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Julgar além da lei.

Jorge Ulisses Jacoby Fernandes
Procurador do Ministério Público junto
ao Tribunal de Contas do Distrito Federal
Professor de Direito Administrativo da AEUDF

A Constituição Federal estabeleceu, no art. 70, que o controle externo da Administração Pública, quanto à legalidade, legitimidade e economicidade, será feito pelo Congresso Nacional, fixando no art. 71. ''com o auxílio do Tribunal de Contas''.É consabido que, na atual estrutura do Estado Político fundamental, as cortes de contas não ocupam o lugar subalterno de órgão auxiliar. Celso de Mello é enfático ao definir que são órgãos autônomos; Rui Barbosa, como magistratura intermediária; Castro Nunes, como órgãos postos de permeio entre os poderes, sem sujeição a qualquer deles; O Supremo Tribunal Federal, como órgão fiscalizador, inclusive em relação ao próprio Poder Legislativo.

Junto aos tribunais de contas, atua com independência funcional um Ministério Público especial, distinto do elencado no art. 128 da Constituição Federal, como fiscal da Lei, zelando pelos interesses difusos da coletividade na boa aplicação dos recursos públicos.

Enquanto adstrito ao aspecto da legalidade, essa instituição secualr tem como viga mestra de sua atuação apenas e exclusivamente a observância estrita da norma legal.

Já o plenário do Tribunal de Contas, composto de ministros da União e de conselheiros nas demais esferas de governo, não estão adstritos à legalidade. Podem e devem pautar seu julgamento pelos demais princípios - da legalidade e da economicidade -, cuja guarda o constituinte lhe impôs. Daí por que muitas vezes há divergência entre a posição firmada nos autos pelo Ministério Público junto ao tribunal e a deliberação definitiva dessas cortes.

Para o Ministério Público, tenaz fiscal da Lei, a prevalência da norma corresponde à vontade máxima do povo, cristalizada no comando consagrado pelos seus legítimos representantes. Cumprir a lei, nessa ótica, é dar concretude ao regime democrático na aplicação das verbas públicas.

Em inúmeras e várias vezes, a aplicação exata da norma legal forma estrita, sem contextualização, poderia corresponder a um desastroso procedimento frente ao ordenamento social.

Por aí, bem se compreende a sabedoria do Constituinte ao colocar as cortes de contas como guardiãs dos princípios da legalidade, da legitimidade e da economicidade.

Muitas vezes, cabe a essa instituição reservar outros valores da ordem jurídica, no mesmo degrau axiológico da legalidadae, nem sempre adequadamente compreendido.

Parcela da imprensa, tantas vezes rigorosa, desconhece a rotina habitual dessas instituições, acabando por, irresponsavelmente, incorrer em desinformação e omissão.

Assim é que, no ano passado, foi veiculado que o TCU hvia se colocado acima da Constituição, exigindo que uma empresa pública, para assumir controle acionário de outra, tivesse lei autorizadora. Periódico de São Paulo intitulou um artigo ''O Tribunal faz de Contas''. Sequer uma referência foi feita ao art. 37, inc. XX, que amparava, na mais exata literalidade, a decisão da corte.

Na mesma esteira, no ano passado, quando se tentou o aumento das alíquotas da previdência para cobrir déficit e ssa corte demonstrou o erro das apurações, a imprensa reduziu o fato a um conflito entre os órgãos do governo.

Quando dezenas de prefeitos foram descobertos e punidos, por estarem com o dinheiro do município bloqueado pelo Plano Collor em contas particulares, nada foi citado pela imprensa, nos reiterados julgamentos pelas obras paralisadas ou inacabadas, em que se evidenciam as verdadeiras causas do desperdício do dinheiro público. Setores da imprensa ignoram o próprio Diário Oficial.

Há na órbita distrital, em exata simetria com o modelo federal, louváveis exemplos de harmonização do princípio da legalidade e os outros dois correlatos. Em vários casos, a auditoria realizada pelo TCDF avalia desde a demissão de pessoal, a adequação das dotações orçamentárias, uso de telefone, pagamento de diárias, até concessões de gratificações e reajustes salariais, determinando a correção de reajustes contratuais e, nessa esfera, poucos processos já representaram economia de milhões.

Muitas vezes, quando o afastamento da lei não traz prejuízo à Fazenda Pública, limita-se a recomendar o procedimento corretivo ou a observância ''ad futurum'' dos preceitos legais. Noutra, como já aconteceu na esfera federal e distrital, reconhecendo como causa o despreparo dos servidores encarregados das tarefas, recomendou que fossem submetidos a treinamento. Recordo-me que, em vários casos, determinou o reforço do serviço de vigilância e, até como conseqüência desse persistente trabalho, acabou por forçar a vigilância sobre escolas e respectivos bens que as guarneciam.

Em dezenas de vezes, recomendou a elaboração de lei para corrigir fatos graves que implicam o desperdício do dinheiro público e não se eximiu de reconhecer a inconstitucionalidade de despesas realizadas com o fulcro em lei em desconformidade com a Constituição Federal, na estrita fórmula consagrada pelo Supremo Tribunal Federal na Súmula 347.

O Tribunal de Contas da União, mesmo antes do Supremo Tribunal Federal, firmou entendimento de que, à luz da Constituição de 1988, era obrigatório o concurso público também para a Administração Indireta que explorasse atividade econômica, impedindo novas admissões sem concurso a partir dessa data. Tendo, porém, em linha de consideração o princípio da continuidade do serviço público, a boa-fé e o dissenso jurisprudencial o doutrinário, visando sobretudo à estabilidade das relações jurídicas, permitiu a manutenção do pessoal admitido até a data do seu precedente julgado.

A grande maioria dos Tribunais de Contas ainda sofre de um mal maior: como a comunidade jurídica, com raras e honrosas exceções, desconhece o seu funcionamento, vêm sendo extremamente mal defendidos perante o Judiciário. O tradicional princípio de regência de magistratura ''da mihi factum, dado tibi jus'' tem passado ao largo de muitos julgados. Não fosse o já habitual desconhecimento do Direito Administrativo por parte de juízes e desembargadores, mais afeiçoados ao Direito Civil e Penal, no caso em particular, em muitas unidades federativas chegam a anular decisões sob o argumento de que as cortes de contas não garantem a ampla defesa. Por ironia, exatamente para prestigiar esse preceito constitucional, gasta-se tempo e dinheiro, na tentativa de trazer aos autos o pronunciamento pessoal do envolvido, que, para sua comodidade, detém a prerrogativa da prescindibilidade do advogado.

Outras vezes, julga-se concedendo vantagens sem sequer uma pesquisa sistemática da legislação, violanto literalmente a lei, num descompasso acintoso ao ordenamento jurídico, porque a prática de bensesses à custa do erário não se restringe ao Poder Executivo.

O mais recente golpe ao controle externo, e que está tendo funestas conseqüências ao alcançar repercussões em algumas cortes, é a tentativa de reduzir a fiscalização ao exame da despesa. Sob o obtuso argumento do sigilo fiscal, tentam impedir o controle da receita pública, tendo por lastro lamentável liminar concedida pelo Poder Judiciário, conforme já veiculado no caderno Direito & Justiça. Por certo, o SFT não tardará em reparar essa grave lesão à atividade do controle.

Exxe exame perfunctório autoriza firmar uma premissa fundamental: há o julgamento estrito da legalidade no âmbito do controle externo, mas, para que o mesmo alcance mais eficácia e eficiência na exata dicção constitucional, enriquece-o os princípios da economicidade e da legitimidade. Nenhum juiz teria a amplitude de ir além da lei para estancar a causa, notadamente porque adstrito à questão ''sub examem''.

Já os Tribunais de Contas, porque contam com um corpo técnico de analistas selecionados em rigoroso concurso público, têm produzido obras de excelsa qualidade, com rigor científico, apontando desvios e orientando medidas corretivas consagradas em Plenário. Ponderando as repercussões concretas da lei na medida do contexto de sua aplicação, essas cortes prestam relevantes serviços ao contribuinte, atuando com serenidade mesmo em relação aos que pretendem apenas denunciar por denunciar, sem ter em consideração a probidade na aplicação dos recursos públicos.

Essa tarefa, constitucionalmente reservada às cortes de contas, é um julgamento não restrito à lei, mas além da lei, por expressa determinação constitucional e, portanto, também jurídico. Carlos Maximiliano, com sua habitual mestria, captou a dinâmica do jurídico e do social no exercício da Justiça, quando asseriu: ''Coincidem a ordem jurídica e a vida do homem em comunidade, por isso toda a legislação, graças à unidade do objetivo - que é disciplinar a utilidade social - e à unidade da idéia fundamental - que é assegurar a Justiça - constitui um organismo com forças latentes de adaptação e expansão, encerrando o germe de uma série de normas não expressas, porém vivazes e implícitas no sistema''.

Se é inafastável que essa instituição necessita evoluir em vários aspectos, também o é que tem dado passos largos e acelerados para corresponder às cobranças da sociedade e suas expectativas.

Há um milenar e precioso ditado chinês segundo o qual a jornada de mil léguas se inicia com um passo: demonstra permanentemente o próprio Diário Oficial que veicula as decisões que a largada já foi dada há bastante tempo.
 
 

(artigo retirado da página http:/www.solar.com.br/~amatra/cb-15.html)