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O Tribunal do Júri : justiça popular ou mistificação?

Autor: *Rodolfo Tigre Maia
Data: 16/novembro/96

" 'Que les jurés délibèrent en vue de rendre leur jugement', dit pour la vingtième fois, peut être, de la journée, le roi. 'Non, non! S'écria la reine. La condamnation d'abord ... le jugement ensuite!' " Lewis Carrol, Alice au pays des merveilles
 
 
 

1. Instituto jurídico de existência secular em nosso direito positivo, cujas origens históricas remontam a junho de 1822 (para delitos de imprensa) e já reconhecido pela Constituição Imperial, outorgada em 1824 (art. 151), o Tribunal do Júri tem despertado candentes polêmicas. Com efeito, o Júri divide os estudiosos do tema em dois campos radicalmente antagônicos, armados de argumentos definitivos e juízos conceituais irrefutáveis.
 
 

2. Não nos interessa em nossa abordagem, entretanto, perquirir acerca das virtudes e dos deméritos usualmente atribuídos ao instituto. Nosso escopo limitar-se-a tão-somente à discussão e a tentativa de desmistificação de uma particularidade do Júri, reconhecida e proclamada por defensores e por detratores, qual seja, a de que ele representaria a presença de uma "justiça popular" no bojo de um ordenamento jurídico que preconiza a tecnicalidade dos julgamentos (v.g. art. 93 da atual Carta Política).
 
 

3. Assim, impende desde logo estabelecer, se possível, os contornos desta categoria heurística "justiça popular" enquanto integrante da regulação jurídica concreta. Sob o ponto de vista formal, podemos dizer que tratar-se-ia de um julgamento efetuado por cidadãos comuns, pertencentes inclusive as camadas sociais subalternas (operários, camponeses, pequenos-burgueses), não investidos da função pública de julgar e, numa perspectiva material, defrontar-nos-ia-mos com um julgamento de consciência, dispensado da fundamentação técnico-normativa que é constitucionalmente exigível ao magistrado profissional (art. 93, IX da CF). Destarte, justiça popular nesta ótica seria aquela em que as decisões são tomadas pelos cidadãos comuns, segundo uma regulação formalmente subordinada aos cânones jurídicos tradicionais, com um rito fixado por normas processuais convencionais, mas informada ontologicamente, no que pertine ao processo decisório e aos agentes deste processo, por uma lógica outra que a da ciência jurídica. Ao nível da veiculação ideológica formadora do imaginário social, o Júri seria a realização da Justiça pelo povo e para o povo: o julgamento dos iguais.
 
 

4. O primeiro óbice a uma tal concepção nos é fornecido por Michel Foucault ao assinalar que "o tribunal não é a expressão natural de uma justiça popular mas, pelo contrário, tem por função histórica reduzi-la, dominá-la, sufocá-la, reinscrevendo-a no interior de instituições características do aparelho de Estado"2. Na realidade, como corolário desta formulação, teriamos a presença de uma instância pretensamente neutra, o Tribunal, organizada nos moldes jurídicos tradicionais, que em virtude do seu comprometimento ideológico "domesticaria" a expressão de uma efetiva vontade popular. Ou seja, a forma , o método e o próprio local descaracterizariam a feição popular dos julgamentos feitos no Tribunal do Júri. Interessante, nesta perspectiva, a própria topologia do cenário onde se desenvolve o julgamento popular. A posição do juiz, do órgão do Ministério Público, da defesa, do réu e do corpo de jurados é bastante reveladora do processo de sacralização do Tribunal do Júri. Aduza-se, ainda, que a integração do povo no Poder Judiciário destinou-se primigenamente à mitigar as sérias desconfianças populares em relação àquele poder, comprometido integralmente com o absolutismo monárquico, no processo de transição para o modo capitalista de produção, com se infere em especial dos eventos relacionados à Revolução Francesa de 1789. Nos diversos processos revolucionários de conteúdo popular (v. g. a própria revolução francesa, a revolução cultural chinesa, a insurreição sandinista na Nicarágua etc), entretanto, jamais rompeu-se - mesmo que constituindo mero simulacro - com os requisitos formais originários da denominada justiça burguesa.
 
 

5. Uma segunda objeção, específica de uma tradição jurídica inaugurada pela Constituição de 1946 (art. 141, § 28), diz respeito ao campo mínimo de atuação do Júri, assegurando-se hodiernamente apenas o julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Em conseqüência, os fatos típicos sujeitos ao julgamento popular são os que pertinem ao bem jurídico vida, dentre todos os valores sociais protegidos pelas normas penais (patrimônio, economia popular, sistema financeiro etc.) o mais esvaziado de um conteúdo nitidamente classista e o menos susceptível à ideologização. Deste modo, via de regra, o aparecimento de embates que questionem a própria organização social, potenciais em qualquer questão jurídica, são nitidamente reduzidos nas hipóteses fáticas submetidas ao Júri.
 
 

6. O terceiro obstáculo, nesta ordem de questões, pertine ao estrato social que fornece os jurados populares. De fato, constatamos em nossa atuação, quer como jurado quer como órgão do Parquet estadual, que os funcionários públicos constituem em especial nas capitais a grande maioria dos jurados em atuação. Tal fato decorre em larga medida de deficiências intrínsecas ao processo de seleção dos jurados e ao funcionamento dos tribunais com pautas mensais de sessões, bem como, em conseqüência, do lapso de tempo não remunerado no qual o cidadão estará à disposição do Tribunal do Júri. Os trabalhadores da iniciativa privada correm o risco permanente da demissão tão logo retornem ao seu mister e os autônomos (profissionais liberais, lavradores, taxistas etc) tem evidente prejuízo financeiro com um longo período de inatividade. Logo, por exclusão, seleciona-se de preferência funcionários públicos. Assim, o julgamento pelo júri seria essencialmente um julgamento pequeno-burguês, qual seja, na imagem já utilizada alhures, efetuado por representantes da classe integrada por indivíduos cuja situação concreta de vida os aproxima do proletariado mas cujos anelos conduzem às classes dominantes.
 
 

7. Finalmente, existe a limitação concernente à dinâmica do processo decisório no Júri. Como se sabe, as decisões resultam da maioria dos votos dos setes jurados que compõem o Conselho de Sentença e manifestam-se através de votos secretos, recolhidos na denominada sala secreta. Os votos são absolutamente individuais e não resultam de um processo de discussão formador de um consenso. Sendo terminantemente vedada qualquer comunicação entre os jurados, reforça-se o individualismo em detrimento de visão de coletivo. E, acrescente-se, refoge ao âmbito do poder decisório dos jurados a fixação do quantum e da natureza da reprimenda punitiva a aplicar-se em cada caso, que se reserva ao campo dos competentes no domínio da técnica jurídica, os magistrados. A própria soberania de seus veredictos é relativizada pela possibilidade de reforma de suas decisões pelos tribunais superiores que podem anulá-las se "contrárias as provas dos autos".
8. Se o conjunto de limitações expostas podem desnaturar o caráter "popular" do Júri, não se pode olvidar que mesmo assim encontram-se presentes em seu funcionamento diversas conquistas populares, expressas sobremodo nas garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa etc. que consubstanciam verdadeiros direitos opostos ao próprio Estado, limitando a "servidão voluntária" e a "violência legítima". Sua existência e manutenção questionam permanentemente a legitimidade do Poder Judiciário e das leis que ele cegamente aplica. Reflete os anseios pela democratização de uma justiça que chega aos excluídos apenas através da mão pesada e da face sombria do Direito Penal. Revela ao oprimido que mesmo quando convidado formalmente a participar da novela judiciária reserva-se-lhe um papel mesquinho e secundário ...
 
 

*O autor é Procurador Regional da República no Estado do Rio de Janeiro, Professor de Direito Penal do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC/RJ e representou o Ministério Público Federal no Conselho Penitenciário do Estado do Rio de Janeiro no período de 1991/1993.

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