; é o justo que é forte. A injustiça, em qualquer grau, deve ser repudiada. Ensionou Pontes de Miranda: "Ainda quando o juiz decide contra legem scriptam, não viola o direito, se a sua decisão corresponde ao que 'se reputa direito'" (In Comentários ao Código de Processo Civil). Não esqueçamos do que afirmou Plutarco: "O mais alto grau da injustiça é não ser justo e, todavia, parecê-lo".

Luiz Fernando Coelho, em a Lógica jurídica e interpretação das leis, foi feliz quando explicou:
"a velha questão de como deve o magistrado conduzir-se em face da lei 'injusta' nos parece inteiramente superada, e pasma que autores eminentes ainda tenham dúvidas teoréticas sobre a sua solução; a nós se configura evidente que deve prevalecer a justiça, o que possibilita ao magistrado corrigir a lei ou declará-la inaplicável. Essa correção todavia não implica a prolação de uma sentença contra legem, pois, se a norma jurídica é portadora da valoração independente, importa descobri-la no contexto dos demais valores sociais, isto é, conduzir a norma de direito ao seu lugar no quadro geral das valorações; o que a hermeneutica tradicional considera, portanto, uma decisão contra legem nada mais é do que a exclusão a que o juiz procede das valorações 'estranhas' que a norma possa constituir, porque contrárias aos 'princípios gerais do direito' ".
Certíssimo. Cícero já proclamava que a lei injusta não tem caráter de lei. E Platão dizia que "a verdadeira lei é somente a justa e não a injusta, ainda que os ignorantes tenham esta última como lei". Campos Sales, na exposição de motivos do Decreto 848, de 1890, pregava que o juiz pode negar sanção à lei se lhe parecer injusta.

Magistral foi Ihering (In A luta pelo Direito):
"Qualquer norma que se torne injusta aos olhos do povo, qualquer instituição que provoque seu ódio, causa prejuízo ao sentimento nacional de justiça, e por isso mesmo solapa as energias da nação; representa um pecado contra a idéia do direito, cujas conseqüências acabam por atingir o próprio Estado, que por ele terá de pagar com juros (...)"
O juiz não cumpre seu dever quando decide de acordo com a lei, e sim quando julga fazendo justiça. A lei não é o direito. A lei é geral, impessoal, fria. O direito é o que juiz diz, após estudar o caso concreto, examinar os fatos com sentimento, com calor, verificar o sofrimento das pessoas. Daí poder-se afirmar que o direito não é neutro, é fruto do amor, da harmonia, do justo.

A sentença não pode ter, portanto, apenas por finalidade declarar o direito preexistente, declarar a vontade da lei reguladora do caso concreto. O juiz para bem julgar deve ter sensibilidade, observar os princípios criados pelo povo. Se "as teses da matemática não são certas quando relacionadas com a realidade, e, enquanto certas, não se relacionam com a realidade", segundo Einsten, imaginem as leis.

5 - O juiz não é legislador. Certo. Mas, também, não é um mero aplicador de leis. Não é la bouche qui prononce les paroles de la loi. Não é um ventríloquo. Não é um porta-voz do sistema. O juiz não pode, no entanto, julgar impondo suas idéias personalíssimas. Isso não. O juiz julga auscultando os anseios populares. Ao invés de ser um mero intérprete da lei, é um intérprete do desejo do povo. Atente-se em que todo poder emana do povo (Constituição Federal, art. 1º, parágrafo único). Logo, o poder do juiz está legitimado pelo povo. Daí advém a sua força. O justo não é, pois, o que o juiz entende, fruto de seus condicionamentos, de suas crenças, de suas opções políticas, religiosas. Não. O justo é o que o povo estabeleceu como valores essenciais para a manutenção de uma vida feliz. A lei injusta é aquela que contraria os princípios gerais do direito; é a que destoa do sentimento de justiça preponderante na sociedade, refletido, sedimentado.

O juiz apenas revela o sentimento da sociedade. Logo, não há arbítrio do juiz ao julgar procurando o justo de acordo com o entendimento do povo. Não há, pois, o perigo da subjetividade. Está, conseqüentemente, ultrapassado o juiz que aplica o silogismo: premissa maior (a lei), premissa menor (o fato concreto), conclusão (sentença). Este é o juiz agente, ainda que inconsciente, das forças dominantes do Estado; é o juiz que está preso à ideologia inserida na lei. O juiz que tem os olhos fitos tão somente na lei perde a liberdade de perceber o que se passa na sociedade, não vê a realidade social. É um escravo da lei.
O juiz jamais pode ser neutro. É impossível. Está sempre comprometido, ou com o sistema ou com o justo pensado pelo povo. O juiz deve ser, sim, imparcial. Não indiferente.

6 - E a segurança, hão de perguntar, como fica ?
Perguntemos, antes: Qual o valor mais importante, a segurança ou a justiça? Se for a primeira, a tortura é válida. E mais: a segurança de quem? Dos grupos dominadores?
Profetizava Isaías: "O produto da justiça será a paz, o fruto da eqüidade, perpétua segurança".
A justiça é um valor superior à segurança. Disse Recasens Siches: "La seguridad es el motivo radical o la razón de ser del Derecho; pero no es su fin supremo. Este consiste en la realización de valores de rango superior. Ciertamente, la seguridad es también un valor, pero en relación com la justicia es un valor inferior (In Vida humanda, sociedade y derecho).
O direito alternativo, portanto, é o direito gerado, espontaneamente, na sociedade, no seio do povo; é o que emerge paralelamente ao ordenamento jurídico oficial. É o direito em contraposição ao direito oficial (dogmático), estabelecido pelo Estado.

7 - Enfim, lembremo-nos da lição de Confúcio: "O homem se distingue dos outros seres pelo seu sentido de justiça".

Artigo retirado da internet: http:www.trfi.gov.br/Enfoque Jurídico