O abuso do poder econômico no processo eleitoral.
Prof. Des. Luíz Melíbio Uiraçaba Machado
Sumário
1. Introdução.
Legitimidade do sistema representativo e lisura do processo eleitoral:
Correlação. As liberdades públicas e a igualdade jurídica
dos partidos e candidatos. 2. Abuso do poder econômico: dificuldade
conceitual. A metodologia do caso. O caso Sebastião Paes de Almeida.
3. Abuso do poder econômico no plano conceitual. Distinção
entre uso do poder e abuso. Abuso do poder econômico e corrupção:
distinção. 4. Abuso do poder econômico no plano probatório.
A prova do fato do uso do poder econômico e a prova do uso abusivo
do poder econômico. Questão de fato e questão de direito.
5. Abuso do poder econômico no processo eleitoral: conseqüêcias
jurídicas. 6. Conclusão.
1. Por força de princípios constitucionais fundamentais, somos uma democracia representativa, fundada no pluralismo partidário e político. A legitimidade do sistema depende da lisura do processo eleitoral. Esta, por sua vez, somente se alcança quando o processo é isento dos vícios do abuso do poder econômico, do abuso do poder político, da fraude e da corrupção. O pluralismo político e partidário, de seu lado, resulta, sempre, da observância do princípio da igualdade jurídica dos partidos e candidatos, concretizada pela igualdade de oportunidade de participação no processo de formação de vontade popular. No plano político, essa vontade se expressa por meio de eleições periódicas, nas quais o sufrágio seja universal e a manifestação do eleitor livre de qualquer vício.
2. Abuso do
poder econômico, abuso do poder político (exercício
abusivo da função pública), corrupção
e fraude designam condutas ilícitas inteiramente diversas. Na verdade,
porém, são conceitos indeterminados, que só podem
ser classificados com base nos fatos. Tais fatos, entretanto, não
poucas vezes, apresentam-se complexos, pois poder econômico, poder
político e fraude se interpenetram de tal forma, que pode ser difícil
sua exata qualificação jurídica.
Tudo isso
considerado, conclui-se que a metodologia do caso é ainda a melhor
para elaborar a doutrina capaz de auxiliar os operadores do Direito em
situações concretas. De outro lado, o método indutivo
é mais científico.
Abordando
a temática do abuso do poder econômico, pelas circunstâncias
históricas em que se verificou, o melhor paradigma é o célebre
caso Sebastião Paes Almeida - Acordão nº 3.922, de 7-9-95,
estampado no Boletim Eleitoral de outubro de 1965.
A espécie
resumia-se no seguinte: Sebastião Paes de Almeida, dono de uma extraordinária
fortuna, elegera-se Deputado Federal pelo Estado de Minas Gerais, onde
jamais residira, e pretendia concorrer ao cargo de Governador daquele Estado.
Teve, porém, o registro de sua candidatura impugnado., sob a alegação
que obtivera seu mandato eletivo graças à influência
do poder econômico. Segundo consta dos autos, fora ele o mais votado,
com 80.057 votos, seguido, muito longe, por Tancredo Neves, com 58.090
votos , este o político de maior prestígio no Estado. O fenômeno
não encontrava explicação política razoável.
Verificou-se porém, que num passado recente, mas já alcançando
o período pré-eleitoral, Sebastião Paes Almeida, por
sua conta exclusiva e com enormes recursos financeiros próprios,
promovera e executara melhoramentos de benefício geral em diversas
localidades, tais como pavimentação de ruas, ansiosamente
reclamados pela população em geral. Além disso, por
atos de pura filantropia, prestara auxílio financeiro a hospitais,
creches, entidades esportivas e culturais, clubes sociais, associações
das mais diversas espécies, sempre desinteressadamente, jamais tendo
exigido qualquer compromisso ou contraprestação. Todavia,
em face das circunstâncias - ausência de tradição
política ou quaisquer vínculos com o povo da terra -, a extraordinária
votação alcançada só era explicável
pelo reconhecimento dos eleitores aos atos de mecenato que praticara usando
sua inesgotável fortuna pessoal. Ponderando tudo isso, o Tribunal
Superior Eleitoral declarou o candidato inelegível por abuso do
poder econômico e, por via de conseqüência, indeferiu
o registro de sua candidatura ao cargo de Governador.
3. O estudo
do aresto permite a elaboração da doutrina do abuso do poder
econômico no plano conceitual e no plano probatório.
No plano conceitual,
por uso do poder econômico tem-se o emprego de dinheiro mediante
as mais diversas técnicas, que vão desde a ajuda financeira,
pura e simples, a partidos e candidatos até a manipulação
da opinião pública, melhor dito, da vontade dos eleitores
por meio de propaganda política subliminar com aparência de
propaganda meramente comercial. de que é exemplo didático
o caso Getúlio Boscardin, do Rio Grande do Sul (Acórdão
nº 13.428, de 4-5-93).
O uso do poder
econômico, quando se faz por intermédio dos partidos e com
obediência estrita à legislação pertinente,
é lícito e moralmente admissível. O que o torna ilícito,
e moralmente reprovável, é o seu emprego fora do sistema
legal, visando a vantagens eleitorais imediatas, com o fato de intervir
no processo eleitora, definindo os resultados, de acordocom determinados
interesses. Sem este nexo causal, o ato abusivo, para os efeitos da ação
processual constitucional, é irrelevante, embora possa ter interesse
e repercussão em outras províncias do Direito.
Por suas conseqüências
jurídicas diversas, é importante distinguir o abuso do poder
econômico da corrupção.
Nesta, a regra
é o procedimento grosseiro e corriqueiro da compra-e-venda do voto.
Há sempre a ação do corruptor e um sujeito passivo,
o corrompido. Na corrupção capta-se a vontade do eleitor
de maneira torpe., e entre o corruptor e o corrompido, se estabelece uma
relação de cumplicidade. Naquele, no abuso do poder econômico,
não há a figura do corrompido; a captação do
voto se faz de maneira indireta, sutil, imperceptível até
mesmo para o próprio eleitor, que é o sujeito passivo. Na
verdade, quer-se-lhe ganhar a adesão conquistando-lhe o coração
e a mente., mediante artifícios. Por aí se vê que o
titular do uso do poder econômico não age como um corruptor
do eleitorado, e os meios que emprega são moralmente admissíveis.
A ilicitude está no desequilíbrio, na ofensa ao princípio
da igualdade de oportunidades, relativamente aos partidos e candidatos
que se conduziram, no decorrer da propaganda eleitoral, dentro dos parâmetros
legais.
Este último
registro é de extraordinária importância. É
que nos casos de corrupção , o comprometimento da lisura
e normalidade da eleiçaõ se afere, logo no primeiro plano,
pelas relações candidato-eleitor e, no segundo plano, pela
quebra da igualdade jurídica. Já o comprometimento, pela
via do uso do poder econômico, afere-se visualmente apenas no segundo
plano.
4. A caracterização
do uso do poder econômico é questão de fato.
No plano da
prova, portanto, os fatos básicos caracterizadores do uso do poder
econômico devem ser provados mediante de prova inconcussa; capaz,
portanto, de gerar certeza moral. Mas sua qualificação como
atos abusivos é questão de direito. Em decorrência,
é desnecessário um segundo degrau de prova, tal como a comprovação
documental e testemunhal de que esses fatos causaram efetivos prejuízos.
A isso chega-se por meio de inferências, pois concluir se tais fatos
comprometeram a lisura da eleição só pode ser o resultado
da própria operação mental do julgador, autorizado
por sua experiência como juiz eleitoral.
Isso tudo
porque, no emprego do poder econômico, não há liame
entre candidato e eleitor (como se viu); não há imediata
relação a determinados eleitores; também não
há como indagar dos eleitores, dado o sigilo, as razões de
seu voto. Dessa forma, não há como se fazer esta prova, do
nexo causal, nestes termos. Todavia, mesmo se fosse posível tal
prova, que é diabólica, e não se demonstrasse qualquer
prejuízo efetivo, bastaria o prejuízo potencial para autorizar
a qualificação dos fatos como comprometedores da legitimidade
e normalidade da eleição.
5. O emprego
abusivo do poder econômico pode determinar dua s conseqüências
jurídicas inteiramente diversas: a inelegibilidade do autor dos
fatos abusivos e a perda do mandato do candidato eleito graças ao
abuso cometido.
Cada conseqüência
há de ter tratamento diverso, pois diversos são as cargas
de eficácia das sentenças.
Na ação
de inelegibilidade não se cuida de aplicar uma pena, nem de se decretar
a perda dos direitos políticos. A sentença tem caráter
meramente declaratório-eleitoral. Vale como premissa ou preceito
de caráter negativo de elegibilidade, que vai ser considerado se
e quando o réu da ação julgada procedente quiser candidatar-se
a cargo eletivo. A sentença, por sua vez, só mantém
vigência por determinado lapso de tempo.
A procedência
de ação de inelegibilidade, como se viu, exige a prova inconcussa
do fato do uso do poder econômico. Mas, para se qualificarem tais
fatos como abusivos e capazes de comprometer a lisura e normalidade da
eleição, basta o prejuízo potencial.
Só
é legitimado passivo desta ação o autor dos fatos,
pois se procura, por meio dela, preservar um bem futuro, ou seja , a legitimidade
e normalidade da eleição futura, tendo em conta os fatos
passados cometidos pelo argüido. Daí o caráter meramente
declaratório da sentença.
Já
para a ação constitucional de perda de mandado pouco importa
tenha sido o eleito o autor, ou não, do ato ilícito; basta
que se comprove tenha dele se beneficiado. Deve haver, portanto, relação
de causa e efeito. Mas há que se distinguir: se o titular do mandato
impugnado for ao mesmo tempo o autor do ato ilícito, se se confundirem
os sujeitos, pode haver cumulação de pedidos, e as ações
(em sentido material) poderão ser julgadas totalmente procedentes,
ante a prova inconcussa do uso do poder econômico fora dos limites
permitidos pela legislação eleitoral, e do prejuízo
potencial dos demais candidatos e partidos.
A sentença,
então. além de carga declaratória, tem ainda eficácia
constitutiva negativa, porquanto a declaração de inelegibilidade
contamina a validade do mandato eletivo obtido, anulável em razão
desse vício em um dos elementos intrísecos essenciais: manifestação
de vontade do eleitor livre de qualquer defeito.
Por outro
lado, se a ação é apenas de perda de mandato, porque
o demandado foi o beneficiário do ilícito, deve ser exigida
prova inconcussa do fato do uso do poder econômico, e ela ser de
ordem tal. que se tenha certeza moral da relação da relação
de causa e efeito. É verdade que a tanto se pode chegar mediante
presunções, indícios e inferências lógicas.
Ou seja, a procedência da ação, neste caso, terá
lugar se o Juiz se convencer de que o mandato eletivo foi obtido em razão
do abuso do poder econômico praticado por outro, e não em
decorrência dos méritos próprios do eleito.
Este é
um tema, entretanto, que exige uma investigação mais profunda,
que os estudiosos, por certo, realizarão e que não posso
desenvolver aqui, num simples painel.
6. Para os
efeitos deste painel, recapitulo: o poder econômico deve ficar neutro
e não pode intervir no processo eleitoral senão nos termos
da lei. Fora dela, sua influência viola o direito de igualdade dos
partidos e candidatos e compromete a lisura e normalidade da eleição.
Por isso, o simples uso do poder econômico fora das normas financeiras
permitidas já caracteriza o abuso e faz incidir a declaração
de inelegibilidade do autor dos fatos e a perda do mandato eletivo de seu
beneficiário.
O comprometimento
da lisura e da normalidade da eleição se afere pelas circunstâncias
de tempo e lugar em que ocorreram as condutas ilícitas e, também,
por indícios, presunções, inferências e juízos
de razoabilidade.
No exame dessas
questões há de ter-se presente que os fins preponderam, e
os meios, ainda que lícitos em si mesmos, deixam de sê-lo
se o emprego do poder econômico visou a vantagens eleitorais imediatas
ou mediatas.
Retirado de:
http://www.ufrgs.br/mestredir/artigos/abuso.htm