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Neoliberalismo : um modelo de desinstitucionalização da proteção social.

Zéu Palmeira Sobrinho
Juiz do Trabalho da 21ª Região/RN


SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito; 3. Neoliberalismo: uma criação do Estado Amplo sorvendo o Estado Restrito; 4. O elemento coerção como integrante da práxis neoliberal; 5. O elemento estigmatizante como produto da práxis neoliberal; 6. O campo de atuação : O debate entre Friedman e Sartori; 7. Estratégias; 8. Conclusão; 9. Bibliografia
 

1. Introdução:

O nosso objetivo - a princípio - é revelar uma observação da realidade cambiante em que se insere a temática neoliberal, indigitando um conceito e identificando alguns elementos indispensáveis da análise do tema, porém, sem o intuito de esgotar a interpretação de um fenËmeno tão paradoxal, tão rico em detalhes pragmáticos e tão pobre em edificação teórica.

Inicialmente alguns esclarecimentos são necessários para o bom entendimento do texto. Procuraremos abordar aspectos do neoliberalismo, como estratégia de sobrevivência e dominação do Estado Amplo, tendo em vista a situação real de alguns países : França, Inglaterra, EUA, Chile, México e Brasil. Porém, esse limite de análise não implica na impossibilidade de uma contextualização da abordagem .

Quando sustentamos que a análise prende-se ao "modus operandi" do capitalismo real queremos aqui trabalhar três premissas : a ausência de princípios uniformes do neoliberalismo; a necessidade da análise do capitalismo pragmático; e o ingente caráter do Estado em decorrência da práxis neoliberal.

A primeira premissa justifica-se no sentido de que é impraticável uma análise teórica do neoliberalismo, em face da ausência de pressupostos teleológicos decorrentes de uma construção metodológica e, ainda, pela peculiar falta de permanência de feições uniformes que o tornam diferente na prática política .

 A segunda assertiva ruma no sentido de que não falaremos de um capitalismo ideal , mas de uma situação real, de modo que evitaremos aqui o pecado cometido por Friedman que , na sua obra Capitalismo e Liberdade, delineia um quadro comparativo entre o socialismo real e o capitalismo fictício, cuja finalidade parece ser apenas fazer a apologia do mercado ideal. A fidelidade científica da análise requer um tratamento destituído de prenoções controvertidas.

A terceira proposição tem puro escopo metodológico, adotando-se nesse particular aspecto , conforme sugere o Professor João Bernardo , a existência da conjugação de dois modelos de Estado: o Estado Amplo e o Estado Restrito . Trata-se de uma abordagem na qual se discute o nexo causal entre o Estado e o neoliberalismo.
 

 2 . Conceito.

Lamentavelmente inexiste uma construção teórica do neoliberalismo, ou seja, não há - como existiu em relação ao Estado Liberal - uma postura metodológica do sistema de idéias neoliberais. Inexiste um estudo elaborado de modo sistemático que orienta as ações neoliberais. Ressente-se, assim, de uma teoria neoliberal fincada em princípios, definições, premissas, normas de conduta, objetivos políticos e econômicos previamente definidos.

Essa dificuldade demonstra bem de certa forma que o "neoliberalismo com que convivemos dificilmente se encarna em obras de intelectuais de reconhecida competência. Mereceu mesmo, até agora, pouco esforço de exposição sistemática, com algumas exceções que podem ser encontradas no campo da economia. É antes um conjunto de regras práticas de ação (ou de recomendações), particularmente referidas a governos e a reformas do Estado e das suas políticas..." Em realidade o neoliberalismo nada mais é do que uma visão reformada de um Estado liberal, na medida em que neste pode ser encontrado um certo conjunto de similaridades.

As dificuldades mencionadas no parágrafo anterior foram bem discutidas por Sônia Draibe. Esta, na tentativa de identificação das proposições neoliberais, apontou três dificuldades: a inexistência de uma sólida construção teórica do neoliberalismo; a mutabilidade e adaptabilidade das práticas neoliberais à realidade histórica de cada país; e a adoção de proposições ecléticas, fato este que faz com que se rompa com a lógica da exclusividade da proposta da 'esquerda' ou da 'direita' .

Em nossa concepção essas mesmas dificuldades, apontadas anteriormente, são obstáculos à uma conceituação do fenômeno neoliberal. Porém, sem uma preocupação maior em delimitar conceitualmente o fenômeno neoliberal, urge afirmar-se que alguns estudiosos - como Laurell - elencam alguns critérios que são postos na definição do neoliberalismo, quais sejam: o critério da amplitude e cobertura dos benefícios sociais; e o critério do grau de intervenção estatal.

A pratica está a demonstrar que há por parte dos neoliberais uma conduta ambígua, tanto que se divorcia o discurso da prática na medida em que o grau de intervenção do Estado não serve para caracterizar o neoliberalismo . A todo o momento países que são ditos neoliberais estão intervindo na economia, notadamente para atender alguns interesses do capitalismo financeiro.

Entendemos que o elemento reciprocidade é também um dos móveis integrantes de um conceito em constante reconstrução. A reciprocidade, exigida como condição da aplicação de políticas públicas, encontra sua explicação no fato de que interessa ao Estado neoliberal manter uma relação de troca, de tal modo que o objeto das políticas sociais (saúde, segurança, educação, etc) é restrito , uma vez que é do interesse do capital privado explorar com lucro esses serviços supracitados. Esse aspecto revela que a finalidade do Estado neoliberal, que vai redefinir uma ação do neoliberalismo, é um conjunto de regras "ad hoc" adotadas no sentido de diminuir as demandas sociais que até bem pouco eram absorvidas pelo "Welfare State".

Outro dado importante a ser analisado finca-se na necessidade de legitimação. O "Welfare State" tentava a legitimação do Estado através, dentre outras , de políticas públicas universalizantes e de uma política de investimentos em infra-estrutura, sempre com uma preocupação em um desenvolvimento do Estado capitalista como resposta as ampliadas demandas sociais, fato este que servia de aceleração do endividamento público.

As práticas neoliberais objetivam a legitimação do Estado através de políticas públicas focalizadas e de uma política de investimentos restrita em face da necessidade de contenção dos gastos públicos, manifestando uma preocupação em um desenvolvimento do mercado que - quase sempre - transforma as necessidades sociais em mercadoria.

Assim, com base nos elementos discutidos ousamos conceituar o neoliberalismo a partir de suas características gerais, dentro de uma concepção dialética, como um conjunto de medidas práticas , antagônicas em relação ao Estado de Bem-Estar, cujas características são: a reciprocidade das políticas públicas e a conseqüente remercantilização dos bens sociais (saúde, educação, etc); e a adaptabilidade às mutações econËmicas verificadas dentro de uma determinada região e em face de um determinado contexto histórico.
 

3. Neoliberalismo: criação do Estado Amplo sorvendo o Estado Restrito

Quando se estuda o Estado e o neoliberalismo surge , como antecedente lógico , a questão : de qual é o Estado que estamos a falar ??? A indagação é rompida pela original classificação do Estado (Restrito e Amplo) fornecida por João Bernardo, professor visitante da Universidade Federal do Rio Grande do Norte , no Brasil, que preleciona : "O Estado Restrito é o aparelho político clássico, combinado com os poderes executivo, legislativo e judiciário" (...) "O Estado Amplo resulta da autoridade que cada patrão exerce no interior da sua própria empresa. Resulta ainda da hegemonia que as empresas detêm sobre a sociedade em redor. O Estado Amplo é constituído pelas empresas enquanto aparelho de poder".

Não empreenderemos - como fez o escritor supracitado - um estudo crítico dos princípios do Estado ou dos seus fundamentos lógicos determinantes. Abordaremos o valor da concepção de sua classificação levando em consideração o aspecto da construção de um Estado Amplo sob a égide da política neoliberal. Daí surge outra indagação: por qual motivo a prática neoliberal implica no incisivo destaque ao Estado Amplo ? Talvez possamos encontrar a resposta ao longo desse debate.

O modelo do "Welfare State" fracassou na sua tentativa de dar respostas as inúmeras demandas sociais que emergiram a partir da década de 30. Durante este período até meado da década de 70, as diferentes unidades do capitalismo se desenvolveram num ritmo frenético. As empresas chegaram , como diz João Bernardo, a dominar as Condições Gerais de Produção. A partir da concretização dessa dominação, dentre outros fatores, foi a perspectiva de crescimento da taxa de lucro que começou a preocupar as diversas unidades econômicas. O empresariado concluiu, então, que a expansão do capitalismo era inviável ante as atribuições do Estado Clássico. Assim, configurou-se então a fase de preparação do advento da práxis neoliberal. As interconexões entre empresas e unidades econômicas viabilizaram um poderio transnacional do capitalismo. As transnacionais, com a colaboração do capital nacional, assumiram setores estratégicos da economia. Todavia, a expansão do capitalismo - naquele momento - passava estrategicamente pelo esvaziamento da competência do Estado Clássico. Surge, a partir daí, o processo de remercantilização dos bens sociais, cuja estratégia será abordada adiante (cf. item 7).

O processo para imprimir um caráter mercantil aos bens sociais foi antecedido de um modus operandi. Este consistiu em se colocar em prática a assertiva de que , antes da remercantilização , os bens sociais deveriam se tornar remercantilizáveis. O aludido processo começou então a trabalhar a impotência e o desgaste do Estado Clássico. Este , finalmente, transformou-se no que chamamos de Estado Restrito.

Portanto, o neoliberalismo foi o marco pragmático da construção de um novo perfil do Estado Clássico, no qual suas funções são determinadas ou sorvidas pelo poder empresarial, ou seja, pelo novo Estado Amplo.
 

4. O elemento coerção como integrante da práxis neoliberal .

No estudo dos fatos sociais , Durkheim nos fornece um conjunto de regras, cujo caráter é de universalidade científica, que sem as quais estaremos certamente fadados ao insucesso da análise socio-política de um fenômeno. Assim, dentre as regras podemos afirmar que um procedimento técnico nos leva inicialmente a um estágio de observação dos fatos sociais e, somente a seguir, teremos condições de proceder a uma distinção entre o que é o fato social normal e o que é o fato anômalo. Estas fases precedem o estudo da constituição dos tipos sociais que, aliada à administração da prova, deverão fornecer explicações sobre os fatos sociais analisados.

Adotando-se o escopo metodológico de Durkheim podemos chegar a afirmar que - no momento da observação do fenômeno neoliberal - detecta-se uma particularidade própria de todo fato que exerce influência sobre a vontade dos indivíduos, trata-se do que chamamos de coerção social. Esta vem a significar a assertiva de que um fenômeno social se manifesta a rigor com uma certa independência em relação aos indivíduos-cidadãos, porém, constrangendo-lhes. Tal força dirigista funciona como se um produto novo fosse criado independente da vontade individual de cada cidadão.

O fenômeno neoliberal , como artifício da necessidade de inovação das formas de apropriação do capital, exerce uma influência institucional sobre as pessoas de modo a forçá-las a incorporar um comportamento cujo resultado é a absorção de uma crença nas "verdades" em que se encerra.

A coerção mais eficaz de um fenômeno é aquela em que ocorre um consentimento obtido a partir de uma visão passiva do mundo. O neoliberalismo , como expressão do ideário capitalista, é algo que é produzido a partir de fatos concretos de modo que o senso comum não o identifica com facilidade.

Como um conjunto de regras práticas, o neoliberalismo é também uma forma de adaptação da economia vigente à anarquia do capitalismo. Nesse aspecto , sem embargo do respeito pelos que opinam em contrário, parece-nos que Friedman tem uma visão embaciada da realidade quando chega a afirmar que a harmonia do mercado é obtida através da cooperação inserida dentro de um capitalismo competitivo. A aludida assertiva é infeliz pelo fato do autor cuidar de um capitalismo utópico. A propósito, inexiste sequer a possibilidade de um capitalismo puro, estritamente competitivo, pelo simples fato de que a harmonia do mercado é incompatível com a sua evolução . Logo, é notória a multiplicidade de facetas do capitalismo (competitivo, selvagem, monopolista) dentro de uma mesma realidade geográfica e histórica. Não é crível que - numa economia globalizada - se cometa a herética afirmação de que em um pais "x" ou "y" o capitalismo é puramente competitivo ou puramente selvagem. As transformações do capitalismo levaram a competição e a luta para todos os recantos, a miséria chegou com o capitalismo mesmo naquelas culturas que até bem pouco ainda viviam uma civilização de produção feudal.

Assim, em suma, queremos sustentar aqui que o neoliberalismo é também uma forma do capitalismo coagir - através de inúmeras formas (ex.: marketing, políticas de investimentos, modismos, etc , etc) - as pessoas a adotarem um comportamento que seja mais conveniente ao capital. Embora sendo cômodo ao capitalismo, o neoliberalismo quando absorvido pela sociedade, política ou civil, cria uma representação em quem o absorve, cujo efeito principal é a crença de que os interesses neoliberais fincam-se na aspiração de modernização. Ademais, a drasticidade das medidas comumente identificadas como neoliberais são compensadas através da execução de programas sociais localizados e de uma tendência a um equilíbrio monetário, cujo maior mérito é o controle da inflação.
 

5. O elemento estigmatizante como produto da práxis neoliberal .

O neoliberalismo fornece aos indivíduos a "alternativa" de integrar-se no mercado seja como produtor ou consumidor. Nesse aspecto há que se fazer uma distinção - meramente didática - entre o estigma da política pública e a concepção estereotipada da política econômica.

As políticas públicas restritas do Estado neoliberal, têm características e destinatários delimitados. As aludidas políticas são fincadas de modo antagônico a qualquer idéia de planejamento e são direcionadas unicamente à pobreza absoluta. Há assim uma estigmatização dos sujeitos beneficiários dessa política, de modo que em algumas ocasiões muitos dos seus potenciais destinatários não vislumbram uma identificação com a ação do Estado pelo fato de nutrirem uma antipatia para com determinados programas sociais que pejorativamente marcam com ferrete uma qualidade inferior de homem: o absolutamente pobre de recursos econômicos.

A política econômica do neoliberalismo descaracteriza os trabalhadores como sujeitos de classe ao tempo em que os incluem no amplo mercado na qualidade de consumidores. Nessa diretriz Esclarece Friedman :

"Ninguém que compra pão sabe se o trigo usado foi cultivado por um comunista ou um republicano, por um constitucionalista ou um fascista ou , ainda, por um negro ou por um branco. Tal fato ilustra como um mercado impessoal separa as atividades econômicas dos pontos de vista políticos e protege os homens contra a discriminação com a relação a suas atividades econômicas por motivos irrelevantes para a sua produtividade - quer esses motivos estejam associados às suas opiniões ou a cor da pele"

A análise supracitada peca pelo simplismo, trata-se de uma indução apressada que se fulcra naquilo que se convencionou chamar de juízos de simples inspeção.

Na medida em que uma camada social apenas tem acesso à saúde, à educação, ao transporte , a pergunta essencial não é saber quem produziu esses bens, mas sim quem se beneficia verdadeiramente da produção desses bens. Acrescenta-se também a essa preocupação a necessidade de indagação sobre o que ocorre por trás desse processo produtivo. A rigor, o pão que o negro plantou pode ser causa da sua escravidão, o calçado que o neoliberal usa pode ser fruto da exploração irregular do trabalho de criança , o eletrodoméstico que o cidadão adquire pode ser fruto de um chamado "dumping social", ou seja, a causa do seu desemprego, etc, etc.
 

6. O campo de atuação : O debate entre Friedman e Sartori.

Para Friedman não existe um território econômico separado do campo político, uma vez que o econômico e o político são interdependentes, de modo que o aludido autor chega a afirmar que "existe uma relação íntima entre economia e política".

Para Sartori há que se distinguir um liberalismo político de um liberismo econômico. O divisor de águas utilizado pelo supracitado autor transforma-se numa ginástica nomenclatural compreensível apenas num contexto histórico.

Sartori, invocando um certo amparo histórico , afirma que o verdadeiro liberalismo se situa no campo político. O autor identifica em Tocqueville toda a construção desse processo conceitual de liberalismo como algo umbilicalmente vinculado à democracia liberal, ou seja, um conceito cuja temática é marcada por uma concepção de igualdade em harmonia com a liberdade. A preocupação filológica de Sartori é evitar que se confunda o liberalismo político com o liberismo econËmico. Aquele , como já foi dito, significa o império da ordem jurídica e a intangibilidade dos direitos políticos, não se vinculando ao aspecto econômico.

Nesse aspecto parece que Friedman foi mais feliz ao constatar a obviável temeridade que se comete na tentativa de se construir uma cisão entre os aspectos econômicos e políticos. Com isso não afirmamos que o político se reduz ao econômico, ou vice-versa, mas que essa fragmentação visa tão-somente atender a um intuito de abstração, não servindo para interpretar a realidade.

Embora tal discussão se prenda mais em alguns aspectos do Estado Liberal, torna-se necessário concluir-se que a divisão existente entre o político e o econËmico é meramente didática, de modo que não se pode negar a interdependência que é própria do contexto em que se inserem.
 

7. Estratégias.

Antes de adentrarmos no estudo do conjunto de estratégias neoliberais declinamos , reiteradamente, que nosso mero intuito é discernir a realidade, sem a preocupação de ideologizar a discussão. Logo, nossa tarefa será identificar pontos negativos , mas também aquilo que - na nosso modo de entender - pode ser traduzido em resultados positivos.

Afirmamos anteriormente que é difícil mapearmos estratégias neoliberais firmadas em uma construção teórica consolidada. Porém, é inegável que alguns procedimentos são comumente invocados no discurso neoliberal. Tais procedimentos, antes de serem identificados como postulados são , antes de tudo, estratégias postas para a viabilização de resultados a curto ou médio prazo.

Entendemos que três são as principais estratégias neoliberais: a) diminuição do déficit público; b) remercantilização dos bens sociais; c) a desinstitucionalização da proteção social.

Antecipadamente, porém, urge afirmar-se que essas estratégias são mutáveis e meramente exemplificativas, afastando-se assim qualquer caráter limitativo na práxis neoliberal.

a) a diminuição do déficit público

Um dos procedimentos da política neoliberal vincula-se ao saneamento das contas públicas. Esse ajuste das contas públicas se dá principalmente através da redução dos gastos sociais e da utilização de políticas empresariais flexíveis tais como a terceirização, a privatização, etc.

A série de instrumentos utilizados para se chegar a uma redução dos gastos sociais é a medida cujo impacto é mais perverso , notadamente pelo fato de que tais estratégias geralmente não ponderam as tensões sociais do mundo moderno (o problema da habitação, o problema da educação, o problema da saúde, etc), eis que atribuem ao mercado uma responsabilidade de regular todas essas tensões .

Para parte dos setores produtivos o aspecto positivo do controle das contas públicas, dentro de um contexto amplo de medidas, é a facilidade que o Estado vai encontrar em controlar o processo inflacionário, principalmente pelo fato de que o corte dos gastos vai implicar num certo retraimento da sanha tributária do Estado.

Ademais, a prática vem a demonstrar um fenômeno que deve merecer especial atenção dos estudiosos. Os Governos que se preocupam em conferir uma certa estabilidade da moeda têm, principalmente nos países de terceiro mundo, tido uma boa aceitação popular. Assim, a inflação controlada vem sendo utilizada como forma de legitimação do Estado Neoliberal. Nossa preocupação é saber até quando pode persistir esse fenËmeno, mantido à custa de uma postura que , em regra, não satisfaz a algumas unidades do capital.

b) a remercantilização dos bens sociais

O fenômeno da remercantilização dos bens sociais já foi objeto de investigação de dois renomados estudiosos : Offe e Habermas.

Em Habermas encontramos que o capitalismo vivencia crises cíclicas , uma vez que há a tendência de preponderância de monopólios e oligopólios o que gera assim sempre um capitalismo tardio. Com isso o capitalismo perde o controle do mercado, necessitando da ação do Estado para alocar os recursos.

Para Offe, crítico que melhor definiu tal fenômeno, o capitalismo traz em si uma fortíssima e contínua propensão a mergulhar num processo de desmercantilização, ou seja, "a força de trabalho e os recursos alienáveis tendem a ser retirados do mercado ou então trocados por meio de mecanismos não-mercantis".

Embora Offe tenha detectado tal falha do capitalismo, Adam Przeworsky entende que essa desmercantilização é fruto do capitalismo monopolista cuja estratégia em parte é fragmentar a polarização existente entre o capital e o trabalho nas trocas mercantis.

Ajoujada a esta tendência da desmercantilização do capitalismo, o Estado neoliberal tem a preocupação cada vez maior de evitar esse processo. Daí, surgir um incisivo processo de remercantilização dos bens sociais como forma de oxigenar o mercado com novos produtos.

O fenômeno da mais-valia relativa, identificado na atualidade com uma forte inovação tecnológica da produção e uma miríade de programas de qualidade , requer cada vez mais um capitalismo com um mercado dilatado e em ascendente abertura, como forma de equilibrar os ganhos do capital. Esse processo de alargamento do mercado está vinculado também à preocupação em se evitar disparidades nas taxas de lucro, eis que as distâncias abismais entre taxas de lucros atingidas pelos capitalistas culminam na consagração de um capitalismo monopolista.

O processo de remercantilização dos bens sociais vem acompanhado também da implementação, por parte do Estado neoliberal, de políticas públicas restritas e focalizadas. Esse tipo de ação pública revela bem o princípio modelar do neoliberalismo: "A cada um de acordo com o que ele e seus instrumentos de trabalho produzem".

Essa remercantilização denota bem a tendência do Estado neoliberal em descaracterizar o sujeito que - na qualidade de cidadão - tem o direito subjetivo a determinados bens sociais , imputando-lhe agora a "alternativa" de integrar-se no mercado seja como produtor ou consumidor.

As políticas públicas focalizadas são direcionadas no sentido de fazer emergir também alguns subsistemas de previdência pré-industrial, ou seja, sistemas filantrópicos a cargo da Igreja, da família, das instituições de caridade, etc..

Outro tópico da ação focalizada e estigmatizadora do Estado neoliberal é atender somente as demandas sociais da pobreza indigente através de mecanismos anódinos. Talvez tal postura seja bem explicada por Friedman, cuja base intelectual influenciou decisivamente os pragmáticos neoliberais. Para Friedman a ação paternalista do Estado só é indispensável para aqueles que são irresponsáveis, ou seja, para insanos e crianças. Os demais, mesmo os pobres , têm a liberdade para usar seus recursos econômicos e, assim, decidir se querem ou não integrar-se ao mercado, devendo a partir de tal decisão arcar com as conseqüências desta.

d) a tendência à desinstitucionalização da proteção social.

No conflito entre o capital e o trabalho, os mentores do Estado neoliberal trabalham também com a assertiva de que somente indivíduos livres é que podem ter posturas de liberdade. Tal base de raciocínio leva a que se afaste predominantemente um tipo de proteção legal que interfira na vida do mercado.

A tendência à desinstitucionalização da proteção social é observada pelo renitente discurso de invocação da flexibilização das normas trabalhistas. Propõe-se a saída do Estado-regulador das relações do trabalho, de modo que se vislumbra a possibilidade de troca de uma proteção institucional por uma proteção negociada através do contrato coletivo de trabalho.

A flexibilização visa atenuar, ou até mesmo extirpar a proteção que é conferida ao trabalhador, promovendo modificações no tocante ao objeto alterável do contrato de trabalho : o emprego; o salário; a despedida; a jornada.

No tocante ao emprego, há entre os partidários da flexibilização, a intenção manifesta de se admitir , dentre outras medidas, relações atípicas de trabalho, ou seja, relações que ainda estejam à margem da lei ou que, mesmo previstas legalmente, ainda são utilizadas de modo excepcional. Tais medidas são defendidas paradoxalmente como uma forma de combater o desemprego. Dentre as relações atípicas ou flexíveis destacam-se: a admissibilidade do trabalho clandestino (economia informal); a utilização maior do contrato por tempo determinado; a terceirização : o contrato do empregado comum a vários empregadores; a utilização da figura da partilha do emprego ("Job Sharing"); o trabalho à distância (trabalho a domicílio e tele-trabalho) ; utilização da mão-de-obra infantil; a possibilidade de utilização ampla da figura do estágio; a liberdade na fixação do tempo de trabalho; a possibilidade de : trabalho intermitente, trabalho a tempo parcial, horários individualizados ou horários cíclicos, fixados unilateralmente; e a compensação de horários, determinada de modo unilateral, em casos de interrupções acidentais ou de extrapolação da jornada.

Relativamente ao salário as formas mais difundidas de flexibilização manifestam-se através das seguintes hipóteses: a) possibilidade de redução do salário; b) possibilidade de estipulação unilateral da forma de salário, utilizando-se preferencialmente a remuneração variável (salário por comissão, percentagem, tarefa ou peça).

A flexibilização relativa à dispensa tem como normas: a) O fim das limitações do poder de despedir (poder potestativo de dispensar); e b) o alargamento das hipóteses motivadoras da dispensa, ou seja, a tipificação vai além dos aspectos disciplinares, abrangendo também a força maior, as causas econômicas e as causas tecnológicas.
 

8. Conclusão.

Após algumas digressões, que julgamos oportunas, concluímos este trabalho certos de que o fenômeno neoliberal é tão mais complexo quando descobrimos que o seu modelo está em constante devenir, fato que se converte em dificuldade para quem o analisa. Urge constatarmos , ainda, que essa dificuldade é inversamente proporcional ao grau de sistematização teórica do neoliberalismo. Porém, tal quadro não nos inibe de algumas afirmações:

a) o neoliberalismo é um grupo de medidas práticas , cujo referencial de repulsão é o Estado de Bem-Estar ;

b) o elemento de coerção no fenômeno neoliberal , como recurso da qualidade de inovação das formas de apropriação do capital, desempenha um papel institucional sobre as pessoas de modo a forçá-las a incorporar uma conduta cujo efeito é a fixação de práticas compulsivas em relação ao autoritarismo chantageador do mercado. Tal assertiva mostra que inexiste o espontaneísmo harmËnico do mercado;

c) A política econômica do neoliberalismo descaracteriza os trabalhadores como sujeitos de classe ao tempo em que os incluem no amplo mercado na qualidade de consumidores.

d) Inexiste um território econômico separado do campo político, uma vez que o econËmico e o político são interdependentes, de modo que não se pode conceber um conjunto de medidas políticas sem qualquer repercussão econômica, e vice-versa;

e) as estratégias neoliberais demonstram uma ação política focalizada no campo dos bens sociais, ao mesmo tempo em que tentam legitimar-se por um importante aspecto da vida econômica: o controle da inflação.

f) a tendência à desinstitucionalização da proteção social é uma forma de ocultar os efeitos do conflito entre o capital e o trabalho. O discurso de invocação da flexibilização das normas trabalhistas, propondo o fim das garantias legais, comprova que em alguns aspectos o neoliberalismo tenta ressuscitar um passado marcado pela barbárie da sociedade baseada no absolutismo da liberdade contratual. A rigor, foi Jean-Baptiste-Henri Larcodaire quem sintetizou melhor a sociedade contratualista através da seguinte máxima : "Entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, é a liberdade que escraviza, é a lei que liberta".
 

Zéu Palmeira Sobrinho
Juiz do Trabalho da 21ª Região/RN
 
 

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