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PODER JUDICIÁRIO ALTERNATIVO


Lédio Rosa de Andrade, Juiz de Direito da Comarca de Tubarão/SC e Professor da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL
 

Pediram-me para falar, com base na visão jurídica alternativa, como seria um Poder Judiciário ideal. Como medida propedêutica, há de ficar claro que o movimento do Direito Alternativo vê o Judiciário, ao contrário da maioria dos juristas tradicionais, de forma contextualizada, ou seja, totalmente inserido em circunstâncias históricas. O Poder Judiciário não se encontra separado das relações de poder, das ideologias, da política, da economia, enfim, da sociedade na qual está inserido. Partindo deste pressuposto, falar de um Poder Judiciário ideal, necessariamente, obrigaria a falar de uma sociedade ideal. Como o idealismo afasta o ser humano de sua realidade empírica, tornando-o alienado, prefiro discorrer sobre um Poder Judiciário possível, dentro da realidade brasileira, como ela é, com suas mazelas e virtudes.

A questão central direciona-se à democratização do Poder. O Judiciário, por si só, não resolverá os problemas brasileiros. Sua área de atuação é específica, a prestação jurisdicional, e, sendo assim, não pode interferir diretamente nas relações econômicas, sociais e políticas que estruturam o país e causam suas dificuldades. O que ele pode, e nisso concordam quase todos os alternativos, é interferir nestas relações, buscando mantê-las ou transformá-las, naquilo que lhe é específico. O Poder Judiciário, sob esta perspectiva, atua como toda e qualquer outra instituição, por isso deve integrar-se com cada uma, para sustentar ou modificar o bloco histórico, usando uma expressão gramisciniana. A opção alternativa é pela transformação.

Quais as mudanças necessárias no Poder Judiciário para pôr em prática tal escopo? Dois aspectos fundamentais devem ser alterados: o primeiro, instrumental, e o segundo, deontológico.

Aspectos instrumentais. Estes não são propriamente alternativos. Dizem respeito ao funcionamento do Poder. Priorizo: o acesso, a agilidade, a igualdade e a democratização (interna e externa). Estes são anseios de grande parte da comunidade jurídica e visam melhorar o Poder Judiciário, como uma organização atuante, sem adentrar na polêmica política/ideológica.

O acesso. Não é novidade a perda do monopólio da prestação jurisdicional por parte do Poder Judiciário. As camadas miseráveis e pobres, distantes do Poder, resolvem seus conflitos através da Lei dos mais forte, ou são mediados por aparatos extra-estatais, como a Justiça dos narcotraficantes e demais criminosos controladores das grandes favelas brasileiras. Eles distribuem terras, constróem creches e escolas e, paradoxalmente, controlam a própria criminalidade interna de suas comunidades. No pólo oposto, as classes ricas resolvem seus conflitos por mecanismos privados. Portanto, o Poder Judiciário deve ser estendido para estes dois lados, abrindo as portas aos pobres e miseráveis, através da criação de varas nos bairros, de um sistema de assistência judiciária realmente eficiente e, talvez, com a criação de uma defensoria pública popular. Pode-se, ainda, ampliar a legitimidade do Ministério Público e de instituições como o Procon e a Defesa do Consumidor, possibilitando-lhes agir em nome dos cidadãos. Quanto aos ricos, há que se estender a eles as leis, impondo a obediência ao arcabouço jurídico. Punir os crimes por eles cometidos, pois até o momento vigora uma escandalosa impunidade. Tipificar como delitos os atos anti-sociais e fazer viger as normas populares. Assim, todos terão acesso ao Judiciário como sujeitos de direitos e, também, de obrigações.

A agilidade. A morosidade da Justiça chegou ao seu limite. Torna-se inaceitável, por ilustração, que um empresário não pague o salário de seu empregado e este leve anos para receber seus direitos trabalhistas básicos. Há de ser agilizado o Poder Judiciário através do racionamento processual, da criação de juizados especiais, do aumento do números de juízes, da informatização, enfim, por todos os meios possíveis. A súmula vinculante, matéria não prioritária, hoje está em moda. Como uma forma de evitar recursos repetitivos, é aceitável. Como controle ideológico dos magistrados e mecanismo estagnador da jurisprudência é teratológica. Conhecendo-se as instituições brasileiras, a segunda hipótese provavelmente vigorará, motivo pelo qual não merece apoio.

A igualdade. Um dos paradigmas do pensamento liberal/legal é a igualdade de todos perante a lei. De fato, isto não existe. Até mesmo um simples exame de DNA, por exemplo, vem sendo negado pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina às partes beneficiadas pela assistência judiciária. O art. 5º, LXXIV, da Constituição Federal foi simplesmente ignorado. Portanto, além do acesso à Justiça, as camadas economicamente fracas devem ter garantidos os meios de atuarem em juízo de forma igual, não só na postulação de seus direitos, como na produção das provas necessárias.

A democratização. Para democratizar internamente o Poder Judiciário, muitos magistrados italianos, no pós-guerra, chegaram a defender a supressão do acesso de instância. Os cargos dos tribunais seriam preenchidos em rodízio. Por determinado período o juiz exerceria a função de desembargador, voltando, após seu mandato, às funções de juiz de Direito. Se esta proposta for ousada em demasia, pelo menos há que se ter critérios objetivos para aferição do merecimento nas promoções e remoções. Hoje vigora a falta de critério e isto institui o carreirismo. O corolário é a perda de identidade própria de muitos magistrados, que, para serem promovidos, abdicam de suas convicções e noção de Justiça e agem para agradar. Também, os concursos de acesso à carreira da magistratura devem ser revistos. Hoje apenas medem a capacidade de memorização dos candidatos. Além disso, os juristas do interior dos Estados e os menos abastados economicamente não possuem condições de preparação em igualdade de condições com os membros das classes mais altas. As escolas da magistratura, normalmente, estão nas Capitais. Outro ponto importante é a eleição dos>


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uma mera indicação dos próprios membros. Se não uma eleição popular, pelo menos da totalidade da classe. No tocante à democratização externa, de início, há de ser desfeita a confusão entre independência e impunidade do Poder. Em nome da independência, a maioria dos magistrados defendem o corporativismo e isto leva só à impunidade. Poder Judiciário independente é aberto e democrático. Necessita de meios financeiros mínimos, de administração autônoma, mas deve ser controlado pela população. O controle não pode ser efetuado por uma comissão elitisada, mas diretamente pela comunidade, por intermédio de conselhos populares. Por certo, este controle não se direcionaria à prestação jurisdicional - que deve ser totalmente independente -, mas à esfera administrativa. Recentemente, na Espanha, adotou-se a competência do Júri Popular, para julgar os crimes cometidos pelos funcionários da Justiça, incluindo os magistrados. Isto é de ser discutido. O concurso público, como forma de acesso, a meu ver deve ser mantido, pois, no Brasil, juiz com cabo eleitoral certamente seria terrível. Por derradeiro, importante ampliar o poder de iniciativa do Judiciário, em especial no tocante ao combate aos crimes de colarinho branco e à corrupção. Criar uma polícia a ele vinculado e/ou colocar o Ministério Público dentro de seus quadros, poderia permitir condições políticas e jurídicas para a efetivação de uma operação mãos limpas tão necessária ao Brasil.

Aspectos deontológicos. Neste ponto entra a alternatividade. A função do magistrado, como qualquer outro agir do ser humano, é política e ideológica. Não há um jurista sério na atualidade, mesmo entre os neopositivistas, que defenda a neutralidade do Poder Judiciário, no geral, e do magistrado, no particular. Portanto, de nada adianta implementar todas as propostas instrumentais antes mencionadas, sem um novo paradigma deontológico da magistratura. Uso o termo deontologia em sentido amplo, não só como os deveres éticos da profissão, mas, também, com um compromisso social do operador jurídico. De um ponto de vista teleológico, toda ação ou omissão do magistrado deve ter um compromisso de transformação social, isto dentro de uma luta mais ampla contra a miséria e a pobreza da grande maioria da população brasileira. Trata-se de uma revolução passiva, usando, de novo, o pensamento do filósofo italiano. Há de ser construído um novo paradigma jurídico. Sem isto, mantendo-se as atuais estruturas, quanto mais ágil for o Poder Judiciário, mais injustiças estarão se consolidando. A alternatividade não é, pois, instrumental, mas, sim, política e ideológica.

Livros do autor: Juiz Alternativo e Poder Judiciário, ed. Acadêmica; Introdução ao Direito Alternativo Brasileiro, ed. Livraria do Advogado e O que é Direito Alternativo, ed. Obra Jurídica.