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A Filosofia da História de Kant em Norberto Bobbio

Marcelo Aversa

 

INTRODUÇÃO

 

A discussão sobre os Direitos do Homem, como ponto central da Filosofia do Direito, perdeu importância ao longo do século passado à medida que o juspositivismo consolidava sua unidade na forma, em oposição a proposta de unidade substancial ou material do jusnaturalismo. Após a II Grande Guerra, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 10 de dezembro de 1948 pela ONU, a crítica dos jusnaturalistas ao juspositivismo ganha uma dimensão valorativa e ideológica. Pois, é inegável que o totalitarismo de países como Itália, Alemanha e Espanha, a partir da década de vinte, nos revelou a limitação epistemológica da Filosofia do Direito tradicional; de um pensamento jusfilosófico que não deu conta da "não-razoabilidade", na expressão de Celso Lafer, dos regimes nazi-fascistas. "O amorfismo jurídico que caracteriza o Estado totalitário torna sem utilidade prática a definição do Direito pela forma... De fato —e nisto está o ineditismo da ruptura— o totalitarismo é uma proposta de organização da sociedade que escapa ao bom senso de qualquer critério razoável de Justiça, pois se baseia no pressuposto de que os seres humanos são, e devem ser encarados, como supérfluos" (grifamos).

 

Não só os regimes totalitários do início de nosso século, como também os chamados regimes burocráticos autoritários dos anos 60 e 70 do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Portugal e Grécia, e não deixando de citar a URSS de Stalin, colocaram em questão o formalismo jurídico. O positivismo jurídico clássico retira da discussão de um sistema jurídico a legitimidade de quem faz a lei ou os critérios de estabelecimento do poder. Assim, em detrimento da relação do direito com o fenômeno social, ressalta o caráter lógico-formal dos aspectos da validade e eficácia da norma. Esta perspectiva lógica de subsunção do fato à norma terá, contudo, para as correntes adversárias uma conseqüência no plano da Ética Jurídica.

 

A partir das experiências dos regimes fascistas temos uma reordenação do problema da Filosofia do Direito. Segundo Elías Díaz, que se baseia no trabalho de Norberto Bobbio Natureza e função da Filosofia do Direito, de 1962, pode-se constatar uma convergência entre os jusfilósofos, a partir de uma ou outra terminologia, ao subdividirem o conteúdo da Filosofia do Direito em três áreas de discussão: a) Teoria do Direito, como ontologia jurídica, que ao estudar o ser do Direito realiza a compreensão totalizadora do sentido do Direito no mundo, na realidade humana e social, portanto, como totalização e compreensão transcendental crítica dos resultados da Ciência Jurídica, Sociologia Jurídica, História do Direito, etc; b) Teoria da Ciência do Direito como estudo da metodologia e dos procedimentos lógicos utilizados na argumentação jurídica e no trabalho de aplicação e realização do Direito no sentido diferenciado introduzido pela lógica moderna a partir da lógica simbólica e da nova retórica; c) e, Teoria da Justiça como análise que determina a posição ideológica da experiência jurídica no sentido da valoração crítica do direito positivo. Portanto, esta valoração crítica do direito positivo não diz o que é o direito (ontologia jurídica), nem como é de fato o direito positivo localizado no tempo e no espaço (ciência jurídica) e sim como deve ser o direito posto, em suma, como parte da Ética Jurídica que realiza a análise crítica dos valores como liberdade, paz, igualdade, etc. Não obstante, há que se acentuar que a Teoria da Justiça serve de instrumento crítico para análise do direito positivo, e não como fundamento para o direito posto, pois para Bobbio a discussão sobre os fundamentos dos direitos do homem, como veremos na primeira parte do trabalho, pertence a esfera do "direito racional ou crítico (ou se se quiser, de direito natural, no sentido restrito, que é para mim [ele] o único aceitável da palavra)" (E D, 15).

 

O tema dos direitos do homem obriga o jurista a desenvolvê-lo perpassando por estas três áreas. Na primeira página da introdução do livro A Era dos Direitos, Bobbio sintetiza a discussão dos direitos do homem numa marcante passagem: "sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos (...) Haverá paz estável, uma paz que não tenha a guerra como alternativa, somente quando existirem cidadãos não mais apenas deste ou daquele Estado, mas do mundo" (E D, 1; grifamos). Nosso trabalho tem por finalidade constatar a progressividade histórica dos direitos do homem desenvolvida por Norberto Bobbio a partir da Filosofia da História de Immanuel Kant. L’età dei Diritti reúne palestras do período de 1964 a 1989, por sugestão e auxílio de Luigi Bonanate e Michelangelo Bovero, em que Bobbio desenvolveu o tema em seus três aspectos: o que são os direitos do homem; como são os ordenamentos que regularam e regulam o direitos do homem; e como estes deveriam ser. Percorreremos, portanto, este percurso da discussão de Bobbio que se inicia com a análise do direito que se tem e termina com direito que se gostaria de ter (E D, 15).

 

A Era dos Direitos foi publicada em Turim em 1990, passados quase quarenta anos do seu primeiro escrito sobre a "Declaração Universal dos Direitos do Homem". Este primeiro escrito teve origem numa aula ministrada em 4 de maio de 1951, que Bobbio relendo-o, percebeu a existência de algumas teses das quais não mais se afastou: "os direitos naturais são históricos; estes direitos nascem no início da era moderna, juntamente com a concepção individualista da sociedade; e, tornam-se um dos principais indicadores do progresso histórico" (Idem, 2). Com efeito, este livro é um exame do período histórico de desenvolvimento dos direitos do homem, desde o surgimento do Estado Liberal até o presente momento, desenvolvidos sob a perspectiva científica (empírica) do direito, da história e da sociologia; e, ao profetizar a efetivação dos direitos formalmente proclamados e o nascimento de outros estará buscando descobrir a tendência de desenvolvimento da história da humanidade a partir de um evento elevado a signo desta tendência (Idem, 133 e 134). De maneira que, trata os direitos do homem sob duas perspectivas: a histórica e a teórica. A perspectiva metodológica dos direitos do homem (nos termos do item 2 do terceiro parágrafo) não é analisada por um ensaio específico, mas é examinada ao longo da discussão histórica.

 

Sob a perspectiva histórica Bobbio analisa a inversão radical da relação política que adveio da formação do Estado Moderno: o súdito conquista o status de cidadão, de sujeito que detém parte da soberania. A inversão se deu principalmente em virtude das guerras de religião, "através das quais se foi afirmando o direito à resistência à opressão, o qual pressupõe um direito ainda mais substancial e originário, o direito do indivíduo a não ser oprimido" (Idem, 4). A pressuposição de um direito substancial e originário, parte do princípio que o homem individualmente possua direitos inerentes a sua natureza. Esta concepção se opõe a concepção orgânica da sociedade, que pode ser sintetizada pela máxima de extração aristotélica: "na ordem natural a cidade tem precedência sobre a família e sobre cada um de nós individualmente".

 

A concepção individualista nasce de uma atribuição de direitos naturais aos seres humanos em seu estado pré-político. Dessa forma, a organização social posterior ao contrato social deve respeitar e construir uma Constituição Civil em conformidade a esses direitos. Esta condição hipotética da natureza humana contempla a necessidade de se racionalizar as relações políticas no momento da formação do Estado Moderno, no sentido de limitar o poder do Estado, e assegurar as liberdades individuais. Num segundo momento, são afirmados os direitos de participação dos indivíduos no poder político, os chamados direitos políticos de liberdade. E por fim, com o surgimento de diferentes classes, é exigida a efetivação de novos valores como o bem-estar e os de igualdade não apenas formal, os chamados direitos sociais. Direitos de liberdade, direitos políticos e direitos sociais são fases do desenvolvimento dos direitos do homem, que têm emergido "gradualmente das lutas que o homem trava por sua própria emancipação e das transformações das condições de vida que essas lutas produzem" (Idem, 32).

 

Ainda, sob a perspectiva histórica, Bobbio examina o sentido que a palavra direito adquiriu ao longo do tempo na expressão "direitos do homem", deslocando a discussão para a esfera da "Teoria da Ciência do Direito". Ele faz a distinção entre direitos e exigências, sendo que estas, apesar de fundamentadas em argumentos históricos e filosóficos, não são efetivamente protegidas por uma obrigação correlata; por isso prefere chamá-las por exigências não constitucionalizadas. A partir desta distinção, Bobbio caracteriza as mudanças de status dos direitos do homem nos sistemas jurídicos Estatais e Internacionais, ou seja, demarca as fases de desenvolvimento a partir da previsão destes direitos por um sistema, seja ele nacional ou internacional, que lhes proteja mediante força legitimamente posta. Este entendimento neopositivista do direito pode ser observado na seguinte passagem: "só será possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro do Estado —que é ainda a característica predominante da atual fase— para a garantia contra o Estado" (Idem, 40).

 

Após discutir a História dos Direitos do Homem, Bobbio analisa-os do ponto de vista da "História de Longa Duração". No ensaio que leva o mesmo título do livro, mas que foi pronunciado com diferente título em 1987 na Universidade de Madrid, Bobbio desenvolveu o tema dos direitos do homem sobre a perspectiva da Filosofia da História. Bobbio fundamenta as transformações do mundo, que tentam torná-lo menos hostil, na consciência moral de influência cristã do homem europeu. Partindo, para tanto, de citações kantianas sobre a Revolução Francesa como um indicativo da disposição moral da humanidade para a busca do melhor —mesmo que sem poder predizer um acontecimento futuro a partir desta causa. Após fazer um breve percurso dos códigos morais da antigüidade, conclui que "a moeda da moral foi tradicionalmente olhada mais pelo lado dos deveres do que pelo lado dos direitos", pois, a função primária da lei sempre foi a de comprimir, não a de liberar, a de restringir e não a de ampliar, a de corrigir a árvore torta e não deixá-la crescer selvagemente (Idem, 56 e 57). Nesse sentido, Bobbio evoca o jusnaturalismo como doutrina esclarecida ("aufgeklärten"), que entende o homem como um ser capaz de se desvencilhar da direção de um tutor, ou seja, de agir segundo o seu próprio entendimento: "A doutrina filosófica que fez do indivíduo, e não mais da sociedade, o ponto de partida para a construção de uma doutrina da moral e do direito foi o jusnaturalismo, que pode ser considerado, sob muitos aspectos (e o foi certamente nas intenções dos seus criadores), a secularização da ética cristã" (Idem, 58).

 

Continuando seus comentários sobre o jusnaturalismo, Bobbio afirma que a doutrina dos direitos do homem, desde seu primeiro aparecimento no pensamento políticos dos séculos XVII e XVIII, "já evoluiu muito, ainda que entre contradições, refutações, limitações. Embora a meta final de uma sociedade de [homens] livres e iguais, que reproduza na realidade o hipotético estado de natureza, precisamente por ser utópica, não tenha sido alcançada, foram percorridas várias etapas, das quais não se poderá facilmente voltar atrás" (Idem, 62, grifamos). O que caracteriza a conquista das etapas e, ao mesmo tempo, proporciona a segurança necessária para que não renunciemos a estas conquistas é o processo de positivação dos direitos do homem em Constituições Estatais e em acordos, tratados e convenções internacionais.

 

Com efeito, Bobbio eleva a Declaração da ONU de 1948 a um signo histórico demonstrativo de perfectibilidade da humanidade: "A Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro (Idem, 34; cf. também pp. 139 e 140). A partir desta Declaração, desencadeou-se uma série de outras declarações, tratados e convenções, numa contínua e progressiva discussão sobre os direitos do homem, tanto no sentido da produção material (dos direitos políticos da mulher, da criança, do deficiente mental e físicos), como também no sentido da transferência de poder para organismos internacionais para promover, controlar e garantir em face dos países signatários destes acordos (Idem, 39 e ss). Tornando, dessa forma, os cidadãos dos países signatários sujeitos jurídicos do direito internacional; o que nos possibilitaria profetizar, segundo À Paz Perpétua de Kant, o Direito Cosmopolita. Este que deverá ser o direito público dos homens em geral, cuja infração num lugar seja sentida em todos os outros lugares da Terra (Idem, 139).

 

Para Bobbio "o problema filosófico dos direitos do homem não pode ser dissociado do estudo dos problemas históricos, sociais, econômicos, psicológicos, inerentes à sua realização: o problema dos fins não pode ser dissociado do problema dos meios" (Idem, 24). Portanto, o sentido da história somente pode ser derivado da realidade concreta: os direitos "nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem ou cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências: ameaças que são enfrentadas através de demandas de limitações do poder; remédios que são providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor" (Idem, 6).

 

A filosofia do direito de Bobbio é, conforme o professor José Alcebíades, "a busca de uma idéia de justiça relativizada pelas condições metodológicas de apreensão do saber jurídico no âmbito histórico. Tal idéia, não poderia ser nem absoluta, em sentido jusnaturalístico, nem puramente racional, no sentido platônico ou kantiano, e nem mesmo estritamente empírica, ao modo dos realismos. Assim, se poderia dizer que tinha em mente uma idéia de justiça como uma abstração intelectual elaborada a partir da ‘observação’ de determinadas necessidades fundamentais que se apresentam, num dado momento histórico, como dignas de atenção por parte do cientista". Podemos dizer que Bobbio trabalha no sentido de limitar o idealismo da doutrina clássica liberal sem purificar o direito a ponto de torná-lo tão relativo que sirva para legitimar regimes autoritários. Ele se vale de uma crítica ideológica e valorativa de base filosófica, possibilitando-lhe realizar um estudo sobre os direitos do homem sem reduzi-lo a uma mera abstração aos moldes de um jusnaturalista clássico, e ainda, sem se deixar levar pela cientificidade do formalismo jurídico.

 

Percorrendo a história da filosofia veremos que após a fase dogmática (sistema de wolffiano) e a cética (empirismo de Hume), Immanuel Kant inaugurou a fase crítica. Precisamos retomar a filosofia crítica de Kant para observar como ao mesmo tempo que criticou e limitou o dogmatismo, possibilitou a Metafísica, assim como a física e a matemática, como conhecimento científico. Kant nega o dogmatismo de recurso à Deus para fundar a verdade ou à infinita perfeição divina. Entretanto para admitir Deus, a liberdade e a imortalidade da alma —as três idéias do campo de investigação da Metafísica— a Crítica precisa limitar a razão em suas pretensões de conhecer a coisa "em si": "Tive que suprimir o saber para obter lugar para a , e o dogmatismo da Metafísica, isto é, o preconceito de progredir nela sem Crítica da razão pura, é a verdadeira fonte de toda a sempre muito dogmática incredulidade antagonizando a moralidade".

 

Neste sentido a crítica especulativa expõe as suas limitações em conhecer a liberdade como um objeto concreto, mas demonstra também a possibilidade de uma autodeterminação espontânea da vontade. Reside nesta autonomia de vontade o agir moral kantiano : age de tal maneira que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal. Esta é uma ação livre e incondicionada, que, de outro lado, podem ser pervertidas —quase sempre é— pelas paixões e inclinações da cultura humana que condicionam sua vontade. Ou melhor, trata-se da dualidade kantiana entre o agir puramente moral e o agir condicionado pelo mundo sensível. Kant para evitar um choque entre idéia e realidade, o que resultaria um pensamento revolucionário, propõe uma filosofia da história, uma proposta reformadora, que apazigua à medida que busca um sentido progressivo do devir a partir de um fio condutor a priori revelador do progresso moral da Historia do Mundo ("Weltgeschichte").

 

Na análise da historicidade dos direitos do homem de Bobbio encontramos esta mesma dualidade entre o dever moral e a ação concreta, uma vez que, como já dissemos, trabalha sob duas perspectivas, a teórica e a prática. Sua historicidade se expressa num contínuo processo de conquistas de direitos cujo fio condutor é a universalização dos direitos do homem. Dessa forma é que apresenta um processo progressivo e cumulativo de signos históricos diferenciados por fases. É, portanto, uma inegável marca do kantismo por apresentar um desenvolvimento no sentido da produção normativa e da efetivação dos direitos fundamentais por meio das lutas emancipatórias que revelam a passagem da menoridade à maturidade.

 

 

 

 

    1. A FUNDAMENTAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM

 

O problema da fundamentação do direito é a questão central da Filosofia do Direito. Desta discussão podemos constatar as diferenças cruciais entre as correntes jusfilosóficas. Kelsen no último parágrafo do seu livro O Problema da Justiça estabelece a distinção entre seu positivismo jurídico e a Doutrina do Direito Natural, que nos serve para caracterizar um e outro tipo de fundamento do Direito: "A norma fundamental definida pela Teoria Pura do Direito não é um direito diferente do direito positivo: ela apenas é o seu fundamento de validade, a condição lógico-transcendental da sua validade e, como tal, não tem nenhum caráter ético-político, mas apenas um caráter teórico-gnosiológico". De forma que, para Kelsen somente existe o direito positivo cujo fundamento (a norma fundamental) é apenas pressuposto de validade, e não se refere ao conteúdo de validade do direito positivo; opondo-se ao dualismo do jusnaturalismo que fundamenta o direito posto numa ordem ético-política. Assim, constatamos que enquanto para Kelsen o fundamento é derivado logicamente do pressuposto: "cumpra-se a primeira norma posta"; para o Direito Natural trata-se de um fundamento abstrato teológico para algumas correntes, ou racional para outras.

 

Antes de entrar nas peculiaridades e semelhanças da fundamentação de uma e de outra teoria propriamente ditas, importante é reconstituir o percurso histórico do processo de cientifização do direito. Deste modo, a caracterização das correntes se dará ao longo da explanação; para tanto, nos valemos do "Perfil Histórico" traçado pelo Professor Tércio em seu livro Introdução ao Estudo do Direito - Técnica, Decisão e Dominação.

 

À medida em que o modo de produção feudal perdeu espaço para o capitalista, a sociedade se tornou mais complexa, exigindo um engendramento de soluções cada vez mais técnicas; estando, assim, a cientifização do direito inscrita neste processo. O Professor Tércio nos coloca, com muita clareza, como a dogmática jurídica conseguiu afirmar-se a partir dos seus esforços de justificação doutrinária ou científica: "se o problema antigo era o de uma adequação à ordem natural, o moderno será, antes, como dominar tecnicamente a natureza ameaçadora. É nesse momento que surge o temor que irá obrigar o pensador a indagar como proteger a vida contra a agressão dos outros, o que entreabre a exigência de uma organização racional da ordem social. Daí, consequentemente, o desenvolvimento de um pensamento jurídico capaz de certa neutralidade, como exigem as questões técnicas, conduzindo a uma racionalização e formalização do direito. Tal formalização é que vai ligar o pensamento jurídico ao chamado pensamento sistemático" (grifamos em negrito).

 

Ao longo da Idade Média o dogmatismo da ciência européia foi inserida no pensamento jurisprudencial romano através da aceitação indiscutível das resenhas críticas dos digestos justinianeus. O caráter sagrado imanente à vida e a tradição romana das decisões dos jurisconsultos foi substituído pelo caráter sagrado do cristianismo: "continuando a ter um caráter sagrado, o direito, no entanto, adquire uma dimensão sagrada transcendente com a sua cristianização, o que possibilita o aparecimento de um saber prudencial já com traços dogmáticos; em analogia com as verdades bíblicas, o direito tem origem divina e como tal deve ser recebido, aceito e interpretado pela exegese jurídica".

 

No período do Renascimento iniciou-se o processo de dessacralização do direito. A noção de soberania no Estado Absoluto vincula-se, então, ao poder divino do soberano que deliberava livremente sobre a vida política, social, religiosa e econômica dos súditos. Este modelo de relação política do soberano com o súdito, especialmente com a burguesia, começou a se desgastar à medida que esta não mais iria querer o apoio da nobreza somente para poder expandir seu comércio além mar, mas também para participar do poder. Iniciou-se, assim, a crítica ao poder centralizado a partir da insegurança que gerou para as relações sociais.

 

A racionalização da relação política, com efeito, negou o fundamento divino do direito em favor do racional. Os iluministas propuseram como forma de sociabilidade a república, cujo princípio é a separação dos poderes. O monismo da fonte do direito deixa de ser divino para ser racionalmente constituído pelo estado legislador. O direito "passa a ser visto como uma reconstrução, pela razão, das regras de convivência. Esta razão, sistemática, é pouco a pouco assimilada ao fenômeno do Estado Moderno, aparecendo o direito como um regulador racional, supra-nacional, capaz de operar, apesar das divergências nacionais e religiosas, em todas as circunstâncias ".

Feito este breve percurso histórico do pensamento jurídico, podemos constatar que o processo de sistematização do direito, que em nosso tempo alçou o nível de uma regulação genérica e abstrata do comportamento por normas gerais, manifesta-se no sentido da secularização da teoria jurídica. Podemos, agora, caracterizar e distinguir as propostas de sistematização de Kant, Kelsen e Bobbio.

 

 

 

    1. Fundamento Kantiano: a Liberdade Universal como Fundamento dos Direitos do Homem

 

 

A filosofia política kantiana propõe a liberdade como fundamento último da Metafísica dos Costumes. Para Kant a liberdade é o único direito inato, ou seja o único direito que é transmitido pela natureza independentemente de qualquer ato jurídico. Mas, qual a essência da natureza do homem para Kant? O Professor Ricardo Terra, acompanhando a distinção de Guéroult entre homem essencial e homem real, nos responde: "Para Kant, a natureza é inicialmente o homem essencial, o homem enquanto homem; o que o opõe ao animal, ou seja, sua liberdade, sua razão teórica e prática. Daí se poder falar de direito inato, igualdade natural que cada um possui por ser homem e toda a fundamentação do direito natural na autonomia". Este é o "homem essencial", mas a natureza do homem também possui uma outra dimensão, que é a real, cujo móbil de suas ações tem uma causa condicionada pelo mundo sensível e pelas inclinações e paixões; diferentemente do homem essencial cujas ações são incondicionadas. Desta resposta podemos inferir o que a Revolução Copernicana que Kant realiza na história da filosofia introduz na oposição básica entre autonomia e heteronomia de vontade.

 

A liberdade é o conceito central da filosofia de Immanuel Kant. Este conceito "na medida em que a sua realidade é demonstrada por uma lei apodíctica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura". Através deste conceito, os outros dois da Metafísica (de Deus e da mortalidade) adquirem realidade objetiva, por meio da efetividade da liberdade, que lhes confere a possibilidade de realização. A liberdade é que, portanto, proporciona a unidade sistemática kantiana. Ou melhor, nas próprias palavras de Kant: "eu exijo, para que a crítica de uma razão pura prática possa ser acabada, que se possa demonstrar simultaneamente a sua unidade com a razão especulativa num princípio comum; pois, no fim das contas, trata-se sempre de uma só e mesma razão, que só na aplicação se deve diferenciar".

 

Segundo o Professor Francisco Javier Herrero, Kant se deu conta, depois de vários anos de reflexão sobre a fundamentação moral, em que objetivava realizá-la sob a influência platônica da possibilidade da moralidade na razão teórica, "de que o conhecimento moral tem uma índole toda especial. Trata-se de um saber, que é conhecimento, mas totalmente diverso do saber teórico, porque a necessidade que se implica o dever moral é absoluta e sem condições". Na Crítica da Razão Pura, ao expor os limites a idéia de liberdade transcendental, deixa campo aberto para a realidade prática da liberdade.

 

Ao lado da causalidade natural, cuja causa é determinada ulteriormente por uma outra causa precedente segundo leis necessárias, Kant insere a causalidade por liberdade que é aquela que tem início em si, admitindo-se uma espontaneidade absoluta. Com isto, diferencia a causalidade que se dá no plano do fenômeno (phaenomenon) daquela que se dá no plano da coisa em si (noumenon). A liberdade transcendental é vista como uma esfera regida pela ausência de leis. O contrário se dá na esfera da liberdade natural, em que as ações se conformam às leis naturais. Assim, podemos concluir com o Professor Ricardo Terra que "a liberdade é sem dúvida uma idéia transcendental (o que Kant repete vária vezes), mas não seria uma idéia do mesmo nível das três idéias especulativas básicas: alma, mundo, Deus. No plano da razão prática, entretanto, a idéia da liberdade é da maior importância; as idéias de Deus e de alma ganham realidade prática inclusive por seus vínculos com aquela".

 

Portanto, a crítica especulativa, por um lado, expõe as suas limitações em conhecer a liberdade como um objeto concreto; e, por outro, demonstra a possibilidade de uma autodeterminação espontânea da vontade. Assim, o uso do conceito de liberdade como idéia transcendental é apenas "regulativo e não constitutivo, porque a ele não se pode dar qualquer esquema de sensibilidade correspondente e nem um objeto em concreto". É assim que podemos conceber a liberdade como critério universal de reconhecimento do que é justo ou injusto.

 

O jurista, o operador do direito, não pode estabelecer o que é justo ou injusto (quid sit ius), mas somente qualificar um ato como lícito ou ilícito a partir de um direito de determinado lugar e época (quid sit iuris), ou melhor o direito positivo vigente. O problema da justiça permanece completamente obscuro ao operador do direito, "se não abandonar por um certo tempo aqueles princípios empíricos, e se (ainda que possa servir-se daquelas leis como excelentes fios condutores), não buscar as origens daqueles juízos na razão pura como único fundamento de qualquer legislação positiva possível".

 

Ora, a liberdade como autonomia do querer é sintetizada no imperativo categórico da Fundamentação da Metafísica dos Costumes: age de tal maneira que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal. O indivíduo que quiser ser livre deve-se pautar por esta forma de agir moral e interior. Pois, "a natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse de nenhuma felicidade ou perfeição senão daquela que ele proporciona a si mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão".

 

 

 

    1. Fundamento Kelseniano: Ceticismo Ético

 

Para produzir conhecimento científico do direito, Kelsen parte do pressuposto de inexistência de valores absolutos que fundam o direito posto, apenas reconhece a validade de valores relativos; para ele a validade do direito positivo não pode ser posta na dependência da sua relação com a justiça". A partir desta afirmação, podemos inscrever Kelsen numa proposta diretamente oposta à tese universalizante do jusnaturalismo. Pois, não há e nem pode haver justiça absoluta para um conhecimento racional, uma vez "que se trata de um problema insolúvel para o conhecimento humano —problema esse que, portanto, deve ser eliminado do domínio do conhecimento".

 

Delimitando melhor a proposta kelseniana, Carlos Santiago Nino sintetiza: "sob a influência de concepções filosóficas empiristas e dos postulados do chamado "positivismo lógico", originado no Círculo de Viena, esse autores (Kelsen e Alf Ross) sustentam que os únicos juízos cuja verdade ou falsidade é decidível racionalmente são (com exceção dos juízos analíticos cuja verdade está determinada por sua estrutura lógica) os juízos que têm conteúdo empírico". A proposta de Kelsen é empirista por negar a transcendentalidade kantiana em favor de uma transcendentalidade lógica, pois o seu intento é neutralizar, ou melhor, purificar a teoria jurídica de toda a ideologia política. Ao entender a norma fundamental como pressuposição lógico-transcendental, necessariamente a função desta norma será a de validar objetivamente a ordem jurídica positiva. Nas próprias palavras de Kelsen: "A função desta norma fundamental é fundamentar a validade objetiva de uma ordem jurídica positiva, isto é, das normas postas através de atos de vontade humanos, de uma ordem coercitiva globalmente eficaz, quer dizer: interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo". Assim como uma norma possui seu fundamento de validade numa outra de hierarquia superior, a norma fundamental fornece validade objetiva para a de mais alto grau (a constituição). Portanto, de um lado, a norma fundamental, por derivação lógica, fornece validade objetiva para todo o ordenamento; e por outro, restringe o aspecto subjetivo da vontade humana ao momento da produção normativa, uma vez positivada a norma, ela passa a ser um dado objetivo, um objeto da ciência do direito.

 

O Professor Luiz Sérgio Fernandes de Souza interpreta esta passagem à partir de duas preocupações essenciais de Kelsen: a hierarquia (o sistema) e a força obrigatória das normas. "A Teoria Pura do Direito, na perspectiva de conferir à ciência jurídica uma independência epistemológica, transporta as considerações sobre justiça para o plano de validade, ora concebida como relação hierárquica de normas, ora como força obrigatória de uma norma. O sistema jurídico, pois, é visto como hierarquia de normas autorizantes, derivadas de uma primeira norma posta, que tem como fundamento último a norma hipotética fundamental, também jurídica".

 

Ora, basta o consenso em torno de normas fundamentais para constituir uma sociedade, que a norma hipotética fundamental fornecerá a esta primeira norma posta o fundamento de validade. Assim, não é pertinente ao Direito a discussão sobre o conteúdo das normas positivadas, mas tão somente a sistematização lógica das mesmas, cuja estruturação normas são válidas ou inválidas. Com efeito, a partir deste caráter lógico dedutivo da norma fundamental, existirão tantas normas fundamentais para a constituição social quantas sociedades existirem: "O que é necessariamente comum a todos os sistemas morais possíveis não é outra coisa senão a circunstância de eles serem normas sociais, isto é, normas que estatuem, quer dizer, estabelecem como devida (devendo ser) uma determinada conduta de homens referida —imediata ou mediatamente— a outros homens. O que é comum a todos os sistemas morais possíveis é a sua forma, o dever-ser, o caráter de norma".

 

 

 

    1. Fundamento de Norberto Bobbio: O Relativismo Histórico

 

Norberto Bobbio parte do pressuposto básico de que existe um fundamento dos direitos do homem. Pois, sua aprovação em Assembléia Geral das Nações Unidas da Declaração Universal dos Direitos do Homem por 48 países é prova de uma convicção compartilhada universalmente de que o respeito aos direitos humanos possui um fundamento inquestionável.

 

Bobbio desenvolve a discussão dos fundamentos dos direitos do homem a partir da crítica ao método jusnaturalista de dedução de valores, analisando seus modos de fundamentação dos valores absolutos e as dificuldades de se localizá-los. Análise que motivou um trabalho em sentido racional ou crítico do direito; pois, em suas próprias palavras, "não se trata de encontrar o fundamento absoluto —empreendimento ‘sublime, porém desesperado’—, mas de buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis" (E D, 24).

 

Com isso, inicia a discussão sobre a dedução dos valores. Para se encontrar um fundamento absoluto de um conjunto de valores, pode-se deduzi-los de um objeto constante, como a natureza humana; ou considerar alguns valores como verdades evidentes em si mesmas; ou, ainda, deduzir os valores de um dado contexto histórico em que são aceitos consensualmente (idem, 26).

 

A dedução do fundamento absoluto a partir da natureza humana traria uma garantia universal, pois esta dedução objetiva uniformizaria o ponto de partida através de um dado constante. Entretanto, a natureza humana se apresentou inconstante e mutável ao longo da história, levando-nos a concluir que a tese jusnaturalista da existência de um fundamento absoluto irresistível é uma ilusão. Diga-se ilusão, tendo em vista as modificações que esses direitos sofreram ao longo da história. Derivar direitos diretamente da natureza humana não é necessariamente encontrar uma universalidade que fundamente os direitos do homem.

 

O apelo à evidência se apresenta como irrefutável, pois não se coloca à prova e nem depende de uma argumentação de caráter racional. Porém, ao questionarmos este tipo de fundamentação a partir de uma contextualização histórica, a falha torna-se evidente: a proclamação de valores está adstrita ao conjunto de valores de determinado momento histórico, que varia conforme as lutas travadas na sociedade e com a sucessão de transformações econômicas, tecnológicas¸ sociais e culturais.

 

A terceira forma de deduzir o fundamento absoluto é aquela baseada no consenso que se constata num determinado momento histórico. Esta forma substitui a prova da objetividade pela da intersubjetividade, que se obtém da constatação de um fato histórico demonstrativo do consenso de determinado grupo em torno de determinados valores. Dessa forma, a "Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ser acolhida como a maior prova histórica até hoje dada do consensus omnium gentium sobre um determinado sistema de valores". A Declaração de 1948 vem a comprovar a tese jusnaturalista de ser o consenso geral um fundamento do direito, o que no século XVIII era apenas uma racionalidade (idem, 27).

 

Bobbio adota esta última forma de dedução de valores para localizar os vários fundamentos possíveis dos diretos do homem, e sob esta perspectiva histórica, discute quatro dificuldades para se buscar os fundamentos absolutos dos direitos do homem: o conceito de direitos do homem; o aspecto da variabilidade conforme as condições históricas; a heterogeneidade das pretensões de classes de diferentes pessoas; e a antinomia entre direitos do homem individuais e sociais.

 

A definição. Demonstrando a vagueza da conceituação dos direitos do homem, Bobbio elenca três tipos de conceituações de direitos do homem: a) as tautológicas, direitos do homem são os que cabem ao homem enquanto homem; b) ou aquelas que não tratam de conteúdo, direitos do homem são aqueles que pertencem, ou deveriam pertencer, a todos os homens, ou dos quais nenhum homem pode ser despojado; c) ou ainda, as que ao tratarem do conteúdo, inserem termos avaliativos, direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização humana. A introdução dos termos avaliativos na conceituação abre espaço para adaptação do conceito à ideologia do intérprete, que poderá conceituar levando em conta o aperfeiçoamento da pessoa humana ou o desenvolvimento da civilização. Estabelecendo assim o dissenso, que impossibilita a solução do problema do fundamento absoluto.

 

A variabilidade. A segunda dificuldade é que os direitos do homem variam no curso do tempo. Os direitos do homem vem se modificando e se ampliando com a mudança das condições históricas. No século XVIII eram considerados absolutos, a exemplo da propriedade sacre et inviolable, que vem sofrendo limitações; e os direitos sociais que vieram a ser proclamados somente em nosso século. Isto vem a provar que "não existem direitos fundamentais por natureza", pois não se concebe uma maneira pela qual seja possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos (Idem, 19).

 

A heterogeneidade. Outra dificuldade é a heterogeneidade das pretensões. Entre os direitos compreendidos na própria Declaração, há pretensões muito diversas, até mesmo incompatíveis. Isto se dá na medida da incompatibilidade entre as pretensões de pessoas de classes diferentes. Não se deveria falar em fundamento do direito, e sim em vários fundamentos dos direitos dos homens, de "diversos fundamentos do homem conforme o direito cujas boas razões se deseja defender" (Idem, 20).

 

A antinomia. E por fim, é ilusão a busca de um fundamento absoluto ao se constatar a antinomia dos direitos que se dirigem a todas as pessoas. As declarações compreendem tanto os direitos individuais, que consistem em liberdades (garantidas quando o Estado não intervém), como os direitos sociais, que consistem em poderes (garantidos quando o Estado intervém). As liberdades e os poderes são antinômicos porque a "realização integral de um deles impede a realização integral dos outros" (Idem, 21). Dessa forma, em sendo direitos do homem que se opõem, "é preciso escolher ou, pelo menos, estabelecer uma ordem de prioridade, com a conseqüente diversidade do critério da escolha e da ordem de prioridade". Não podemos esperar uma síntese definitiva entre os conceitos de liberdades e de poderes, mas no máximo uma síntese provisória em permanente tensão, pois a história submeteu a uma dura prova os regimes que pretenderam fazer uma síntese (Idem, 43 e 44).

 

Ao deduzir os valores de um dado consenso determinado historicamente e ao elencar estas quatro dificuldades para se encontrar um fundamento absoluto dos direitos do homem, Bobbio admite os vários fundamentos possíveis. Nega a prova de objetividade, de ordem racional pura, em favor da prova de intersubjetividade baseada na análise do contexto, das "condições, dos meios e das situações nas quais este ou aquele direito pode ser realizado", análise esta, subsidiada pelas ciências históricas e sociais (idem, 24). Ou seja, é uma prova determinada no tempo e no espaço que nos possibilita localizar os fundamentos dos direitos do homem. Entretanto, ao trabalhar sob a perspectiva racional ou crítica do direito entende que "os direitos não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem ou podem nascer. Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o homem ou cria ameaças a liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as suas indigências" (grifamos, ED: 6, e IL:75). Assim, muito embora relativize os fundamentos dos direitos do homem conforme o contexto histórico, Bobbio encontra duas características que se referem aos poderes constituídos: "ou impedir os malefícios de tais poderes ou obter seus benefícios" (ED:6). Com efeito, pode-se inferir que Bobbio abstrai um direito do homem a partir da relação de poder caracterizada pelo conflitivo processo entre opressores e oprimidos em que o direito é o instrumento de força organizada.

 

abstrai uma regularidade conceitual dos direitos do homem: concebe um direito universal ao homem que é o direito de agir no caso de ameaça a sua liberdade ou para providenciar remédios para que o poder intervenha de modo protetor .

 

A perspectiva com que Bobbio trata os fundamentos dos direitos do homem é histórica. E ao relativizar o conceito e os aspectos que envolvem tais direitos, conduz a discussão para a esfera política e ideológica. Para ele, a teoria e a prática dos direitos do homem são inseparáveis. Pois, a cada momento histórico surgem novas ameaças à liberdade para as quais o remédio é a limitação do poder. Portanto, "não se trata de encontrar o fundamento absoluto, mas de buscar, em cada caso concreto, os vários fundamentos possíveis" (idem, 24).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

    1. A HISTORICIDADE DOS DIREITOS DO HOMEM

 

Neste item do trabalho exporemos a historicidade dos direitos do homem proposta por Norberto Bobbio. Sua historicidade, por um lado, volta-se para o problema dos vários fundamentos possíveis à medida que relativiza as conquistas de direitos às transformações sociais ao longo da história européia; por outro lado, indica uma universalização dos direitos do homem a partir da consenso efetivado em declarações, tratados e convenções internacionais. Com efeito, o seu relativismo e o elemento coercitivo das normas de direitos do homem demonstram sua filiação ao juspositivismo; pois, exige como prova da universalidade o consenso internacional que promova a estruturação e garantia de efetivação dos direitos consignados. Feito isto, trabalharemos nos últimos itens a "História de Longa Duração" kantiana no autor italiano, o que nos possibilitará delimitar esta universalidade obtida ao longo da história; sendo que, é este aspecto que o inscreve no chamado neoiluminismo.

 

Na historicidade dos direitos do homem Bobbio constata dois momentos que caracterizam o processo de emancipação e de lutas por direitos fundamentais para a constituição da sociedade. A "Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão" aprovada pela Assembléia Nacional Francesa em 26 de agosto de 1789, e a "Declaração Universal de Direitos do Homem" aprovada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948 são marcos históricos que dão juridicidade às exigências sociais, e que em seus momentos possibilitaram, e ainda hoje possibilitam o surgimento de outros direitos fundamentais. Estes dois momentos são fases de um processo que culmina com a constitucionalização em vários países e a proclamação em várias Convenções e Tratados dos direitos do homem. Bobbio denomina este processo de universalização (E D, 28).

 

A conquista do universalismo dos direitos do homem é um lento processo que constatamos a partir da análise da história política das declarações. Neste processo se observa três fases: a transformação da relação política do antigo regime para a moderna, sistematizada pelo ideário clássico liberal; a passagem da teoria para a prática com a constitucionalização desse ideário no ordenamento dos Estados (declaração de 1789, dos Estados Unidos da América e das monarquias constitucionais do século XIX, por exemplo); e, por fim, a fase em que "a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva": universal por se dirigir aos cidadãos do mundo, e positiva por não serem reconhecidos idealmente, mas efetivamente protegidos contra o Estado que os violar, fase esta conquistada a partir da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 (idem, 30).

 

Do processo de universalização decorrem dois outros: o da multiplicação (idem, 67) e o da internacionalização. Estes três processos se interrelacionam na medida de sua historicidade política, sociológica e jurídica. O primeiro ocorre com a incorporação dos conceitos filosóficos iluministas pela praxis; o segundo com a variabilidade dos direitos do homem conforme o tempo e espaço das transformações econômicas, políticas e sociais; e o terceiro processo, com a adoção desses direitos primeiramente pelos Estados, e após a Segunda Guerra pelos organismos de representação internacional.

 

Com efeito, neste item do trabalho estaremos expondo os fatos históricos que motivaram a conquista dos direitos do homem no mundo ocidental. Deste percurso, Bobbio eleva a signos de um progresso histórico as "Declarações de Direitos", bem como a constituição de "Cortes Internacionais". Assim, ao mesmo tempo que exporemos a historicidade dos direitos homem, estaremos caracterizando o conceito de signo histórico da perfectibilidade do homem. Em suma, percorremos a história dos direitos do homem como já enunciamos na introdução do trabalho: os direitos do homem que nascem no início da era moderna juntamente com a concepção individualista da sociedade, tornaram-se no curso do tempo indicadores do progresso histórico.

 

 

 

    1. Universalização dos Direitos do Homem

 

As normas de condutas sempre foram observadas pela perspectiva dos deveres dos indivíduos e não dos direitos. No cerne desta forma de relação entre governante e governado está a idéia do Estado Paternalista: o pai que conduz seus filhos à felicidade. A "hipótese do homem como animal político, que remonta a Aristóteles, permitira justificar durante séculos o Estado paternalista (e, em sua expressão mais crua, despótica) no qual o indivíduo não possui por natureza nenhum dos direitos de liberdade, direitos do quais, como uma criança, não estaria em condições de se servir, não só para o bem comum, mas nem mesmo para o seu próprio bem" (idem, 75 e 76). Nesta colocação de Bobbio podemos observar a dicotomia da história do pensamento político entre organicismo e individualismo (ver em L D, pp. 45 e ss). Pela concepção organicista dos antigos, os indivíduos não possuem autonomia, no sentido que o Estado é um corpo composto de partes que concorrem para a vida do todo. A Cidade ("Pólis") é por natureza anterior ao indivíduo. Com isso, em apertada síntese constatamos a concepção organicista ao longo da história política do ocidente: na democracia dos antigos exercida através da participação direta e coletiva dos cidadãos num processo de unificação dos interesses para a realização do fim último do animal político, a vida em comum da Polis; na sociedade estamental da Idade Média cujo poder era exercido pelo o Senhor Feudal, que tinha a função social de proteger os súditos e servos; e, no Estado Absolutista, pelo Monarca, que concentrava todos os poderes para conduzir os súditos para o seu bem estar moral, espiritual e material.

 

Com a formação do Estado Moderno, a relação política é modificada pela concepção individualista. A relação política passa a ser observada sob a ótica da proteção dos direitos do indivíduo, que é anterior a sociedade civil (anterior à Cidade). Bobbio descreve essa reviravolta no pensamento político, dizendo que a subverção das relações políticas entre indivíduo e sociedade tornou a sociedade não mais um fato natural, que exista independentemente da vontade dos indivíduos, mas um corpo artificial, criado pelos indivíduos à sua imagem e semelhança para a satisfação de seus interesses e carências, e para garantir-lhes o exercício de seus direitos" (Idem, 15 e 16; cf também F D, 22).

 

O jusnaturalismo moderno é uma construção doutrinária posterior à "luta entre a monarquia e as outras forças sociais (especialmente na Inglaterra), que se concluiu com a concessão da Magna Carta por parte de João Sem Terra (1215)" (L D, 13). Por essas lutas, Bobbio identifica que entre soberanos e súditos se estabeleceram pactos reformadores da tradicional relação —o rei tinha o dever de proteção; e o súdito, o de obediência— à medida que as cartas ampliaram a esfera de liberdade destes ao rediscutir as formas e os limites da obediência. Contraditoriamente, a denominação jurídica desses pactos era a de cartas de concessões soberanas, pelas quais o rei concedia unilateralmente liberdades aos súditos; assim como as cartas constitucionais outorgadas (octroyées) pelas déspotas esclarecidos do século XIX, que por meio de uma ficção jurídica promoviam o princípio da superioridade do rei, não obstante o real processo de limitação dos poderes tradicionais e absolutos da realeza.

 

Neste contraditório processo de limitação do poder absoluto, os iluministas proporcionaram uma unidade geral ao movimento revolucionário que determinou a Revolução Francesa. O papel dos "filósofos" e "economistas" foi o de sistematizar a ideologia burguesa. Neste ponto, "podem ser, com justiça, considerados responsáveis pela Revolução. Ela teria ocorrido sem eles; mas eles, provavelmente, constituíram a diferença entre um simples colapso de um velho regime e a sua substituição rápida e efetiva por um novo".

 

Pela concepção geral e hipotética da natureza de homem do jusnaturalismo moderno, concebe-se um limite externo ao poder do Estado decorrente de "um direito que não é proposto por vontade alguma, mas pertence ao indivíduo, a todos os indivíduos, pela sua própria natureza de homens, independentemente da participação desta ou daquela comunidade política": um direito preexistente ao Estado, e perante o qual o Estado Civil deve reconhecimento; e, garantia integral à medida que o Estado reconhecer e assegurar o efetivo exercício destes direitos (P Kant, 15). Dessa forma, a concepção individualista do contratualismo transformou as relações políticas ao elevar à condição de cidadão (sujeito de direitos e deveres), o súdito (apenas sujeito de deveres, segundo o modelo absolutista), contribuindo para a racionalização do poder estatal.

 

O processo de limitação do poder absoluto culminou com a positivação dos direitos do homem no interior dos Estados, tendo como marcos históricos as "Declarações de Direitos" proclamadas em 1776 pelos Estados Unidos da América do Norte e em 1789 pela "Assembléia Nacional" da Revolução Francesa. Pois até este momento, os direitos do homem era uma criação filosófica de que o homem enquanto tal possui direitos que lhe são inerentes por natureza, não podendo ser subtraídos por outrém e nem por ele mesmo alienado. Dizer que os homens são livres e iguais com relação ao nascimento ou natureza ideais é realizar uma derivação de direitos de ordem racional, baseado no plano do dever ser, uma concepção teórica e hipotética de natureza humana. Com efeito, a teoria filosófica dos direitos do homem são universais no conteúdo, na medida em que se dirigem a um homem racional fora do espaço e do tempo, mas extremamente limitadas em relação a sua eficácia, pois (na melhor das hipóteses) são propostas para um futuro legislador. Assim, o que determinou a mudança para a fase seguinte, foi a proclamação das Declarações de Direitos do século XVIII. Estas Declarações foram "o ponto de partida para a instituição de um autêntico sistema de direitos no sentido estrito da palavra, isto é, enquanto direitos positivos ou efetivos" (E D, 29).

 

Com a proclamação destas Declarações, o processo de universalização passou por uma segunda fase, a da constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, período da racionalização da relação entre o cidadão e o governante fundada no primado da lei. Segundo Bobbio esta fase se caracterizou pela transformação dos ideais em direitos juridicamente protegidos, isto é, direitos positivos, e por isso, com força coercitiva. "Na doutrina liberal, Estado de direito significa não só subordinação dos poderes públicos de qualquer grau às leis gerais do país, limite que é puramente formal, mas também subordinação das leis ao limite material do reconhecimento de alguns direitos fundamentais considerados constitucionalmente" (L D, 18 e 19). A partir do momento em que essa nova concepção de Estado foi acolhida pelas constituições, processo que se seguiu durante o século XVIII e XIX, observamos a passagem do plano teórico para o plano prático. Com esta fase de constitucionalização, os direitos do homem ganharam em concreticidade, mas perderam em universalidade: a concreticidade de se tornarem direitos válidos e exigíveis, mas somente exigíveis no interior dos Estados subscritores, fato este que particulariza o reconhecimento dos direitos do homem. "Não são mais direitos do homem e sim apenas do cidadão, ou, pelo menos, são direitos do homem somente enquanto são direitos do cidadão deste ou daquele Estado particular" (E D, 29 e 30).

 

Não poderíamos passar para a fase seguinte do processo de universalização, sem antes deixar explícita a correlação entre os direitos do homem e a democracia. O que une a doutrina dos direitos do homem, o liberalismo e o método democrático é a concepção individualista da sociedade. Para Bobbio a democracia é fruto da concepção individualista da sociedade, "da concepção para a qual a sociedade, qualquer forma de sociedade, e especialmente a sociedade política, é um produto artificial da vontade dos indivíduos" (F D, 22), ou seja, o exercício da soberania dos cidadãos a partir da participação direta ou indireta nas decisões coletivas, realizada apenas pelos indivíduos singularmente, no momento em que depositam seu voto na urna; pois "a sociedade democrática não é um corpo orgânico, mas uma soma de indivíduos" (E D, 102).

 

A segunda fase somente terminará no pós segunda guerra, com a proclamação pela ONU da Declaração de 1948. Entramos, com isso, na última fase do processo de universalização dos direitos do homem. Esta é a fase em que "a afirmação dos direitos é, ao mesmo tempo, universal e positiva: universal no sentido de que os destinatários dos princípios nela contidos não são mais apenas os cidadãos deste ou daquele Estado, mas todos os homens; e, positiva no sentido de que põe em movimento um processo em cujo final os direitos do homem deverão ser não mais apenas proclamados ou apenas idealmente reconhecidos, porém efetivamente protegidos até mesmo contra o próprio Estado que os tenha violado" (E D, 30). A partir desse momento esses valores não serão apenas reconhecidos idealmente, mas sim protegidos pelos 48 países signatários da Declaração. Isto determina uma universalidade, apesar de limitada aos países pactuantes, dos conceitos de direitos do homem com a ascensão dos cidadãos destes países ao grau de cidadãos do mundo.

 

A Declaração de 1948 é algo mais do que um sistema doutrinário, e algo menos que um sistema jurídico. É sim um "ideal comum a ser alcançado por todos os povos e por todas as nações". E ainda, em seu preâmbulo: "é indispensável que os direitos do homem sejam protegidos por normas jurídicas, se se quer evitar que o homem seja obrigado a recorrer, como última instância, à rebelião contra a tirania e a opressão" (E D, 31). Para Bobbio a "Declaração Universal representa a consciência histórica que a humanidade tem dos próprios valores fundamentais na segunda metade do século XX. É uma síntese do passado e uma inspiração para o futuro mas suas tábuas não foram gravadas de uma vez para sempre" (idem, 34). Não podendo ser, portanto, um conjunto de fórmulas solenes e estáticas, e sim um conjunto de valores que servem de base para as modificações exigidas pela história. Assim, diante da multiplicação de documentos complementares que vimos assistindo, ele interpreta tal desenrolar como sendo "um verdadeiro desenvolvimento (ou talvez, mesmo, de um gradual amadurecimento) da Declaração Universal, que gerou e está para gerar outros documentos interpretativos, ou mesmo complementares, do documento inicial" (idem).

 

 

 

  1. Multiplicação dos Direitos do Homem

 

Analisando o processo de multiplicação dos direitos sob a perspectiva da sociologia jurídica, Bobbio demonstra que o desenvolvimento dos direitos do homem advém da realidade social da época, das contradições e das mudanças que são produzidas em cada situação concreta. Assim, a exigência de transformação da realidade sócio-jurídica é conseqüência das transformações sociais e das inovações técnicas. Para Bobbio, a "conexão entre mudança social e mudança na teoria e na prática dos direitos fundamentais sempre existiu" (idem, 75 e 76). A discussão teórica dos direitos do homem e sua jurisdicização são produtos culturais de uma necessidade social que exige a transformação do status quo.

 

A transformação da teoria e da prática dos direitos do homem é observada em três momentos da relação política entre governados e governantes. No primeiro, com a formação do Estado Moderno, os direitos do homem são previstos constitucionalmente. Este Estado, o chamado Estado Liberal, é limitado pelas garantias individuais. Neste momento são assegurados os direitos de liberdade em relação ao Estado, ou seja, a "chamada liberdade negativa, entendida como esfera de ação em que o indivíduo não está obrigado por quem detém o poder coativo a fazer aquilo que não deseja ou não está impedido de fazer aquilo que deseja" (L D, 20).

 

Num segundo momento é estabelecido os direitos de natureza políticos, aqueles que concebem as liberdades como autonomia dos indivíduos. Estas liberdades promoveram uma participação cada vez mais ampla no poder político, e culminou com a conquista do sufrágio universal, visto que o direito de participação no poder político, como foi concebido no Estado Liberal, era apenas concedido aos proprietários. Chamamos estes por direitos de liberdade positiva por possibilitarem a participação dos cidadãos no Estado que caracterizam o Estado Democrático.

 

E por fim, os direitos do homem que exigem a intervenção estatal, os chamados direitos sociais. Estes são caracterizados pela atribuição de direitos a sujeitos coletivos; são direitos cujo sentido é o de equilibrar as relações sociais em busca do bem estar social. Estas liberdades só se efetivam por meio de uma intervenção ativa do Estado. Este é denominado pelos cientistas políticos por Estado Social ("Estado dos Cidadãos").

 

Os direitos de liberdade negativa valem para o homem abstrato, uti singulus. Como já foi dito, atribuir direitos naturais ao homem teve a finalidade de limitar o poder absoluto da realeza a partir dos princípios de liberdade e igualdade. "Os homens são todos iguais, onde (sic) por ‘igualdade’ se entende que são iguais no gozo da liberdade, no sentido de que nenhum indivíduo pode ter mais liberdade do que o outro" (E D, 70). O consenso em torno destes direitos é constatado nas Declarações de direitos: o artigo 1o da Declaração Universal afirma que "todos os homens nascem iguais em liberdade e direitos". Entretanto essa universalidade dos direitos naturais foram atribuídas ao homem de determinado contexto histórico, qual seja o da Revolução Burguesa.

 

Nos direitos políticos e sociais observa-se "diferenças de indivíduo para indivíduo, ou melhor, de grupos de indivíduos para grupos de indivíduos", o que nos leva a não mais considerar o homem abstratamente, e sim em suas condições peculiares na sociedade: o homem no grupo familiar, na condição de pessoa em desenvolvimento (criança e adolescente) ou na sociedade como mulher, idoso, deficiente físico, minoria étnica ou religiosa etc. Dessa forma, para Bobbio o homem deve ser considerado em suas relações concretas, o que, portanto, o faz reconhecer novos sujeitos de direitos e novos objetos a serem tutelados (idem, 70 e 71).

 

Em síntese, para Bobbio essa multiplicação ocorreu de três modos: a) pelo aumento da quantidade de bens merecedores de tutela; b) pela extensão de titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) pela concretude que o homem passa a ser encarado em suas condições específicas na sociedade como criança, idoso, doente, etc (idem, 68).

 

Estes três modos demonstram o reconhecimento de novos sujeitos e de novos bens jurídicos implicando a multiplicação dos direitos do homem. No primeiro, com o aumento de direitos assegurados: a partir dos direitos de liberdades negativas passam a ser também assegurado os direitos políticos e sociais. No segundo, com a passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus "para sujeitos diferentes do indivíduo, como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto"; passando até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, como os dos animais ou da natureza a ser respeitada. E no terceiro, "a passagem ocorreu do homem genérico para o homem específico, ou tomado na diversidade de seus diversos status sociais, com base em diferentes critérios de diferenciação (sexo, a idade, as condições físicas)"; sendo que, cada condição específica em que se encontra o indivíduo determina um tratamento e proteção correlatas. Com isto, multiplicou-se as convenções e as declarações por temas, objetivando a normatização das relações do homem contemporâneo segundo seu status na sociedade (idem, 69).

 

O pressuposto da reflexão de Bobbio, a necessidade da passagem da hipótese racional para a análise da sociedade concreta reflete-se na determinação espacial e temporal da discussão dos direitos do homem. O problema atual é a proteção dos direitos sociais, que são assegurados pela intervenção ativa do Estado. Estes direitos, cuja efetividade se dá por meio do Estado, estão encontrando obstáculos em virtude da redefinição do papel do Estado, chamada popularmente de "onda neoliberal". Diante dessa necessidade social, o atual desafio para o filósofo do direito é o de justificar estes direitos que necessitam de efetiva proteção; bem como os direitos que estão nascendo, os direitos de quarta geração, cujo bem a ser protegido não é o homem em si, mas o reflexo que o meio ambiente natural e cultural exerce sobre sua qualidade de vida.

 

As exigências da sociedade contemporânea vão além daquelas fundamentadas numa hipótese racional de homem (as liberdades em relação a e da liberdade de). Para Bobbio a "hipótese abstrata de um estado de natureza simples, primitivo, onde o homem vive com poucos carecimentos essenciais, não teria mais nenhuma força de persuasão e portanto, nenhuma utilidade teórica ou prática" (idem, 74 e 75). Este distanciamento entre a realidade e os textos normativos de direitos sociais nos remete ao problema da busca pelo fundamento dos direitos do homem: encontrar a cada momento histórico o meio mais rápido e eficaz para justificá-los e protegê-los.

 

 

 

  1. Internacionalização dos Direitos do Homem

 

Passamos a tratar do processo de internacionalização dos direitos do homem, tendo como por ponto de partida Declaração de 1948. A partir desta Declaração iniciou-se o processo de proliferação de Convenções Internacionais. Estes tratados e convenções ao mesmo tempo que vinculam os signatários mediante sanções, os influenciam a converterem os acordos em normas de direito público nacionais.

A discussão do problema da sociedade no direito, ou seja, da efetividade das normas é inseparável da análise jurídico-política do direitos do homem internamente aos Estados e entre os Estados. Assim, passamos para a descrição do processo de internacionalização. Inicialmente trataremos do conceito de direito para a partir disto, estabelecer a relação entre os direitos do homem proclamados internacionalmente e no interior dos países que constitucionalizaram estes direitos.

 

Bobbio estabelece a distinção entre direitos em sentido forte, aqueles que possuem coercitividade, dos direitos em sentido fraco, que apenas são diretivas de condutas, denominados "exigências". Diz o autor que para cada direito em sentido forte está correlacionada uma obrigação. As exigências por melhores fundamentos que possam ter, não vinculam uma decisão judiciária ou determinam uma sanção no caso de serem violadas. Esses "direitos" exigências na melhor das hipóteses são diretivas para direitos futuros, o que "significa criar expectativas, que podem jamais serem satisfeitas" (idem, 79).

 

Segundo esta perspectiva juspositivista dos sistemas de direitos do homem é que Bobbio observa a passagem dos direitos do homem prescritos em códigos morais ou naturais para os denominados códigos fortes. O primeiro é um sistema filosófico que almeja a jurisdicização, e por isso um sistema fraco; o segundo, em virtude da constitucionalização dos conteúdos filosóficos é um sistema de direitos em sentido forte, pois é a norma positivada que lhe fornece a coercibilidade.

 

Atualmente encontramos dispositivos de direitos do homem, e principalmente de direitos sociais, constitucionalizados, porém sem força coercitiva. São meros programas a serem seguidos, sem vincular os poderes executivos e judiciários, normas "chamadas pudicamente de ‘programáticas" (idem, 77). Internacionalmente o mesmo ocorre, Bobbio prevê algumas condições necessárias para que os direitos do homem passem para norma em sentido forte no sistema internacional: o reconhecimento e a proteção das "Declarações" sejam considerados condições necessárias para que um Estado possa pertencer à comunidade internacional; e, a existência de um sistema internacional forte para prevenir e reprimir a violação dos direitos declarados (idem, 82).

 

Não obstante ser um sistema fraco, o sistema internacional emprega formas de controle social. Bobbio distingue as formas de proteção dos direitos do homem em vis directiva e vis coactiva, conceitos estes que são repetidos pela atual teoria política em influência e poder como duas formas de controle social. "Entendendo-se por ‘influência’ o modo de controle que determina a ação do outro incidindo sobre sua escolha, e por "poder" o modo de controle que determina o comportamento do outro pondo-o na impossibilidade de agir diferentemente" (idem, 39).

 

A tutela dos direitos do homem pelos organismos internacionais tem se dado por três aspectos: promoção, controle e garantia. Promover os direitos do homem é induzir a positivação desses direitos no interior dos Estados, ou se já fizerem parte do ordenamento, buscar o aperfeiçoamento destes direitos. Controlar as ações é observar em que grau as convenções estão sendo acolhidas e respeitadas por meio da exigência de relatórios de cada Estado signatário ou pela a análise de comunicados de algum Estado denunciando outro em caso de não cumprimento do acordo. E por garantia "entende-se a organização de uma autêntica tutela jurisdicional de nível internacional, que substitua a nacional" (idem, 40). Observa-se, dessa forma, que as duas primeiras formas de tutela levam em consideração o aperfeiçoamento da legislação interior de cada Estado, e a terceira cria "uma nova e mais alta jurisdição". Bobbio cita a Convenção Européia dos Direitos do Homem como documento internacional que inovou no aspecto da garantia o atual sistema de proteção de direitos do homem. "Mas só é possível falar legitimamente de tutela internacional dos direitos do homem quando uma jurisdição internacional conseguir impor-se e superpor-se às jurisdições nacionais, e quando se realizar a passagem da garantia dentro do Estado —que é ainda a característica predominante da atual fase— para a garantia contra o Estado" (idem, 40 e 41).

 

 

 

 

    1. O Progresso Histórico Dos Direitos Do Homem

 

Percorrendo a historicidade proposta por Norberto Bobbio, vimos até este momento os direitos do homem como objeto das Ciências Sociais e Jurídica. Com efeito, os fatos históricos apresentados comprovam a variabilidade e a heterogeneidade dos direitos do homem conforme a determinação espaço-temporal das necessidades sociais que impulsionam as transformações estruturais da sociedade. Desta forma, poderíamos interpretar sua historicidade como uma proposta relativista. Entretanto, Bobbio não se limita a pensar a história dos direitos do homem a partir das antinomias em que suas normas vão se constituindo. Se fizéssemos esta leitura, estaríamos apenas considerando os aspectos de sua filiação ao juspositivismo de Kelsen; o que limitaria a compreensão do autor italiano.

 

Nos itens que se seguem examinaremos os direitos do homem sob a perspectiva da filosofia da história. Analisaremos o problema de sua universalização, que percorre a historicidade proposta por Bobbio. Neste aspecto, Bobbio filia-se a Kant, haja vista apresentar a Declaração de 1948 como marco histórico de uma progressividade da humanidade, em que os direitos do homem passaram a ser direitos positivos universais.

 

 

 

  1. História Universal Kantiana

 

A filosofia da história é o exercício de se buscar entre os acontecimentos a determinação de um sentido, seja ele progressivo ou regressivo da História da Humanidade. No século XVIII se constitui o confronto da concepção progressiva ou linear de história com a regressiva ou cíclica. Esta concepção é suplantada pela progressiva a partir da idéia de tempo desenvolvida pelo cristianismo. Esta concepção abriu a possibilidade de pensar os acontecimentos fora do esquema do eterno retorno da doutrina clássica da repetição.

Entre a idéia do progresso e da regressão, Bobbio se filia a primeira, seguindo Kant: "a história tem apenas o sentido que nós, em cada ocasião concreta, de acordo com a oportunidade, com nossos desejos e nossas esperanças, atribuímos a ela. E portanto, não tem um único sentido. Refletindo sobre o tema dos direitos do homem, pareceu-me poder dizer que ele indica um sinal do progresso moral da humanidade" (E D, 64).

 

Kant faz a distinção entre a história ("Historie"), composta apenas empiricamente, da História do Mundo ("Weltgeschichte"), possuidora de um fio condutor a priori. A "Historie" é composta pelo acúmulo de fatos determinados empiricamente, da observação e comparação entre as culturas das distintas civilizações; já a filosofia da história é a determinação de um sentido para o devir. A história narrada ou contada (Geschicte) do mundo (Welt) é a construção racional de uma idéia de como deveria ser a sucessão de fatos, ou melhor, uma narrativa da história segundo uma idéia de como deveria ser o curso do mundo, se ele fosse adequado a certos fins racionais. Assim, a história profética (ou filosófica) —como prefere denominar Bobbio— pode somente pressagiar o que poderá ocorrer a partir de uma história hipotética enunciada na forma de proposições ("se isto, então aquilo"), como se infere do texto Idéia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, de 1784, que tem por intuito demonstrar a existência de uma racionalidade (não empírica) seguida pelos homens segundo leis naturais.

 

O fio condutor a priori proposto por Kant é derivado da natureza. Para ele o filósofo "não tem outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo das coisas humanas, um propósito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio. Nós queremos ver se conseguimos encontrar um fio condutor para tal história e deixar ao encargo da natureza gerar o homem que esteja em condição de escrevê-la segundo este fio condutor". Desta passagem podemos inferir o antagonismo entre a natureza essencial e natural do homem (ver item 1.1), que mesmo proporcionando um "curso absurdo das coisas humanas", pode-se inteligivelmente determinar o fio condutor de uma história demonstrativa da contínua progressividade do gênero humano. Nas palavras do Professor Ricardo Terra, "Kant estuda a natureza humana, em que as boas disposições morais coexistem com as inclinações egoístas e encontram, mesmo assim, um ‘plano da natureza’ que não se vale apenas das disposições morais mas utiliza-se também daquelas inclinações".

 

Com efeito, numa história do mundo em que as paixões vinculam as inclinações das transformações culturais, das formas de organização humana, Kant apresenta um sentido da História Ideal, e possivelmente realizável sob certas circunstâncias. Neste sentido, o que leva o homem a sair do estado de natureza, bem como os Estados em isolamento a comporem uma federação de Estados (Gnossenschaft) regidos pelo Direito Cosmopolita, não pode ser derivado da análise antropológica ou histórica, e sim do Ideal de um determinado status: um Ideal em que ao homem ou aos Estados é possível a proteção contra a violência, ou seja, abdicar da liberdade do estado de natureza para buscar tranqüilidade e segurança numa constituição conforme as leis. Isto se esclarece com o fundamento kantiano da sua proposta de Paz Perpétua: "Povos, como Estados, podem ser julgados como homens individuais, que em seu estado de natureza (isto é, na independência de leis exteriores) já se lesam por seu estar-um-ao-lado-do-outro e do qual cada um, em vista de sua segurança, pode e deve exigir do outro entrar com ele em uma constituição similar à civil, em que cada um pode ficar seguro de seu direito". É dessa forma que podemos inferir das propostas de Kant para a Paz Perpétua, uma construção análoga à constituição do estado jurídico.

 

Da saída do homem do estado de natureza para constituir-se em sociedade regida pelas leis, e disto, empreender caminhada segura À paz Perpétua, Kant traça um fio condutor do progresso contínuo da humanidade (P Kant, 154). Para Kant, no texto "Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento (Aufklärung)?", o lema do esclarecimento é: "tenha coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, servindo-se de si mesmo sem a direção de outrém, para que possa emergir da menoridade e empreender marcha segura". Pois, "menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo".

 

Assim, o que possibilitou ao homem sair de um status de liberdade sem limitações exteriores e constituir-se legalmente foi o exercício de sua livre razão em face de suas inclinações culturais e psicológicas; o que possibilita o homem transformar as relações de poder e buscar sua emancipação é o uso público de sua livre razão perante as instituições políticas; e, o que possibilitará a saída dos Estados de sua condição de liberdade ilimitada entre si para formarem uma federação de Estados será o exercício de uma racionalidade que demonstrar a melhor condição de sobrevivência entre homens e Estados. "No plano do homem essencial Kant pode constituir uma ética e uma teoria do direito fundadas na noção de autonomia; no direito político estabelece um sistema de idéias distanciado das instituições históricas, mas se ele se detivesse aqui haveria um choque inevitável das idéias com a realidade... A tensão entre o inteligível e o sensível, o idealismo político e a ‘antropologia política’, o direito político e as instituições políticas efetivas exige a filosofia da história".

 

Estando, portanto, no exercício da razão a realização dos dispositivos naturais do homem, podemos concluir com Kant em sua 8a Proposição de Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita: "pode-se considerar a história da espécie humana, em seu conjunto, como a realização de um plano oculto da natureza para estabelecer uma constituição política (Staatsverfassung) perfeita interiormente e, quanto a este fim, também exteriormente perfeita, como o único estado no qual a natureza pode desenvolver plenamente, na humanidade, todas as suas disposições". Entretanto, o problema está em saber se do conjunto de realizações empíricas do homem, encontramos algo revelador de um tal curso do propósito da natureza. A experiência reveladora deste curso é limitada, pois a natureza (ideal) exige muito tempo para se cumprir. A pequena parte que humanidade percorreu permite apenas detectar de "maneira muita incerta a forma de sua trajetória e a relação das partes com o todo"; e que entretanto "o princípio geral da constituição sistemática da estrutura do mundo e o pouco que se observou bastam para concluir com segurança a respeito da realidade de tal ciclo".

 

A construção da narrativa da história do mundo não é aleatória. "Não é suficiente então seguir a trama teleológica que torna possível o progresso; é preciso isolar, no interior da história, um acontecimento que terá valor de signo". Para se aferir um progresso do gênero humano é preciso detectar a causa do progresso, transformando-o em signo para o passado e para o futuro. Kant refere-se a um "sinal histórico (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon), que poderia demonstrar a tendência do gênero humano, olhada no seu todo, não segundo os indivíduos". Este evento, significativo e indicativo de uma aptidão do gênero humano para a perfectibilidade, é para Kant o entusiasmo gerado nos participantes e espectadores da Revolução Francesa.

 

Com efeito, o signo kantiano não é a concepção ideológica revelada pela Revolução Francesa, e nem seu próprio evento histórico. Mas, "é simplesmente o modo de pensar dos espectadores que se revela publicamente neste jogo de grandes transformações, e manifesta, no entanto, uma participação tão universal e, apesar de tudo, desinteressada dos jogadores num dos lados, contra os do outro". Desta "participação" de um povo rico espiritualmente no processo revolucionário, Kant infere a causa moral do progresso da humanidade: "o verdadeiro entusiasmo refere-se sempre apenas ao ideal e, claro está, puramente moral". Conseqüentemente, esta causa moral intervém em dois aspectos: o do direito de um povo que não deve ser impedido por outros poderes de se auto-proporcionar uma constituição que creia ser boa; e o princípio que afirma ser conforme ao direito e à moral apenas a constituição que impede toda guerra ofensiva.

 

 

 

  1. O Papel das Idéias Reguladoras na Filosofia Política de Norberto Bobbio

 

Temos em Bobbio, como em Kant, uma História Racional pontuada de signos emblemáticos e rememorativos. A sua historicidade dos direitos do homem é a comprovação da existência de um processo de universalização dos direitos fundamentais. Por uma perspectiva prática, constatamos um engendramento das instituições políticas decorrente do processo de lutas emancipatórias. Podemos, agora, complementar o desenvolvimento da perspectiva teórica, que se dá perante a prática, identificando o legado da História Universal kantiana em Bobbio.

 

Bobbio ao se valer do idealismo kantiano, pensa o progresso sócio-jurídico das sociedades. Ele mostra que os organismos internacionais dos direitos do homem não possuem força coercitiva suficiente para fazer valer efetivamente os seus acordos, convenções e tratados; e, critica com maior fervor ainda, os sistemas jurídicos nacionais que promulgam estes acordos, mas consideram os direitos fundamentais como normas sem eficácia, denominando-os "pudicamente" de normas programáticas. Neste sentido, como filósofo, Bobbio busca fortes justificativas e fundamentos para que os direitos dos homem de terceira e quarta geração sejam positivados e efetivados nos Estados nacionais e na comunidade internacional.

 

A filosofia da história kantiana é apresentada por Bobbio como instrumento crítico e indicativo de reformulações dos sistemas jurídicos. Ou melhor, vale-se das propostas kantianas para à Paz Perpétua como modelo ideal. O direito cosmopolita se apresenta como ideal de absoluta perfeição de uma organização política mundial, face a relativa perfeição que se encontra o processo de desenvolvimento das instituições internacionais de direitos do homem. É dessa forma que Bobbio apresenta o processo de universalização em etapas; e profetiza o direito cosmopolita, que tem seu início com a Declaração de 1948, um sinal concreto da positivação universal dos direitos do homem.

 

Ao criticar e propor reformas para os sistemas normativos, localizamos Bobbio na esfera da Teoria da Justiça. Entretanto, esta delimitação fica prejudicada, uma vez que critica e pretende reformar uma realidade concreta, os sistemas jurídicos. Assim, Bobbio ao mesmo tempo que realiza uma história dos direitos do homem por meio das Ciências Sociais, pontua criticamente o próprio processo que se dá contraditoriamente: a denominação de institutos cujas nomenclaturas não correspondem a realidade das relações (cartas outorgadas, quando são conquistadas; normas programáticas, etc.); o que revela o conservadorismo do processo por parte daqueles que detém o poder. Mesmo diante desta ambigüidade que percorre a história, Bobbio busca um processo de universalização dos direitos do homem, que per analogiam podemos relacioná-lo ao fio condutor a priori do progresso da humanidade realizado por Kant. Pois, esta linha evolutiva opera em ambos como um parâmetro crítico das instituições políticas. Uma critica não apenas do parternalismo das monarquias, mas também do uso retórico dos direitos do homem, que, na atualidade, são proclamados mas não efetivados.

 

Bobbio apresenta a Declaração de 1948 como uma prova que nos possibilita profetizar, juntamente com Kant, o direito cosmopolita. Contudo, a interpretação do signo histórico é diferente nos dois autores. Kant aponta um fio condutor a priori a partir de signos históricos (signum rememorativum, demonstrativum, prognostikon), que revelam a boa vontade moral da humanidade, ou melhor, um sinal puramente moral, e que, por isso, possa representar um ideal. Bobbio, por sua vez, limitando o idealismo kantiano, desenvolve uma história cujos pontos de ruptura são resultados das conquistas institucionais que forneceram gradativamente maior efetividade aos direitos do homem.

 

Com efeito, Bobbio ao analisar a passagem dos sistemas fracos para os sistemas fortes, identifica a progressividade dos direitos, ou seja, aponta a efetividade crescente dos direitos do homem. Este é, portanto, o processo de universalização de Bobbio: "Os direitos do homem nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos particulares, para finalmente encontrarem sua plena realização como direitos positivos universais. A Declaração [de 1948] contém em germe a síntese de um movimento dialético, que começa pela universalidade abstrata dos direitos naturais, transfigura-se na particularidade concreta dos direitos positivos, e termina na universalidade não mais abstrata, mas também ela concreta, dos direitos positivos universais" (idem, 30). Com isto, podemos inscrever Norberto Bobbio num prolongamento do projeto iluminista do século XVIII, cujos ideais de uma sociedade de homens livres e iguais, por serem utópicos não se efetivaram, mas proporcionaram uma progressividade na conquista de direitos.

 

 

 

CONCLUSÃO

 

Procuramos mostrar o legado da Filosofia kantiana no pensamento de Norberto Bobbio. Relacionamos, em fim, os planos transcendental e empírico em Kant e teórico e prático em Bobbio. Entretanto, na delimitação destas duas dimensões, Bobbio apresenta um processo de universalização dos direitos do homem, que evidenciou sua preocupação em restringir o idealismo kantiano.

 

A restrição ao kantismo feita por Bobbio possui duas matrizes. Uma é a nossa própria sociedade que se revela complexa e mutante; a outra matriz é a sua filiação ao juspositivismo kelseniano. Na história do pensamento jurídico Kant e Kelsen são autores que revolucionam os conceitos de ser e dever ser, mas suas teorias não são absolutas a ponto de passarem pelas transformações sociais sem serem questionadas.

 

Kant possibilitou o conhecimento científico do direito a partir do imperativo categórico, um postulado da razão pura prática. Este postulado fundamenta o conceito de direito num ideal de coexistência das liberdades. Com base neste fundamento, Kant pensa o homem como ser autônomo e livre moralmente para realizar uma escolha, que é boa se for puramente moral. Mas nem todas as vontades do homem são boas, uma vez que a vontade humana pode também ser impulsionada pelas inclinações psicológicas ou passionais. Desta forma é que Kant afirma a probabilidade da realização do Ideal: pode-se afirmar que o homem reúne as condições de possibilidade de se desvencilhar de um tutor e alcançar a maioridade, mas não que irá se desvencilhar. Nesta tensão entre idéia e realidade constata-se o progresso da humanidade, somente se o ato de amadurecimento não for de um homem singularmente, mas de um povo.

 

Kelsen, diante do problema da certeza e segurança jurídica posto pelo modo de produção capitalista, restringiu essa idealidade em sua Teoria Pura do Direito, propondo uma ciência neutralizada de valores. Para tanto, levou às ultimas conseqüências a análise estrutural e lógica dos sistemas normativos, contrapondo a ciência do direito à valoração proposta pelos jusnaturalistas. Mas, é justamente esta preocupação com a neutralidade que revela a sua limitação epistemológica: o ceticismo ético do juspositivismo possibilitou um relativismo que serviu a regimes ditatoriais constitucionalizados ou não. Desta forma surgiu um problema para os pensadores da segunda metade do século XX: de um lado se faz necessário um fundamento abstrato que afaste os relativismos; e de outro, que o sistema seja forte para que suas normas sejam efetivadas.

 

Neste sentido, a filiação parcial de Bobbio ao positivismo kelseniano, no que diz respeito a cientificidade da estrutura dos sistemas jurídicos e sua força coercitiva, nos forneceu elementos para melhor entender suas críticas ao idealismo clássico. E de outro lado, a filosofia da história kantiana, objeto de nosso trabalho, foi assumida pelo autor italiano como parâmetro crítico, ou seja, como um indicativo para a reformulação dos sistemas jurídicos. Portanto, Bobbio serve-se do idealismo kantiano para apresentar sua Teoria da Justiça. Assim, realiza uma filosofia que apresenta fortes justificativas para que os direitos fundamentais de terceira e quarta geração sejam positivados e efetivados nos Estados nacionais e na comunidade internacional.

 

A filosofia do direito de Norberto Bobbio é uma filosofia de análise estrutural e funcional dos sistemas jurídicos nacionais e internacionais sob o ponto de vista crítico, cujo âmbito está delimitado pelos problemas valorativos e ideológicos constituídos historicamente. De um lado, uma esfera científica cujo objeto é o direito posto; de outro, a esfera filosófica que critica a realidade sócio-jurídica. Nas palavras de Bobbio: "não há como se fazer ciência sem se fazer filosofia, mas fazer ciência sem filosofia é a única maneira de voltar a dar à ciência sua função objetivamente investigadora e à filosofia sua função crítica e reformadora" (C T D, 89).

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

Obras de Immanuel Kant

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Obras de Norberto Bobbio

 

 

 

 

 

 

 

Obras de comentadores de Kant

 

 

 

 

Outras obras citadas

 

 

 

 

 

- Teoria Pura do Direito, São Paulo, 1987, Ed. Martins Fontes;

 

 

 

 

 

-Introdução ao Estudo do Direito - Técnica, Decisão e Dominação, São Paulo, 1991, Ed. Atlas.

 

 

CONVENÇÕES

 

 

 

 

ABREVIATURAS

C T D Contribuición a la Teoria del Derecho

E D A Era dos Direitos

F D Futuro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo

L D Liberalismo e Democracia

P J O Positivismo Jurídico - Lições de Filosofia do Direito

P Kant Direito e Estado no Pensamento de Emanuel Kant

 

 

 

Texto retirado de http://www.pge.sp.gov.br/tesesdh/tese20.htm