Algumas observações sobre estado e violência no Brasil ( U. G. S. ).
Umberto
Guaspari Sudbrack
Juiz de
Direito
A prática da violência pelos órgãos do Estado,
particularmente a polícia, contra os cidadãos, no Brasil,
é antiga. As vítimas dessa violência são historicamente
os membros das camadas pobres da população. Nos períodos
de autoritarismo político explicito, como no Estado Novo (1937-1945)
e no Regime Militar (1964-1985), a violência se exerce também
contra os membros dissidentes dos grupos dominantes (professores, estudantes,
sindicalistas, intelectuais, políticos da oposição
e todos aqueles que questionam o poder de exceção vigente).
Malgrado a prática da violência em nosso cotidiano, desenvolveu-se
o mito do brasileiro pacífico, só afastado, a partir de 1964,
quando a repressão política atingiu também a classe
média através da ação dos órgãos
de segurança. Todavia, mesmo no auge da repressão, o Estado
buscava divulgar uma imagem de tranqüilidade do Brasil2.
Paulo Sérgio Pinheiro, diz que a violência da policia à
população subalterna, na história brasileira, é
constante, mas que se imputa a violência a uma falta de disciplina
da policia e não à conseqüência de uma política
deliberada do Estado, conforme se tratava, em verdade, segundo o autor.
Os maus tratos e a tortura aos presos comuns, por exemplo, sempre foram
entendidos como uma distorção decorrente do despreparo do
aparelho policial ou às condições subdesenvolvidas
do sistema penitenciário. Nunca se questionou o verdadeiro sentido
dessa prática repressiva do Estado pois tal implicaria em questionar
o próprio modo de organização do poder na sociedade,
ou seja, como o sistema penal é a forma pela qual o poder se mostra
de modo mais claro. A tortura, os maus tratos e toda a violência
em relação às classes pobres têm uma função
eminentemente política, a de contribuir para a preservação
da hegemonia dos grupos dominantes e assegurar a participação
ilusória das classes médias nos ganhos da organização
política baseada nessa repressão.
Até recentemente a polícia não existia como órgão
do Estado, mas apenas como guarda particular dos senhores da terra. Durante
nossa História, as forças policiais foram a mais importante
manifestação do "poder privado'' na vida pública,
verificando-se que a polícia não serve ao povo, mas protege
os senhores, no campo e na cidade. A "desprivatização" da
polícia, completada somente na época contemporânea,
não significou, todavia, nos grandes centros urbanos, a sua submissão
ao império impessoal da lei. Ali acabou inserida no Estado como
órgão dotado de interesses próprios para cuja defesa
e ampliação ela não hesita em utilizar todos os poderes
que a lei lhe confiou4.
Assinala Hélio Bicudo que as nossas leis penais, a nossa Justiça
repressiva, funcionam exclusivamente para a manutenção dos
privilégios das classes dominantes. O Ministério Público
e a Magistratura são os guardiães do "status quo" existente,
da manutenção dos privilégios dos grupos dominantes.
A violência policial no Brasil é a regra. A polícia
sempre bateu, sempre espancou, sofisticou seus meios de tortura para obter
a prova da realidade criminal. Isso decorre de omissões do Ministério
Público e da Magistratura na fiscalização das atividades
policiais.
Os Esquadrões
da Morte cuja origem remonta aos anos 50 e cujo auge foi atingido nos anos
70, vindo, então, seus lideres a participar da repressão
política, eram formados por policiais. As vitimas dos esquadrões
eram adultos mas a partir de 1980 as crianças e os adolescentes,
em especial os denominados "meninos de rua"6, passam a ser assassinados
por grupos de extermínio. Nos anos 80 e 90 passam a atuar os grupos
"policia mineira" (formado por policiais, bandidos e ex-policiais que vendem
proteção a comerciantes da Baixada fluminense), "justiceiros"
e os "grupos de extermínio".
Tais grupos continuam atuando contra segmentos da sociedade. Na área
rural, assassinam sindicalistas e lavradores. Nos centros urbanos, matam
os homossexuais e outras minorias. Em quase todo o país, promovem
o extermínio de crianças e jovens, filhos das famílias
pobres e expropriadas. Estes exterminadores propagam uma pena de morte
que existe na prática. A banalização da violência,
da própria vida, caracteriza a sociedade brasileira atual. Essa
banalização é uma das características dos regimes
autoritários. Tudo se torna "natural", sobretudo o extermínio
de crianças que se reveste de uma idéia de assepsia e de
limpeza social. Tal prática é admitida, inclusive por vastos
setores da população, por evitar, em tese, a existência
do "futuro marginal"7.
As classes subalternas são consideradas as classes perigosas, no
sentido de que põem risco a segurança dos grupos dominantes
da sociedade. Dai surge a seletividade do sistema penal, o estereótipo
do criminoso que a teoria do etiquetamento tão bem descreve: é
o pobre, feio, mal vestido, preferentemente negro, de inteligência
limitada8. É o suspeito, o bandido em potencial, quando não
"de nascença"9, dramatizada, assim, a criminalidade dos pobres,
já que a das elites (crimes contra a economia popular, fraudes,
crimes financeiros, destruição da fauna e da flora, poluição
ambiental, corrupção, por exemplo) é minimizada10.
Desta forma, compreende-se o porquê da repressão exacerbada,
a atingir os Direitos Humanos consagrados na Carta das Nações
Unidas, aos contingentes pobres da população brasileira.
Se o pobre sofre como suspeito, como delinqüente em potencial, sofrerá
muito mais ao chegar ao cárcere, marcado que é o sistema
penitenciário pela promiscuidade e pela violência nas relações
entre detentos entre si e entre detentos e administração.
O sistema de justiça criminal no Brasil está em crise. À
escalada do crime violento a polícia responde com mais violência,
desconhecendo os princípios básicos consagrados no Estado
de Direito. O Judiciário julga com rigor excessivo, convictos muitos
juízes criminais de que a severidade da pena contribuirá
para a diminuição da delinqüência. Se o rigor
da legislação penal diminuísse os índices da
criminalidade, sem dúvida alguma a Lei 8.072/90 (Lei dos Crimes
Hediondos) deverá ter contribuído decisivamente para tal
fim. No entanto, passados cinco anos de vigência da mesma, observa-se
que tal não ocorreu, eis que o tráfico de drogas continua
cada ver mais poderoso e persiste a incidência de crimes considerados
hediondos. É que o paradigma dogmático, positivista, não
mais atende aos reclamos da realidade contemporânea. Surgem, por
outro lado, paradigmas novos, alternativos que assumem uma perspetiva que
transcende os limites normativos da dogmática, procurando captar
os antagonismos sociais e conferindo flexibilidade aos mecanismos juridicos11.
A visão normativista da ordem jurídica idealiza a realidade,
ignora o caráter específico das relações sociais
e omite o fato de o Estado ser determinado pela dinâmica do processo
social12. O controle penal, embora mantendo formas de repressão
tradicionais, começa a utilizar mecanismos alternativos não
enquadráveis com facilidade nos padrões da dogmática
clássica13, por exemplo, novas modalidades de penas como a de prestação
de serviços para a comunidade, mudanças no instituto da suspensão
condicional da pena, criação de "Centros Comunitários
de Segurança" funcionamento de Juizados Especiais Criminais buscando
estes a simplificação do procedimento, maior objetividade,
dando voz à vitima, possibilitando acordo. Trata-se, portanto, de
dinamizar e democratizar o judiciário penal. Com efeito, como refere
Campilongo, impõe-se, hoje, a democratização do controle
social da violência o que implica a democratização
da polícia e do Judiciário14.
Governos militares (1964-1985) centralizaram o poder e enfraqueceram as
instituições civis do Estado brasileiro. Poucos recursos
foram destinados à polícia civil que teve algumas de suas
funções transferidas para a força policial militarizada
controlada pelo exército. O Regime Militar esvaziou o Poder Judiciário,
subtraindo-lhe grande parte da autoridade. A administração
da justiça civil tornou-se cada vez mais ineficiente, prejudicada
por processos lentos e recursos insuficientes. Em 1985, com o retomo do
governo civil, o novo regime passou a desmantelar a legislação
repressiva que herdara. Em 1988, garantias de direitos humanos fundamentais
foram incluídas na nova Constituição e importantes
padrões internacionais de direitos humanos foram ratificados. Ocorre
que a aprovação de lei e a ratificação de instrumentos
internacionais são apenas os primeiros passos em direção
à garantia efetiva dos direitos humanos. É preciso vontade
política ao governo brasileiro para transformar as obrigações
constitucionais em realidade16. Vivemos a contradição da
existência de uma legislação penal liberal17 e de uma
prática repressiva autoritária e/ou totalitária. No
âmbito dos menores infratores temos o Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei 8.069/90), um dos diplomas legais mais avançados
do mundo, convivendo com a realidade do extermínio de crianças
e adolescentes nos grandes centros urbanos do país. Dezenas de pessoas
foram executadas extrajudicialmente pela polícia e por esquadrões
da morte no Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e Salvador no ano de
1995. A prática sistemática de tortura e maus-tratos em delegacias
e prisões continua. Jornalistas, ativistas dos direitos humanos,
membros da Igreja e pessoas que investigam denúncias sobre violações
dos direitos são ameaçados de morte18. Informe Anual para
1995 da Anistia internacional relata que, no Brasil, a polícia e
os "esquadrões da morte" executaram e fizeram "desaparecer" centenas
de pessoas e a instituição recebeu numerosos informes sobre
tortura nas prisões. A maior parte das execuções de
supostos delinqüentes ocorreu em áreas urbanas. Os "esquadrões
da morte" e grupos de extermínio centraram suas atividades em cidades
como Salvador, Rio, Recife e Manaus.
A debilidade das instituições judiciais favorece a violação
de direitos humanos. Só recentemente o Poder Judiciário passou
a ser percebido como instituição capaz de garantir direitos
humanos para a população. Historicamente, esse poder esteve
articulado com os interesses dos grandes proprietários de terra
e com os grupos dominantes em geral. Em certos momentos assumiu, quando
muito, a proteção dos direitos civis (como para garantir
o habeas corpus) ou dos direitos políticos, durante os períodos
constitucionais. Na vigência dos regimes autoritários, inclinou-se
quase sempre a apoiá-los. Mostra-se um poder pouco acessível
à sociedade. Resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
revelaram que a maioria dos brasileiros que se envolve em conflitos prefere
não recorrer à Justiça. Entre aqueles que não
recorreram, a maior parte declarou "haver resolvido por contra própria".
A intervenção judicial é reclamada preponderantemente
em conflitos por pensão alimentícia (73,4%), conflitos trabalhistas
(66,6%)e conflitos pela posse de terra (51,3%). Elevado percentual de pessoas
deixam de recorrer à Justiça em conflitos que envolvam vizinhos
(85%) e problemas criminais (72%).
A pobreza
e a desigualdade social geram, sem dúvida, criminalidade. Nosso
país ocupa o segundo lugar mundial em termos de injusta distribuição
da riqueza. As relações sociais estão contaminadas
pela grande disparidade de renda nos segmentos da população
brasileira. A violência inicia, portanto, aí e prossegue enraizada
nos costumes, na tradição autoritária, culminando
com a prática crescente de crimes pelos setores carentes da sociedade
e com o comportamento dos agentes incumbidos de preservar a ordem pública.
O governo federal bem como os governos estaduais não logram controlar
a violência ilegal do aparelho repressivo e desinteressam-se em aparelhar
corretamente e democratizar a policia. Pelo contrário, asfixiam-na
com baixos salários e poucos recursos. Persistem graves violações
de direitos humanos como torturas e maus tratos a presos em delegacias
e em prisões, violências físicas e sexuais, assassinatos
no campo, mortes perpetradas por esquadrões e justiceiros, linchamentos,
extermínio de crianças e adolescentes supostamente envolvidos
com a delinqüência .
Uma mudança na atual realidade exige a denúncia desses fatos
que atingem os direitos humanos, a responsabilização dos
agentes do Estado autores de violência, em todos os níveis,
a modificação das estruturas sociais injustas, o atuar da
sociedade civil fiscalizando o Estado, a tomada de consciência de
cada cidadão relativamente a seus direitos e deveres e a participação
no embate árduo mas não inviável em favor da vida,
de uma vida mais digna e mais feliz. Como diz Castoriadis, o povo está
apático, desorientado e não encontra a energia necessária
para inventar, criar novas formas de organização e de luta
devendo criar suas próprias instituições, a partir
de um conhecimento reflexivo, questionador. Deve-se trabalhar para afastar
a barbárie que se instala.
1- Juiz de
Direito Titular da 1ª Vara Criminal do Foro Regional do Sarandi (Porto
Alegre-RS), Professor Universitário.
2- OLIVEN,
Ruben George. Violência e Cultura no Brasil. Petrópolis, Vozes,
1989, p. 14.
3- PINHEIRO,
Paulo Sérgio. Violência e Cultura. in LAMOUNIER, Bolivar et
alii, Direito, Cidadania e Participação, SP, T.A. Queiroz,
Editor, Ltda, 1981, p. 31.
4- COMPARATO,
Fábio Konder, prefácio, in BENEVIDES, Maria Victoria. Violência,
povo e polícia, São Paulo, Brasiliense-Cedec, 1983, pp. 9
e 10.
5- BICUDO,
Hélio Pereira. Comentários. in LAMOUNIER, Bolivar et alii,
op. cit. p. 59.
6- Crianças
e adolescentes que residem, via de regra, nos bairros pobres das periferias
urbanas e nas favelas que proliferam nas cidades. A maioria retorna à
casa de todos os dias ou de forma esporádica. Um número bem
menos expressivo "mora" nas ruas (Cf. RIZZINI, Irene e PILOTTI, Francisco,
A (Des)Integração na América Latina e seus reflexos
sobre a infância, in RIZZINI, Irene (org), A Criança no Brasil
Hoje. Desafio para o Terceiro Milênio, Rio de Janeiro, Editora Universitária
Santa Úrsula, 1993, pp. 53 e 54).
7- MORAES,
Aparecida Fonseca e RAMIRES, Mirtha. Meninas na Rua, Mulher no Mundo (um
olhar sobre a lenda). in RIZZINI, Iren e (org), A Criança no Brasil
Hoje. Desafio para o Terceiro Milênio, Rio de Janeiro, Editora Universitária
Santa Úrsula, 1993, pp. 139 e 140.
8- Ver a obra
de Lola Aniyar de Castro, Criminologia da Reação Social,
Rio de Janeiro, Forense, 1983.
9- Sobre o
tema do criminoso nato é interessante lembrar a teoria de Lombroso,
fundador da Escola Positiva eivada do positivismo biológico mais
radical e que Zaffaroni chama de Criminologia racista.
10- BENEVIDES,
Maria Victoria. Violência, povo e polícia (violência
urbana no noticiário de imprensa), op. cit. p. 23.
11- CAMPILONGO,
Celso Fernandes. Notas sobre o Estado, o Direito e a Violência Urbana.
São Paulo, 1987, mimeo, p. 7.
12- FARIA,
José Eduardo, Eficácia Jurídica e Violência
Simbólica - o direito como instrumento de transformação
social. SP, EDUSP, 1988.
13- CAMPILONGO,
op. cit. pp. 12 e 14.
14- Ibidem,
p. 16.
15- Todavia,
o controle da ordem pú
16- ANISTIA
INTERNACIONAL, Brasil: Tortura e execuções extra-judiciais
nas cidades brasileiras, Londres, 1990.
17- Com exceção,
por exemplo, da Lei 8.072/90, modificada pela Lei 8.930/94 e da Lei 9.034/94,
ambas de caráter nitidamente autoritário. De ressalvar, igualmente,
os dispositivos do Código Penal relativamente aos crimes contra
o patrimônio, punidos estes com exagerada severidade.
18- ZERO HORA,
Porto Alegre, 5 de julho de 1995, p. 45.
19- ESTADO
DE SÃO PAULO, São Paulo, 16 de junho de 1996.
20- BRASIL,
Os Direitos Humanos no Brasil, Universidade de São Paulo USP, Núcleo
de Estudos da Violência NEV e Comissão Teotônio Vilela
CTV, São Paulo, 1993, p. 83.
21- Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, Rio de Janeiro, IBGE, 1988,
citado in BRASIL, op. cit. p. 83.
22- CASTORIADIS,
Cornelius, O conformismo está generalizado. in Jornal do Brasil,
11/05/96.