®
BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Guilherme Luiz Lutz Moreli*
EXCELENTÍSSIMA SENHORA JUÍZA DE DIREITO DA COMARCA DE MODELO
O Ministério Público do Estado de Santa
Catarina, pelos Promotores de Justiça ao final assinados, com fundamento
nos arts. 127 e 129, III, da Constituição da República, bem como nos arts. 42,
parágrafo único; 82, I; e 91 do Código de Defesa do Consumidor e no art. 5º da
Lei nº 7.347/85, propõe AÇÃO CIVIL
PÚBLICA, em defesa dos direitos e interesses dos consumidores, em face de:
COOPERATIVA DE ELETRIFICAÇÃO E DESENVOLVIMENTO RURAL VALE ARAÇÁ - CERAÇÁ, pessoa jurídica
de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 83.086.603/0001-85, domiciliada
na rua Miguel Couto, 245, Saudades/SC.
1. Objetivo da ação
Esta ação civil
pública tem por objetivo obter provimento jurisdicional que condene a requerida
à devolução em dobro das multas cobradas abusivamente de seus consumidores
desde a data da publicação da Lei nº 9.298/96, que limitou a multa moratória em
2% sobre o valor da obrigação.
Tem também por
objetivo vê-la condenada ao pagamento de danos extrapatrimoniais coletivos, em
valor que faça frente à gravidade da lesão e ao desrespeito à ordem jurídica
perpetrado pela requerida.
2. Competência
Dispõe o art. 93
do Código de Defesa do Consumidor ser competente para ações coletivas o juízo
de direito do local do dano, no caso de dano local (inciso I), ou o da capital
do Estado ou o Distrito Federal, quando o dano tiver caráter regional ou
nacional (inciso II).
No caso dos autos,
no entanto, o dano não chega a ser regional, porque afeta apenas quatro
comarcas da região Oeste do Estado de Santa Catarina, totalizando dez cidades.
Para efeitos de analogia, o dano não engloba sequer o conceito de
"regional" utilizado na divisão administrativa do Governo Estadual
[01].
Nessa situação, em
que não há dano meramente local, mas também não há dano regional, ensina a
doutrina que a competência é fixada por prevenção, na comarca afetada em que
ocorrer a primeira citação válida (art. 219 do Código de Processo Civil).
Vale transcrever o
entendimento de Álvaro Luiz Valery Mirra: "Nas hipóteses de degradações
ambientais que, apesar de ultrapassarem os limites territoriais de uma comarca
ou de um Estado Federado, não tenham abrangência estadual ou nacional, a regra
a ser aplicada é a do art. 2º da Lei nº 7.347/85, considerando-se como
competentes os juízes de cada um dos foros cujos territórios se encontram
sujeitos ao dano, com a fixação, em concreto e em definitivo, da competência de
um deles para conhecer e julgar a demanda pela prevenção" [02].
Ada Pelegrini
Grinover tem posicionamento semelhante: "No entanto, não sendo o dano de
âmbito propriamente regional, mas estendendo-se por duas comarcas, tem-se
entendido que a competência concorrente é de qualquer uma delas".
Assim, não havendo
até o momento ação proposta em qualquer das outras comarcas atingidas, não há
óbice ao conhecimento da causa na Comarca de Modelo.
3. Síntese fática
A Cooperativa de
Eletrificação e Desenvolvimento Rural Vale do Araçá – Ceraçá – tem por objetivo
o fornecimento de energia elétrica nas áreas rurais dos municípios de Saudades,
Pinhalzinho, Maravilha, Modelo, Nova Erechim, São Carlos, Cunha Porã, Serra
Alta, Sul Brasil e São Miguel da Boa Vista.
Como prestadora do
serviço de energia elétrica que é, atua normalmente na geração, construção,
manutenção, operação de linhas e distribuição de energia elétrica, mediante
contrato com seus consumidores.
Em 6 de fevereiro
de 2007, no entanto, por provocação do Promotor de Justiça Miguel Luís Gnigler,
que passava férias com familiares em Cunha Porã, percebeu-se que vinha a Ceraçá cobrando indevidamente multa
moratória no percentual de 10% do valor do débito, em afronta à
legislação vigente.
Instada a se
manifestar sobre a ilegalidade pelo Centro de Apoio Operacional do Consumidor,
a Cooperativa informou que em março de 2007 reduziu a multa para 2%,
"tendo em vista adequação ao artigo 52, §1º, do Código de Defesa do
Consumidor".
Evidentemente, não
bastaria apenas se adequar para futuras ocorrências. Os consumidores do serviço
distribuído pela requerida têm direito, conforme disposição expressa do art.
42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor à devolução em dobro de todos os valores cobrados abusivamente
durante todo o período contratual.
De posse dos
dados, instaurou-se na Promotoria de Justiça desta Comarca de Modelo
procedimento investigativo que confirmou que a Cooperativa Ceraçá jamais respeitou o limite fixado pela Lei nº
9.298/96, que deu nova redação ao §1º do art. 52 do Código de Defesa do
Consumidor para limitar a multa moratória ao percentual de 2% sobre o valor do
débito.
Em avaliação
preliminar, estimou-se o valor cobrado a mais nos meses de janeiro a março de
2007 em R$ 5.267,86, o que, considerando hipoteticamente a constância de
inadimplemento e do número de consumidores, permite estimar o valor cobrado a
mais em aproximadamente R$ 210.000,00 [03].
Propôs-se, então,
a assinatura de Compromisso de Ajustamento de Conduta (minuta anexa),
constituindo a Ceraçá na obrigação de devolver em dobro os valores cobrados
indevidamente, em prazo razoável a ser negociado entre o Ministério Público e a
empresa.
A Cooperativa, no
entanto, negou-se a firmar o Compromisso de Ajustamento de Conduta, motivo pelo
qual não resta outra opção à obtenção do direito dos consumidores da
micro-região em que opera a Cooperativa se não a propositura desta ação civil
pública.
4. Direito
4.1. Vulnerabilidade do consumidor
Com a edição da
Lei nº 8.078/90 adotou o direito brasileiro o princípio da vulnerabilidade do consumidor (art.
4º, I), verdadeira "espinha dorsal" [04] do sistema
protetivo e princípio sobre o qual se assenta toda a linha filosófica do
movimento que culminou com a edição do Código de Defesa do Consumidor.
De fato, não há
outra forma de encarar atualmente as relações entre consumidor e fornecedor sem
se atentar para o fato de que o consumidor é a parte mais fraca das relações de
consumo. É, dito de outro modo, a parte que se apresenta frágil e impotente
diante do poder econômico, técnico e até mesmo político do fornecedor.
Pautado por este
princípio é que o Código de Defesa do Consumidor definiu como direitos básicos
do consumidor o direito "à efetiva prevenção
e reparação de danos
patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos" (art. 6º, VI).
E, além da
disposição genérica, para casos especiais, em que além do mero dano patrimonial
houvesse cobrança indevida, sempre atento à singular vulnerabilidade do
consumidor, previu a Lei nº 8.078/90 a obrigação de devolução em dobro do valor
cobrado em excesso, acrescido de correção e juros legais. A regra consta
literalmente no parágrafo único do art. 42 do Código: "O consumidor
cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor
igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros
legais, salvo hipótese de engano justificável".
Na verdade, o art.
42 do Código de Defesa do Consumidor, além de equilibrar as forças do jogo
econômico, tem função dissuasora evidente. Ou o fornecedor acerca-se de todas
as garantias ao cobrar uma dívida de consumidor ou, como é corrente no mundo
todo, será apenado pela devolução do dobro do que recebeu.
3.2. Cobrança indevida
No caso dos autos,
os documentos obtidos pelo Ministério Público comprovam que de fato houve
cobrança excessiva de multa moratória. A própria requerida reconhece este fato,
tanto é que, instada a prestar informações a respeito, de imediato limitou a
multa ao disposto no §1º do art. 52 do Código de Defesa do Consumidor.
Como demonstra
cópia da ata da reunião do Conselho de Administração da Cooperativa Ceraçá, até
julho de 1996 a multa aplicada
era de 20% sobre o valor do débito. Na ocasião, por conta de portaria do
extinto DNAEE (Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, sucedido pela
Aneel), a Cooperativa reduziu a multa moratória para 10%.
No entanto, em 2
de agosto de 1996, já por conta
da estabilização econômica promovida pelo Plano Real, entrou em vigor no Brasil
a Lei nº 9.298/96, que promoveu a alteração do §1º do art. 52 do Código de
Defesa do Consumidor para fixar como limite à multa moratória o percentual de 2%.
A partir desta
data, portanto, deveria a Cooperativa Ceraçá adequar-se à legislação regente e
reduzir a multa ao índice fixado na legislação. Preferiu, ciente das
implicações decorrentes deste fato, arriscar, como é infelizmente comum no
Brasil, e manteve a multa no patamar fixado até os dias de hoje.
Todos os seus
consumidores, assim, foram cobrados em quantias indevidas desde então. Os
cálculos constantes dos autos, realizados pela própria empresa em atendimento a
requisição do Ministério Público, demonstram a gravidade da situação. Multas
que deveriam ser de no máximo R$ 8,15, para se tomar exemplo aleatório,
passaram, pelo comportamento da Cooperativa, a R$ 40,74, como é o caso do
senhor Egon Schwertz. Centenas de outros consumidores encontram-se na mesma
situação.
Mesmo que não
considerasse a Cooperativa aplicável à época o limite de multa imposto pelo
Código de Defesa do Consumidor, ainda assim a cobrança era considerada
excessiva pelos próprios atos normativos aplicáveis ao setor de distribuição de
energia elétrica.
Como determinou a
Portaria nº 438, de 4 de dezembro de
1996, do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica, departamento
federal ao qual estava subordinada a Cooperativa, "a multa por atraso de
pagamento da fatura de energia elétrica de que trata o art. 73 da Portaria nº
222, de 22 de dezembro de 1987, estará limitada ao percentual máximo de 2% para todos os
consumidores de energia elétrica" (cópia anexa).
Veja-se, portanto,
que não só o Código de Defesa do Consumidor previa o limite de 2%, como também
a Portaria nº 438/96/DNAEE.
E – vale recordar
– embora tenha a Ceraçá demonstrado grande atenção às portarias do DNAEE, já
que reduzira de 20% para 10% a multa por força da Portaria nº 210/96, o mesmo
não fez com relação à Portaria nº 438/96, que determinou a redução da multa
para 2%.
O quadro abaixo
demonstra a sucessão dos eventos:
Data |
Ato |
Conteúdo |
13 de junho de
1996 |
Portaria nº
210/DNAEE |
Fixa máximo da multa ao consumidor de energia elétrica em 10% |
11 de julho de
1996 |
Ata nº
273/CERAÇÁ |
Reduz multa aplicada aos consumidores de energia elétrica para 10% |
2 de agosto de
1996 |
Lei nº 9.298/96 |
Altera Código de Defesa do Consumidor e fixa máximo da multa em 2% |
4 de dezembro de
1996 |
Portaria nº
438/DNAEE |
Fixa máximo da multa ao consumidor de energia elétrica em 2% |
6 de março de
2007 |
Ofício não
numerado – Ceraçá |
Informa ter reduzido a 2% o valor da multa ao consumidor de energia elétrica |
3.3. Engano injustificável
A sucessão de atos
normativos aplicáveis à Ceraçá por si só já demonstra o quão injustificável foi
sua conduta. Não só o Código de Defesa do Consumidor, mas também atos
normativos do DNAEE obrigavam-na a limitar a multa moratória em 2%. E isso já
em 1996!
Não se tem
"engano", portanto, mas ato dolosamente contrário à legislação
pertinente praticado deliberadamente pela Cooperativa, tudo voltado única e
exclusivamente para o fim de auferir maior rendimento com a atividade, em
detrimento do consumidor.
É que, como é
evidente, a Cooperativa Ceraçá – e isso demonstram seus atos constitutivos e a
relação de veículos de sua propriedade – é empresa suficientemente organizada,
com setor jurídico e contábil hábeis o suficiente para terem identificado a
irregularidade a tempo.
Amolda-se
analogicamente ao caso dos autos, portanto, o entendimento de Antônio Carlos
Efing, para quem "em se tratando de instituição financeira, detentora de
estrutura contábil e pessoal especializada em cálculos, não se pode admitir que
incorra em ‘engano justificável’ quando cobra valor maior que o devido pelo
consumidor. A regra do CDC quanto ao valor cobrado indevidamente é precisa, não
comportando outra interpretação senão conferir ao consumidor, indevidamente
cobrado (pessoa física ou jurídica), o direito de reaver tal valor, em dobro,
atualizado e acrescido de juros legais, calculado até a data do efetivo
pagamento" [05].
Luiz Antônio
Rizzatto Nunes entende que há ainda outras limitações à justificativa a ser
apresentada pelo fornecedor. A justificativa só será válida: a) se não houve
por parte do consumidor cobrança extrajudicial do valor a repetir; b) se, não
tendo havido cobrança amigável e ao ser citado no processo, o credor deposita
incontinenti o valor cobrado, ainda que no quantum singelo [06].
No caso dos autos,
houve sim tentativa de cobrança extrajudicial. O Ministério Público, como
comprovam os autos, buscou através do instrumento pertinente – a tomada de
compromisso de ajustamento de condutas – a repetição dos valores. No entanto, a
Ceraçá preferiu se negar a aceitar o evidente e, contando com a natural
morosidade do processo judicial, manter-se inerte no pagamento do devido.
Veja-se que a Ceraçá sequer compareceu à audiência em que o Ministério Público
lhe apresentaria a minuta do compromisso de ajustamento de conduta,
demonstrando claramente sua intenção em não cumprir a lei (fl. 75).
De qualquer forma,
como lembra Rizzatto Nunes, "a prova da justificativa para o engano é,
também, por evidência, ônus do credor [fornecedor]" [07].
Outra solução
mesmo não poderia haver. Se o consumidor, dada sua vulnerabilidade, tem a si
deferido como direito básico "a facilitação da defesa de seus direitos,
inclusive com inversão do ônus da prova, a seu favor" (art. 6º, VIII), não
há como negar que também o ônus da prova da justificativa, se houver – o que
não se acredita – é inteiramente do próprio fornecedor.
Vale transcrever,
por fim, precedentes jurisprudenciais que reforçam a validade da fundamentação
até aqui exposta. Os casos demonstram que os tribunais brasileiros, no caso de
cobranças irregulares por concessionárias de serviços públicos de telefonia,
vêm obrigando as empresas à devolução em dobro, sem admitir qualquer
excludente.
No caso dos autos,
com a mesma razão há de se dar idêntico tratamento, já que aqui se tem
concessionária de serviço público que de forma livre, deliberada e consciente
aplicou multa exorbitante a seus consumidores. Lembre-se que a Ceraçá
acompanhava de perto as deliberações do DNAEE, que já em 1996 determinou a
redução do valor da multa.
CONSUMIDOR.
INTERNET BANDA LARGA. AUSÊNCIA DE CONTESTAÇÃO IMPLICA A INCONSTROVÉRSIA DOS
FATOS ALEGADOS PELO AUTOR. SERVIÇO NÃO DISPONIBILIZADO. PAGAMENTO DE TRÊS
COBRANÇAS REALIZADAS. RESTITUIÇÃO EM DOBRO, EX VI DO ART. 42, PARÁGRAFO ÚNICO,
CDC. A alegação da autora no sentido de que pagou três faturas atinentes ao
fornecimento do serviço de ADSL, que nunca foi disponibilizado, tornou-se
incontroversa na medida em que a ré não ofereceu contestação. É devida,
portanto, a restituição dos valores indevidamente cobrados e pagos em dobro, ex
vi do parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor.
RECURSO IMPROVIDO [08].
CONSUMIDOR.
COBRANÇA DE SERVIÇOS NÃO SOLICITADOS DE CONEXÃO DE INTERNET BANDA LARGA E DE
‘CHAMADA EM ESPERA’. INSISTÊNCIA NA COBRANÇA. PERTURBAÇÃO MORAL QUE DECORRE
DIRETAMENTE DA CONDUTA IRREGULAR E ARBITRÁRIA DA EMPRESA DE TELEFONIA. DANO
MORAL CONFIGURADO. QUANTUM INDENIZATÓRIO MANTIDO, POIS EM CONSONÂNCIA COM O
PATAMAR OBSERVADO PELA TURMA RECURSAL EM CASOS ANÁLOGOS. RESTITUIÇÃO EM
DOBRO DO MONTANTE INDEVIDAMENTE PAGO, EX VI DO ARTIGO 42, PARÁGRAFO ÚNICO DO
CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Sentença confirmada por seus próprios
fundamentos. Recurso improvido [09].
APELAÇÃO CIVEL.
NEGOCIOS JURIDICOS BANCARIOS. COBRANÇA. RESTITUIÇÃO. INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. ILEGITIMIDADE PASSIVA. MAJORAÇÃO DE VERBA HONORÁRIA. - Ilegitimidade
passiva. Em regra, tratando-se de cooperativa que tenha intermediado a
negociação, atuando penas como `canal de desconto’ das parcelas na folha de
pagamento, tem este Colegiado o entendimento de que não é ela parte legítima
para responder a demanda. Contudo, necessário se faz, por parte da demandada, a
demonstração de que realmente atuou apenas como intermediária, ônus que não se
desincumbiu satisfatoriamente. - Restituição em dobro. Justificado a
devolução em dobro dos valores descontados indevidamente, por aplicação do
parágrafo único, do art. 42, do Código de Defesa do Consumidor. -
Indenização por danos morais. A simples alegação da ocorrência do dano, não é
suficiente para gerar a obrigação de indenizar. No caso, não restou comprovado
o prejuízo sofrido. - Majoração de honorários. Manutenção dos honorários
advocatícios conforme determinado na sentença. Apelo do demandante parcialmente
provido e apelo da demandada desprovido [10].
APELAÇÃO CÍVEL.
AÇÃO ORDINÁRIA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA. INEXISTÊNCIA DE DÉBITO CUMULADA
COM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. USUÁRIO DE SERVIÇO DE TELEFONIA FIXA.
ILEGALIDADE NA COBRANÇA EXCESSIVA DE DÉBITOS DA CONTA TELEFÔNICA RECONHECIDA.
ÔNUS DA PROVA. Em se tratando de relação de consumo, o ônus da prova incumbe à
prestadora de serviço. E, neste fanal, não tendo a requerida demonstrado a
legalidade dos débitos relativos aos meses de março e maio de 2005, impõe-se a devolução, em dobro, da quantia
correspondente à fatura de março e readequação daquela relativa ao mês de maio
de 2005. INSCRIÇÃO EM ÓRGÃOS DE PROTEÇÃO AO CRÉDITO. Cuidando-se de
exigência reconhecidamente ilegal da Companhia Telefônica, é de ser deferida a
tutela para a imediata exclusão do nome do autor em bancos restritivos de
crédito, sob pena de arcar com o dever de indenizar pelos prejuízos causados.
Multa diária fixada para o caso de descumprimento da determinação. DANO MORAL.
A tutela antecipada para obstaculizar a inserção do nome do autor em bancos
restritivos de crédito não foi deferida, razão pela qual, em tese, não agiu
ilicitamente a companhia telefônica, pois os débitos estavam em aberto e
pendentes de pagamento. Ademais, simples transtornos decorrentes da relação
mantida entre as partes, não ensejam indenização por dano moral, mormente
quando havia dívida de R$ 85,70 a ser adimplida pelo usuário. CANCELAMENTO DOS
SERVIÇOS DE TELEFONIA FIXA. Possibilidade de determinação judicial de
cancelamento dos serviços prestados, diante da resistência da companhia em
atender pedido do usuário. JUROS DE MORA E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Tratando-se
de cobrança indevida, descabe a pretensão da demandada em fazer incidir juros
moratórios sobre parcela dita como incontroversa, mormente quando a própria
demandada não efetua correção dos valores estornados. Os honorários
advocatícios estão fixados em consonância com a sucumbência recíproca, mas
decaimento mínimo do autor. Apelação da demandada desprovida e parcialmente
provido recurso do autor. Unânime [11].
4. Indenização por danos extrapatrimoniais
Não basta, como é
óbvio, a mera devolução em dobro dos valores cobrados, obrigação que na verdade
é pena imposta pelo ordenamento
civil ao fornecedor que extrapola os limites da cobrança.
Na situação
configurada nos autos, é preciso reparar integralmente os danos causados aos
consumidores e, sob este aspecto, vale lembrar que o art. 6º, VI, do Código de
Defesa do Consumidor, garante o direito básico do consumidor de obter
"efetiva prevenção e reparação
de danos patrimoniais e morais,
individuais, coletivos e difusos".
Isso porque,
conforme se viu nos autos, a cobrança ocorreu durante mais de dez anos, dez
anos durante os quais os honestos trabalhadores rurais da região, ainda que à
custa de esforços pessoais, pagaram as multas que lhes foram cobradas, sem
reclamações que tenham chegado ao conhecimento do Ministério Público.
A conduta da
requerida, por isso mesmo, gera o dever de indenizar, desta feita a título
difuso. O dano causado é extrapatrimonial, porque flagrantemente lesionada a confiança [12] do consumidor, que tinha a
expectativa de estar sendo cobrado apenas dentro dos limites legais.
E, assentando-se o
dano extrapatrimonial difuso justamente na agressão a bens e valores jurídicos
que são inerentes a toda a coletividade, de forma indivisível, não há como
negar que conduta como a da ré abala o patrimônio moral da coletividade, pois é
coletivo o sentimento de ofensa e desrespeito que o cidadão e sua família acaba
experimentando com a prática abusiva.
Ao dissertar sobre
o dano moral coletivo, o professor André de Carvalho Ramos assinalou com muita
propriedade: "Devemos considerar que tratamento aos chamados interesses
difusos e coletivos origina-se justamente da importância destes interesses e da
necessidade de uma efetiva tutela jurídica. Ora, tal importância somente
reforça a necessidade de aceitação do dano moral coletivo, já que a dor
psíquica que alicerçou a teoria do dano moral individual acaba cedendo lugar,
no caso de dano moral coletivo, a um sentimento de desapreço e de perda de
valores essenciais que afetam negativamente toda uma coletividade. Imagine-se o
dano moral gerado pela propaganda enganosa ou abusiva, O consumidor potencial
sente-se lesionado e vê aumentar seu sentimento de desconfiança na proteção
legal do consumidor, bem como seu sentimento de cidadania" [13].
O valor da
indenização a ser pleiteada, também por esses motivos, deve levar em conta o
desvalor da conduta, a extensão do dano e o poder aquisitivo da requerida.
Não se pode
conceber tenham lugar condutas como a da ré. Numa sociedade democrática, onde
se espera e se luta pelo aperfeiçoamento dos mecanismos que venham garantir ao
cidadão o pleno exercício dos atributos da cidadania, ludibria o consumidor,
auferindo lucros exorbitantes a partir de práticas nitidamente contrárias à
legalidade. E sempre na esperaça, como se confirmou nestes autos, de que a
resposta a ser dada pelo Judiciário fará valer a pena o risco.
É dentro desse
mesmo contexto que não se pode esconder a grande extensão do dano causado, pois
além de agredir interesses garantidos por lei ao consumidor, o procedimento
denunciado gerou sentimento de descrença e desprestígio da sociedade com
relação aos poderes constituídos.
A jurisprudência
tem reconhecido a possibilidade de condenação do responsável por danos
extrapatrimoniais coletivos:
DANO MORAL
COLETIVO - POSSIBILIDADE - Uma vez configurado que a ré violou direito
transindividual de ordem coletiva, infringindo normas de ordem pública que
regem a saúde, segurança, higiene e meio ambiente do trabalho e do trabalhador,
é devida a indenização por dano moral coletivo, pois tal atitude da ré abala o
sentimento de dignidade, falta de apreço e consideração, tendo reflexos na
coletividade e causando grandes prejuízos à sociedade [14].
Assim, presente o
dano extrapatrimonial, consistente na lesão da confiança depositada pelos
consumidores no anúncio publicitário, e presente o nexo de causalidade entre o
dano e a conduta da requerida, nasce o dever de repará-lo, cabendo indenização
pelos danos causados.
O Ministério
Público, portanto, entende ser devida indenização aos consumidores que, embora
não identificáveis, foram enganados pela publicidade da requerida.
Tal indenização,
como é natural em sede de direitos difusos, deverá reverter ao fundo de
reconstituição de bens lesados (art. 13 da Lei nº 7.347/85). Em Santa Catarina,
o Fundo para Reconstituição dos Bens Lesados foi criado pelo Decreto nº 1.047,
de 10 de dezembro de 1987.
A jurisprudência
tem abonado a tese de que a indenização por danos morais independe da devolução
em dobro do valor cobrado abusivamente, já que as causas são diferentes: na devolução em dobro aplica-se pena e
ocorre parcialmente o ressarcimento do dano material causado; na indenização por danos morais, protege-se
outra esfera de direitos, os direitos extrapatrimoniais, que devem igualmente
ser tutelados.
Os precedentes
abaixo colacionados amoldam-se por analogia ao caso dos autos. Nas situações
ali observadas, empresas de telefonia cobraram indevidamente por serviços não
fornecidos a consumidores, situação evidentemente extremamente próxima à dos
autos.
RELAÇÃO DE
CONSUMO. CONTRATAÇÃO DO SERVIÇO DE INTERNET DE ALTA VELOCIDADE - ADSL. FALHA NO
SERVIÇO. DANOS MORAIS E MATERIAIS. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA AFASTADA.
1. Tendo em vista a violação da fornecedora do serviço ao dever de informação e
a configuração da falha na sua execução, impõe-se o dever de indenizar, forte
do artigo 14 DO CDC. 2. O pagamento por serviço não prestado merece ser
integralmente ressarcido, sob pena de enriquecimento ilícito, o que é vedado no
ordenamento jurídico. Admite-se na hipótese, ainda, a restituição do montante
em dobro, nos termos do artigo 42, parágrafo único, do Código de Defesa do
Consumidor. 3. Danos morais que se aplicam visando ao caráter dúplice do
instituto, qual seja, compensatório, pela desconsideração à pessoa do
consumidor, cobrado por serviço não usufruído, e dissuasória, evitando, assim,
que conduta futura semelhante seja novamente praticada. Verba indenizatória que
merece, todavia, ser minorada, devendo ser proporcional à lesão sofrida sem
representar enriquecimento indevido da parte. Recurso parcialmente provido
[15].
TELEFONIA FIXA.
AÇÃO DE REPETIÇÃO DE INDÉBITO C/C REPARAÇÃO POR DANOS MORAIS. COBRANÇAS
RELATIVAS A SERVIÇOS NÃO CONTRATADOS DE INTERNET BANDA LARGA. 1. Decisão
liminar que fixou multa diária para o caso de descumprimento da obrigação de
não fazer imposta. Demonstrado o efetivo descumprimento da ordem judicial por
parte da empresa, é aplicável a multa. Quantum que deve, todavia, ser reduzido,
evitando desproporção com a obrigação principal e enriquecimento injustificado
da parte autora. 2. Fornecedora que não se desincumbiu do ônus de comprovar a
contratação ou a efetiva utilização dos serviços. Restituição em dobro dos
valores indevidamente cobrados já determinada pelo juízo de origem. Ausência de
irresignação da parte ré. 3. Dano moral caracterizado ante o infortúnio imposto
mensalmente ao consumidor por longo período de tempo, somado ao descaso da ré
frente às reclamações administrativas do cliente e ao descumprimento da
determinação judicial de suspensão das cobranças. Patamar indenizatório fixado
em R$ 2.000,00 [16].
5. Pedidos
Pelo exposto, o Ministério Público do Estado de Santa
Catarina requer:
a) o recebimento e
processamento da presente ação civil pública;
b) a publicação de
edital nos termos do art. 94 do Código de Defesa do Consumidor, determinando-se
à Rádio Nova FM, de Pinhalzinho [17] e à Rádio Modelo AM [18]
que divulguem a propositura desta ação, para possibilitar que os interessados,
querendo, através de advogado intervenham no processo como litisconsortes;
c) a citação da
requerida para, querendo, apresentar a defesa que entender pertinente;
d) a inversão do
ônus da prova, por ocasião do ingresso na fase probatória [19], se
houver, nos termos do art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor;
e) a condenação da
requerida a devolver a cada consumidor dos municípios de Saudades, Pinhalzinho,
Maravilha, Modelo, Nova Erechim, São Carlos, Cunha Porã, Serra Alta, Sul Brasil
e São Miguel da Boa Vista, o dobro dos valores cobrados ilegalmente a título de
multa, fixando-se como data inicial o dia 2 de agosto de 1996;
f) a condenação da
requerida ao pagamento quantia não inferior a R$ 100.000,00 (cem mil reais) a
título de danos extrapatrimoniais difusos, acrescida de juros legais e correção
monetária desde a citação, valor este a ser revertido ao Fundo de Recuperação
de Bens Lesados;
g) a condenação da
requerida em custas, despesas processuais e honorários advocatícios (estes
conforme art. 4º do Decreto Estadual nº 2.666/04, em favor do Fundo de
Recuperação de Bens Lesados do Estado de Santa Catarina).
Dá-se à causa o
valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais).
Modelo, 20 de
junho de 2007
Eduardo Sens dos
Santos
Promotor de
Justiça – MODELO
GUILHERME LUIS
LUTZ MORELI
PROMOTOR DE
JUSTIÇA – PINHALZINHO
Notas
1.
Santa Catarina é dividida em 36 secretarias
regionais de desenvolvimento, conforme informação contida na página
www.sc.gov.br.
2.
Ação civil pública em
defesa do meio ambiente: a questão da competência jurisdicional. Ação Civil Pública. – Lei nº 7.347/85
– 15 anos – Coordenação: Édis Milaré. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2001.
p. 73.
3.
Para a estimativa tomou-se o valor inicialmente
estimado para três meses (R$ 5.267,86) e dividiu-se pelo número de meses para
se ter o valor mensal de R$ 1.755,95. Este último valor foi multiplicado pelo
número de anos em que está em vigor o limite de juros de 2% (dez anos), pelo
número de meses de cada ano (doze).
4.
ALMEIDA, João Batista de. Manual de direito do consumidor. São Paulo : Saraiva, 2003. p.
15.
5.
EFING, Antônio Carlos. Contratos e Procedimentos Bancários à luz do Código de Defesa do
Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 216.
6.
NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor:
direito material. São Paulo : Saraiva, 2000, p. 511.
7.
Idem, p. 511.
8.
Recurso Cível Nº 71001153287, Terceira Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Maria José Schmitt Santanna, Julgado
em 15/05/2007.
9.
Recurso Cível Nº 71001115443, Primeira Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em
12/04/2007.
10.
Apelação Cível Nº 70016040503, Décima Segunda
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Dálvio Leite Dias Teixeira,
Julgado em 15/03/2007.
11.
Apelação Cível Nº 70014224935, Décima Oitava Câmara
Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mario Rocha Lopes Filho, Julgado em
16/03/2006.
12.
A confiança, ou boa-fé objetiva, é princípio da
Política Nacional de Relações de Consumo, conforme prevê o art. 4º, III, in fine, do CDC. Para Luiz Antônio
Rizzatto Nunes, "quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se no
comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim
de garantir respeito à outra. É um princípio que visa garantir a ação sem
abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para
atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes"
(NUNES, Luiz Antônio Rizzatto.
Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo : Saraiva,
2000. p. 108).
13.
Revista de Direito do Consumidor nº 25. Editora
Revista dos Tribunais, p. 82.
14.
TRT 8ª R. - RO 5309/2002 -
1ª T. - Rel. Juiz Luis José de Jesus Ribeiro - j. 17.12.2002.
15.
Recurso Cível Nº 71001122886, Primeira Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Ricardo Torres Hermann, Julgado em
26/04/2007.
16.
Recurso Cível Nº 71001223098, Segunda Turma
Recursal Cível, Turmas Recursais, Relator: Eduardo Kraemer, Julgado em 07/03/2007,
17.
Rádio 103,1 de Pinhalzinho Ltda, rua São Luiz,
1787, CEP 89870-000, Pinhalzinho.
18.
Rua do Comércio, centro, Modelo.
19.
Hugo Nigro Mazzilli entende que o momento adequado para a declaração da
inversão do ônus da prova é o momento da produção da prova, e não o da
sentença, como parte da doutrina tem apregoado, pois é ilógico que somente
quando finda a instrução processual tenham as partes conhecimento da forma como
devem conduzir a produção. MAZZILLI, Hugo de Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 17ª ed. São Paulo :
Saraiva, 2004. p. 164.
* Promotores de Justiça de Santa
Catarina.
Disponível em:
http://jus2.uol.com.br/pecas/texto.asp?id=867
Acesso em: 08 out.
2008.