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O princípio da boa-fé como ponto de equilíbrio nas relações de consumo
Vitor
Vilela Guglinski*
RESUMO
A
massificação do consumo, oriunda das transformações sociais provocadas pela
Revolução Industrial, ao mesmo tempo em que proporcionou à humanidade maior
conforto, acessibilidade e segurança no que se refere aos bens e serviços
colocados no mercado à disposição do consumidor, trouxe também, como
conseqüência, prejuízos àqueles, em decorrência da grande variedade de bens de
consumo e das técnicas de produção utilizadas, oriundas da evolução tecnológica,
facilmente observada ao longo do tempo. Anteriormente, as relações entre
consumidores e fornecedores possuíam um relativo equilíbrio, haja vista o poder
de barganha que se instalava entre estes na realização dos negócios jurídicos,
uma vez que se conheciam. Todavia, guardando as devidas proporções, desde a
revolução industrial, o fornecedor de produtos e serviços foi quem começou a
ganhar força nas relações de consumo, pois é ele quem detém as técnicas de
produção e oferta de seus produtos e serviços. Dessa forma, tendo em vista que
o mercado de consumo começou a crescer em progressão geométrica, enquanto a
ciência jurídica sempre cresceu em progressão aritmética, faz-se necessária a
implementação de medidas que visem equilibrar ou mesmo reequilibrar as relações
entre consumidor e fornecedor.
Recentemente,
há aproximadamente três décadas, a defesa do consumidor começou a ser
exercitada por aqueles que começaram a ser atingidos pelo crescimento da
atividade industrial e dos diversos setores da prestação de serviços, embora
naquela época ainda não existisse qualquer norma positivada que tivesse como
finalidade maior a proteção dos interesses do consumidor. Todavia, há pouco
mais de uma década, a ciência jurídica procurou, através da criação do Código
de Defesa do Consumidor, acompanhar todo esse crescimento a fim de que se
evitasse quaisquer prejuízos a quem viesse a utilizar-se dos bens e serviços
colocados no mercado de consumo. Tal diploma legal trouxe em seu art. 4º, entre
outros princípios, o da boa-fé objetiva, sendo este o mais importante, pois tem
por finalidade garantir a proteção do consumidor enquanto parte
reconhecidamente vulnerável na relação de consumo.
É
cediço que o avanço tecnológico pode ser potencialmente prejudicial ao
consumidor, na medida em que não seja tutelado pelo direito, favorecendo a
prática de inúmeras abusividades, em detrimento de toda a sociedade. Ensina
Fábio Ulhoa Coelho que:
"Em
termos jurídicos, tecnologia é o saber industrial, isto é, aquele tipo de
conhecimento que se pode utilizar na produção de um bem ou comodidade
destinados à comercialização. Somente esta espécie de saber tecnológico tem
valor de mercado, e, por isso, o direito se ocupa em disciplinar os muitos
interesses que gravitam em torno de sua circulação econômica".
Dessa
forma, verifica-se que é de suma importância a intervenção estatal nas relações
de consumo, no sentido de que se mantenha o equilíbrio que lhe é indispensável,
destacando-se a aplicação do princípio da boa-fé como instrumento altamente
eficaz na solução de conflitos envolvendo consumidores e fornecedores, seu
aspecto moral como conduta individual (boa-fé subjetiva), e principalmente seu
aspecto legal como dever de agir dos fornecedores nas relações de consumo
(boa-fé objetiva), notadamente sua importância no Código de Defesa do
Consumidor. Nesse sentido, é possível notar que o Poder Judiciário, o
Executivo, o Ministério Público e os órgãos administrativos vêm adotando
diversas medidas, visando colocar consumidores e fornecedores em situação de
igualdade, com base na aplicação do princípio da boa-fé objetiva, para dirimir
conflitos oriundos das relações de consumo. Para tanto, serão tecidas
considerações históricas acerca do tema, a evolução desse princípio,
demonstrando quais são essas medias e a eficácia de cada uma, além do papel do
consumidor como maior fiscal nas relações de consumo.
INTRODUÇÃO
Inicialmente,
necessária se faz uma análise comportamental da sociedade ao longo dos tempos,
haja vista a inegável existência de um conflito de valores entre a sociedade de
séculos atrás e a moderna.
A
título exemplificativo, antigamente os negócios jurídicos envolvendo contratos
eram discutidos entre as partes contratantes, havia o poder de barganha, de
negociação, ou seja, havia a chamada liberdade de contratar.
Tudo
isso teve origem em 1804 com a criação do Código Napoleônico, lei inspiradora,
inclusive, do Código Civil Brasileiro de 1916. Na época de Napoleão Bonaparte a
liberdade era o principal valor perseguido pela sociedade, dando origem ao
Estado Liberal. Já na sociedade moderna, uma sociedade tipicamente consumista,
com a massificação do consumo tudo se tornou padronizado, visando a atender a
alta demanda pelos bens colocados à disposição do consumidor no mercado.
Conseqüentemente, a realização dos negócios jurídicos também se tornou
padronizada, atualmente destacando-se os contratos de adesão, sendo que na
maioria das vezes o consumidor e o fornecedor sequer se conhecem. Aquele apenas
adere a cláusulas previamentre estipuladas pelo fornecedor, frise-se, apenas a
título exemplificativo, sem qualquer prejuízo à abrangência do presente
trabalho.
Ë
exatamente nesse ponto que a boa-fé objetiva surge, no direito do consumidor,
como princípio equilibrador ou reequilibrador das relações de consumo, tendo em
vista o reconhecimento do consumidor como parte vulnerável na relação jurídica,
sendo, justificando, assim, a aplicação do princípio da boa-fé objetiva em
favor do consumidor.
Na
lição de Plínio Lacerda MARTINS: "A boa-fé é um critério justo para a
manutenção do vínculo obrigacional consagrando o equilíbrio na relação de
consumo." (1)
Com
o avanço tecnológico, que vivemos nos dias de hoje, os diversos ramos sociais
são atingidos. É verdade que muitos setores produtivos precisaram se
reorganizar para acompanhar a veloz marcha tecnológica. Não só a economia fora
abalada com isto, como também a própria vida cotidiana de cada indivíduo.
As
normas que disciplinam a defesa do consumidor, quando de seu descumprimento,
acabam por dar ampla margem a inúmeras práticas abusivas por parte dos
fornecedores de produtos e serviços. Em virtude disso é que o Judiciário, bem
como o Ministério Público e os órgãos administrativos devem promover, por
exemplo, o controle das cláusulas e práticas abusivas nas relações de consumo,
através da aplicação do princípio da boa-fé, uma vez que aquelas são informadas
por este princípio.
Destaque-se
que ainda é extremamente conflituosa a questão do confronto de princípios em
nosso ordenamento jurídico, mesmo que a tendência atual seja a de elaboração de
microssistemas que atendam determinadas situações jurídicas, tais como o
Dec.-lei nº 58/37 (regula a venda de lotes e terrenos a prestação), Dec. nº
7.661/45, (regula as falências), Lei nº 8.245/91 (regula as locações), ou seja,
microssistemas que afastam a incidência do Código Civil, Código Comercial e outros
que encerravam em si princípios que serviam de marco para contratos
estritamente individuais, sendo que, atualmente, não mais se destacam
princípios envolvendo o pacta sunt servanda, mas sim aqueles que
conferem o direito adequado à solução dos conflitos pela sociedade moderna e,
portanto, aqueles que promovam a melhor justiça.
Na
esfera consumerista isso se torna ainda mais evidente, uma vez que o consumo em
massa provoca sensíveis mudanças no comportamento da sociedade, principalmente
através da mídia, que é o maior veículo publicitário existente, muitas vezes
levando o consumidor a adquirir produtos e serviços, nem sempre interessantes
às suas necessidades. A priori, nem sempre é possível se observar a
má-fé de certas empresas quando da veiculação de
anúncios publicitários, acabando o consumidor por experimentar situações
extremamente prejudiciais somente após a conclusão de um contrato ou da
aquisição de um produto. Daí a necessidade da aplicação do princípio da boa-fé
no controle de tais abusividades. Não se quer aqui dizer que os demais
princípios de direito sejam desprestigiados, mas sim que sejam utilizados em
harmonia com aqueles que se mostram mais afinados com a realidade social,
respeitando o equilíbrio indispensável às relações de consumo.
O
objetivo do presente trabalho é, então, demonstrar a importância do princípio
da boa-fé objetiva como fator equilibrador nas relações de consumo, para tanto
traçando considerações históricas acerca desse importante instituto, sua
evolução na legislação ocidental, até sua incorporação pelo direito brasileiro,
onde receberá maior enfoque, destacando-se sua aplicação pelo Poder Público, os
mecanismos utilizados por este para coibir as abusividades nas relações
envolvendo consumidores
e fornecedores, bem como o papel da própria sociedade como ente fiscalizador
das atividades empresariais.
1.
A BOA-FÉ COMO PRINCÍPIO NORTEADOR DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR, EVOLUÇÃO
TECNOLÓGICA E OS IMPACTOS NA SOCIEDADE DE CONSUMO.
1.1.O
CONCEITO DE BOA-FÉ
É
fato inconteste que cada geração encontra novos problemas a solucionar ao longo
da vida, pois novas idéias surgem, criando situações imprevistas, as quais nem
sempre o direito codificado possui soluções, uma vez que, apesar do dinamismo
que lhe é característico, a lei, em seu corpo é estática. Isso já era percebido
desde a Roma antiga, onde foi visto que o direito deveria moldar-se às
necessidades sociais, através das mesmas letras da lei.
Foi
então que se procurou explicar as modificações do pensamento jurídico no corpo
organizado dos códigos. Formulou-se, então, um grande número de princípios
gerais, eternos, destinados a nortear a formação moral do homem, orientando-lhe
as criações jurídicas a fim de que se adequassem à necessidade, ou seja, leis
gerais impostas à obediência.
Todas
as vezes que a lei falha em sua função socializadora, não provendo, assim, as
necessidades sociais, tais princípios são evocados, rejuvenescendo-a,
modificando-lhe a aplicação, permitindo, então, que o direito se faça presente.
Dentre
os princípios elaborados pelo jus romanum, está o da eqüidade, o qual
permite que se pratique a justiça quando a lei se mostrar obscura. Foi sobre a
base desse princípio que se desenvolveu o princípio da boa-fé, que hoje norteia
todas as relações jurídicas, sendo um princípio praticamente universal, e
constante dos mais importantes sistemas legislativos ocidentais.
Todavia,
para os doutrinadores, conceitua-la não é tarefa das mais fáceis, dada sua
subjetividade absoluta, pois diz respeito a elementos eminentemente morais, ou
seja, intrínsecos à pessoa humana, e por isso não sendo passível de prova
direta. De um modo geral, os autores procuram conceitua-la sob dois prismas:
positivo e negativo. Sob o aspecto positivo, a boa-fé se revela no momento em
que o indivíduo age na crença de que procede com lealdade, sinceridade e
convicto da existência do próprio direito. Dessa forma, a convicção é elemento
imprescindível à sua caracterização, pois a dúvida da existência do direito a
exclui, estando, portanto, de má-fé, aquele que duvida de seu direito. Sob o
critério negativo, a boa-fé se resume na falta de consciência do agente, de que
seu ato poderá acarretar prejuízos a outrem, ou seja, a ausência de vontade de
prejudicar, contrapondo-se, assim, à má-fé.
Assim
sendo, de modo positivo a boa-fé traduz a presença de convicção acerca do
direito, e de modo negativo, a ausência do elemento volitivo.
Etimologicamente,
a boa-fé deriva do latim bona fides, que quer dizer: fidelidade, crença,
confiança, sinceridade, convicção interior. É exatamente o contrário da má-fé,
sinônima de malícia, engano, dolo. Enquanto aquela é presunção de validade do
ato jurídico, esta é causa de sua nulidade.
No
direito do consumidor, ora alvo deste trabalho, a boa-fé, todavia, perde seu
caráter subjetivo, e passa a ter caráter objetivo como norma de conduta, o que
veremos mais à frente.
1.2.CONSIDERAÇÕES
HISTÓRICAS
1.2.1
A BOA-FÉ NO DIREITO ROMANO
Considerada
o laboratório jurídico do Ocidente, a Roma Antiga já percebia as transformações
sociais radicais pelas quais a vida passava, o que, conseqüentemente refletia
no direito. Novas questões, então, surgiam, as quais a lei codificada nem
sempre conseguia solucionar. Os romanos então, se depararam com o abismo
existente entre a rigidez dos textos e o dinamismo do direito, uma vez que a
evolução, dado seu caráter contínuo, torna-se fatal para as leis.
A
criação de princípios universais pelos romanos foi, então, a ponte construída
para transpor esse abismo existente entre o direito e a lei positivada, dentre
eles o da boa-fé, como já mencionado anteriormente. Isto porque na
interpretação dos atos jurídicos deveria relevar-se a vontade do autor,
colocando-se a letra da lei em plano secundário.
1.2.2
O CÓDIGO DE HAMURABI
A
responsabilidade objetiva já podia ser sentida em textos antiqüíssimos, como no
Império Babilônico, por exemplo. Visando defender os compradores de bens e
serviços, o Rei Hamurabi impingiu uma forte legislação, contendo regras como a
dos artigos 229 e 233 do Código de Hamurabi, que previam:
"Art. 229 – Se um
pedreiro edificou uma casa para um homem mas não a fortificou e a casa caiu e
matou seu dono, esse pedreiro será morto"
"Art. 233 – Se um
pedreiro construiu uma casa para um homem e não executou o trabalho
adequadamente e o muro ruiu, esse pedreiro fortificará o muro às suas
custas".
Dessa
forma, é possível notar, já em um texto legal antigo, a presença da
responsabilidade objetiva, consagrada pelo Código de Defesa do Consumidor,
através do princípio da boa-fé objetiva, ou seja, a preocupação com a reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos oriundos de projetos,
fabricação, construção, entretanto com o diferencial da pena capital, prevista
no art. 229 daquele texto, mas inexistente em nosso ordenamento jurídico.
1.2.3
A BOA-FÉ NO DIREITO CANÔNICO
No
direito canônico, ao contrário do direito romano, a boa-fé nos negócios
jurídicos significava a ausência de pecado, e permitia o aparecimento da má-fé.
Plínio Lacerda Martins cita o caso do usucapião que, "no Decreto do
período romano clássico, possibilitava requerer a bona fides apenas no
início da posse, para que a mesma facultasse a aquisição por usucapião; já na bona
fides Decretais exigido pelo direito canônico teria de exigir durante todo
o percurso prescricional, constando essa posição no Code Iuris Canonici,
consolidando assim, na linha de valores próprios do direito da Igreja, que a
boa-fé dependeria sempre da consolidação do pecado, traduzindo assim a boa-fé
canônica na ausência de pecado" (2). A boa-fé é, portanto, no
direito canônico, um estado de consciência individual.
1.2.4
A BOA-FÉ NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
O
Código Civil Brasileiro de 1916 não consagrou expressamente o princípio da
boa-fé como cláusula geral, o que, segundo magistério de Caio Mário da Silva
Pereira, foi uma falha imperdoável, tendo em vista tal princípio já haver sido
consagrado em Códigos como o francês, em seu artigo 1.134, e o alemão, em seu
parágrafo 242.
Todavia,
o Novo Código Civil de 2002 finalmente preencheu esta lacuna, aparecendo a
boa-fé dispondo em seu art. 422 in verbis:
Art. 422 – Os contraentes
são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução,
os princípios de probidade e boa-fé
Porém,
apesar de inserida como cláusula geral no Novo Código Civil, assevera o
supracitado jurista que "esqueceu-se o legislador de incluir expressamente
na fórmula do art. 422 os períodos pré e pós-contratual, dentro dos quais o
princípio da boa-fé tem importância fundamental para a criação de deveres
jurídicos para as partes, diante da inexistência nessas fases de prestação a
ser cumprida. Essa omissão não implica negação da aplicação da regra da boa-fé
para essas fases antecedentes e posteriores ao contrato, muito pelo contrário,
já que cabe aqui a interpretação extensiva da norma para abranger também as
situações não expressamente referidas, mas contidas no seu espírito"
(3).
Traços
semelhantes com a norma consumerista podem ser notados ainda no diploma
civilista em seu art. 423 in verbis:
Art. 423 – Quando houver no
contrato de adesão cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a
interpretação mais favorável ao aderente.
É o que prescreve o Código
de Defesa do Consumidor em seu art. 47 in verbis:
Art. 47 – As cláusulas
contratuais serão interpretadas der maneira mais favorável ao consumidor.
Ou
seja, tendo em vista que a maioria esmagadora dos contratos de consumo é de
adesão, é flagrante a semelhança entre o disposto na lei civil vigente e o
Código de Defesa do Consumidor, lembrando apenas que, no direito brasileiro,
este último diploma legal foi pioneiro em adotar o princípio da boa-fé como
cláusula geral, inclusive salvaguardando o contrato em todas as suas fases.
1.3.PANORAMA
DA BOA-FÉ NA LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA
Como
visto anteriormente, a consagração do princípio da boa-fé como cláusula geral
chegou tarde ao direito brasileiro. Tal fenômeno só pôde ser assim observado em
1990, com a edição do Código de Defesa do Consumidor, e mais recentemente com a
chegada do Novo Código Civil. Na legislação estrangeira, a proteção do
consumidor goza de avançada especialização, tendo os países nórdicos como
pioneiros a se concientizarem acerca dos interesses dos consumidores. Em 1971,
foi criada na Suécia o Ombudsman e o Juizado de Consumo, sendo no ano
seguinte seguida pela Noruega, pela Dinamarca em 1974 e pela Finlândia em 1978.
Não
é difícil, entretanto, entender o por quê da legislação estrangeira ter sido a
pioneira na busca de medidas que visavam solucionar os problemas vividos pela
sociedade consumo. Segundo Hélio Gama, "o movimento consumerista
originou-se nas lutas dos grupos sociais contra as discriminações de raça,
sexo, idade e profissões vividas no final do século XIX e no início do século
XX" (4), por ocasião do industrialismo, que provocou sensíveis
transformações na sociedade, alterando o panorama político, econômico, social e
jurídico, oriundas do liberalismo emergente do século XIX. Logicamente, a
inovação tecnológica e o processo de produção em massa provocaram maiores
reflexos na Europa, berço da Revolução Industrial, implicando um
desenvolvimento em larga escala, fazendo com que as legislações dos países não
conseguissem acompanhar as transformações no seio social. Era necessário,
então, que se estabelecesse uma nova ordem jurídica, a fim de que se harmonizassem
as relações de consumo.
Em
1985, a 106a. Sessão Plenária da ONU estabeleceu, através da
Resolução nº 39/248, o princípio da vulnerabilidade do consumidor,
reconhecendo-o como a parte mais fraca na relação de consumo, e tornando-o merecedor
de tutela jurídica específica, exemplo este seguido pela legislação
consumerista brasileira.
Na
Inglaterra, em 1977, criou-se o "Unfair Contract Terms Act",
consistente num sistema de defesa do consumidor que objetivava o reconhecimento
da nulidade das cláusulas abusivas, notadamente aquelas que viessem a excluir a
responsabilidade e riscos do fornecedor, fora dos requisitos de razoabilidade,
sendo que, naquele caso, a razoabilidade possui caráter objetivo, segundo
padrões consagrados.
Na
França, a legislação consumerista é vasta, estando a boa-fé inserida nos
artigos 1.134 e 1.135 do Código Civil Francês (Code Napoleon). Em 1973,
foi editada a "Lei Royer", destinada à proteção do pequeno comércio e
do artesanato, a qual continha normas de regulamentação da publicidade ilícita
e a permissão de exercício da ação civil pelas associações de consumidores.
Criou-se ainda, em 1978, a Lei nº 78-22, conhecida como "Lei Scrivner",
controladora das cláusulas abusivas, e a Lei nº 78-23, que em seu artigo 35
elenca os elementos caracterizadores da abusividade nas relações de consumo. Em
1995, foi editada a lei nº 95-96, que veio a modificar alguns artigos do Código
do Consumo (Code de la Consommation), introduzindo o art. 132-1,
prevendo que, nos contratos concluídos entre profissionais e não profissionais
ou consumidores, são abusivas as cláusulas que criem, em detrimento do não
profissional ou consumidor, um desequilíbrio significante entre os direitos e
obrigações das partes contratantes.
Figura
interessante, recentemente incorporada pelo direito francês é o chamado Superendividamento,
caracterizado pela concessão desordenada de créditos a consumidores já
endividados. Interessante frisar que no direito francês, em se tratando de
superendividamento, existe a boa-fé do devedor, que é presumida. Nos
ensinamentos de Geraldo de Faria Martins da Costa: "A boa-fé deve ser
apreciada não somente no momento da apreciação da demanda, mas também na fase
anterior à abertura do procedimento de tratamento da situação de
superendividamento".
No
direito italiano, ao contrário do que prescreve a lei consumerista brasileira e
a alemã, as cláusulas abusivas não são nulas de pleno direito. Segundo o artigo
1.341 do Código Civil Italiano, as cláusulas abusivas podem ter eficácia, uma
vez que especificamente aprovadas por escrito, sendo que a
"aprovação", nesse sentido, traduz a idéia de consentimento. Vale
aqui, então, transcrever o teor do dispositivo acima citado, que estabelece in
verbis:
Art. 1.341 – "As
condições gerais do contrato previamente estabelecidas por um dos contratantes
serão eficazes em relação ao outro se, no momento da conclusão do contrato,
forem do conhecimento deste último ou se deveriam sê-las de seu conhecimento
segundo o critério de diligência ordinária".
Nota-se,
então, que o princípio da autonomia da vontade, tendo como máxima o pacta
sunt servanda ainda se faz presente em plano primário na lei italiana.
Entretanto, o codex italiano traz a boa-fé expressa em seus artigos
1.175 e 1.337. O primeiro dispositivo prescreve que o devedor e o credor devem
se comportar segundo regras de correção, enquanto o segundo diz que a parte, no
desenvolvimento e na formação do contrato, devem se comportar segundo a boa-fé.
Ou seja, o dever de comportamento segundo as regras de correção e o dever de
comportamento segundo a boa-fé, nada mais traduzem do que a boa-fé objetiva,
pois ambos os dispositivos citados trazem consigo uma norma de comportamento.
A
regra consumerista espanhola se assemelha bastante com o nosso Código de Defesa
do Consumidor, consignando a boa-fé como requisito para o equilíbrio nas
relações de consumo. Tal regra está inserida no artigo 10 da lei General
para la Defesa de los Consumidores y Usuários.
Em
Portugal, a boa-fé está inserida como princípio geral no artigo 16 do
Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de outubro de 1985, proibindo as cláusulas
contratuais contrárias à boa-fé. Semelhantemente à lei consumerista brasileira,
o Código Civil português, em seu artigo 227, procurou resguardar os contratos
em suas fases preliminares e de formação, dispondo que as partes devem proceder
segundo as regras de boa-fé, prevendo, ainda, a reparação por ato ilícito por
aquele que culposamente causar danos à outra parte.
Importante
diploma civilista que trata da boa-fé objetiva é o Código Civil alemão.
Estabelece o § 242 do BGB (Código Civil Alemão) que o devedor está adstrito a
realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos usos e
costumes de tráfego. Destaca a doutrina consumerista brasileira que o inciso IV
do artigo 51 do nosso Código de Defesa do Consumidor foi inspirado no § 9º da
lei das Condições Gerais dos Negócios (AGB-Gesetz) que, além de adotar o
princípio da boa-fé, proibiu o estabelecimento de vantagem exagerada a uma das
partes na relação de consumo. Nelson Nery Júnior frisa que a regra contida no §
242 do BGB não só é válida para as relações consumo, mas para todas as relações
jurídicas. Outro traço interessante no direito alemão diz respeito aos §§ 10 e
1 da AGB-Gesetz, que prevêem as listas negra e cinza, respectivamente. Trata a
primeira das cláusulas contratuais absolutamente ineficazes, e a segunda das
relativamente ineficazes. Destaque-se que tal divisão é de cunho doutrinário.
Além
das legislações acima citadas, o direito do consumidor alemão goza ainda de
legislações específicas, como a VerbrKrg (Lei de crédito ao consumo),
criada em1990 com a finalidade regular os contratos de crédito e os contratos
de agenciamento de crédito, privilegiando a posição do consumidor, que pode,
por exemplo, revogar unilateralmente o contrato. Há também a HausTWG
(Lei sobre a revogação de negócios realizados na porta de casa e negócios
semelhantes) que, inclusive foi alterada pela lei anteriormente mencionada.
Essa lei contém um traço interessante acerca da declaração de vontade,
levando-se em conta o local da declaração.Harriet Christiane Zitscher assinala
que tal declaração "deve ser manifestada no local de trabalho do
consumidor ou na sua residência privada; quando terceiro leva a algum local; ou
nas ruas ou meios de transporte". É importante lembrar que as legislações
acima referidas aplicam-se no campo da proteção contratual do consumidor. Mas
há também outras legislações específicas objetivando a proteção extracontratual
do consumidor. Como exemplo citamos a ProdHaftG de 1989, conhecida como
Lei sobre a responsabilidade por produtos defeituosos e a ProdSG de 1997
(Lei sobre a exigência de segurança de proteção e para a proteção do símbolo
CE). Essa lei foi criada com o objetivo de regulamentar as exigências de
produtos e para que possuam a informação CE, que identifica a origem do produto
como sendo a União Européia.
Nota-se,
então, através do estudo da legislação alemã, que o nosso direito do consumidor
acabou por se inspirar em grande parte naquele sistema, que consagra o direito
à proteção e à informação, o direito à proteção da saúde e segurança, direito à
proteção de seus interesses econômicos, direito ao ressarcimento do dano
sofrido, direito à instrução e formação e o direito à representação (direito de
ser ouvido).
1.4.DISTINÇÃO
ENTRE BOA-FÉ SUBJETIVA E OBJETIVA
Antes
de adentrar efetivamente na boa-fé consagrada pelo direito do consumidor, é de
bom alvitre que sejam tecidos alguns comentários, diferenciando-a da boa-fé
subjetiva.
Foi
visto anteriormente que a boa-fé, em sentido amplo, é o sentimento intrínseco
de crença que o indivíduo traz consigo, ou seja, no plano particular, de atuar
corretamente, convicto de estar agindo conforme o direito. É uma manifestação
estritamente psicológica e, portanto, contrapondo-se à má-fé, caracterizando sua
inexistência como atuação dolosa.
Entretanto,
quando se fala em boa-fé objetiva, também conhecida como boa-fé obrigacional,
não há que se levar em consideração o fator psicológico caracterizador da
boa-fé subjetiva, pois aquela configura-se como um dever de agir conforme
modelos socialmente aceitos, de forma que a relação jurídica seja conduzida de
forma honesta, leal e correta, ou seja, sua feição objetiva impõe um padrão de
conduta aos que se obrigam na relação jurídica. Para Plínio Lacerda Martins,
"a noção de boa-fé objetiva constitui novo princípio a conduta dos
contraentes nos contratos atuais" (5), pois, não só no direito
do consumidor, como em todo o direito obrigacional, são nesses instrumentos de
negociação que se vislumbra com maior facilidade o desequilíbrio entre os
contraentes. Em matéria consumerista, a aplicação desse princípio se torna
ainda mais evidente, porquanto é inegável que a grande maioria das relações
entre consumidores e fornecedores se firma através de contratos, e o Código de
Defesa do Consumidor veio a consagrar o princípio da boa-fé objetiva, até mesmo
antes do Novo Código Civil, como cláusula geral, visando a otimizar o
comportamento contratual dos contraentes, principalmente o do fornecedor de
produtos e serviços, que com o crescente desenvolvimento tecnológico, o
crescimento da demanda do mercado de consumo e a falta de cultura jurídica da
população de um modo geral, a cada dia se torna parte mais forte nesse tipo de
relação, o que, via de conseqüência, resulta no desequilíbrio da relação
jurídica que se forma.
1.5
A BOA-FÉ NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Prescreve
o art. 4º do diploma consumerista in verbis:
Art. 4º - A Política
Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades
dos consumidores, a respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de
sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de
consumo, atendidos os seguintes princípios:
I – reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;
III - harmonização dos
interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da
proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e
tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem
econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e
equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Da
simples leitura do dispositivo legal supratranscrito, percebe-se, logo no
inciso I, que o Código de Defesa do Consumidor consagrou o princípio da
vulnerabilidade, reconhecendo o consumidor como a parte mais frágil na relação
de consumo. Na verdade, isso ocorreu em conformidade com a Resolução da ONU
39/248 de 1985, que estabeleceu em seu art. 1º que o consumidor é a parte
mais fraca, denotando, então, tal reconhecimento em âmbito mundial. A
explicação para tanto se verifica no fato de que o consumidor é aquele que
acaba por submeter-se ao poder de controle dos titulares dos bens de produção,
ou seja, dos empresários , pois não tem, aquele, os
conhecimentos técnicos necessários a elucidar quaisquer questões que envolvam o
produto adquirido ou o serviço prestado, sejam elas referentes à produção,
vícios, oferta, modo de execução do serviço etc., tendo em vista a
especificidade que lhes é inerente. O que se objetivou com o reconhecimento da
vulnerabilidade do consumidor foi, antes de qualquer coisa, a facilitação de
sua defesa.
No
tocante ao inciso III, nota-se que a preocupação primária do legislador foi a
de harmonizar os interesses de consumidores e fornecedores, isso porque a
harmonia e o equilíbrio são fatores indispensáveis para que haja a tão esperada
justiça. Não há como negar que o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor
mostra-se altamente protecionista, se comparado à legislação consumerista
francesa, por exemplo, que, aliás, lá possui a denominação de Código do Consumo
(Code de la Consomation), pois tutela não somente os interesses dos
consumidores, como também os interesses dos fornecedores. Da mesma forma, pode
se notar que o legislador pátrio não se preocupou tão somente com os interesses
dos consumidores, mas sim de todos os fatores que propiciam o desenvolvimento
do mercado de consumo. Tal conclusão é no mínimo lógica, uma vez que, para que
haja desenvolvimento econômico e tecnológico, é preciso que haja quem consuma,
ou seja, quem diga se os produtos e serviços colocados no mercado de consumo
estejam atendendo a demanda de forma satisfativa, ou seja, a crítica do
consumidor aos produtos e serviços acaba por obrigar as empresas a investirem
em novas técnicas de produção, técnicas de marketing , merchandising etc..
Todavia,
como já foi visto anteriormente, a estática da lei codificada nem sempre
permite que a justiça seja sentida. E é essa mentalidade que o nosso Código de
Defesa do Consumidor procurou incorporar, pois a experiência pós-Revolução
Industrial mostra que as transformações sociais se tornaram tão grandes e
seqüenciais que o Estado, em seu labor jurídico, acaba por quedar-se diante das
mesmas, pois as demais ciências, que não a jurídica, pelo menos em sua
devastadora maioria são despidas da burocracia, tão característica do direito.
Por
isso é que a boa-fé objetiva veio, na lei consumerista brasileira, como
cláusula geral, regra padrão de conduta, um princípio ao qual se pode
socorrer na falta da lei, porquanto é ele maior que a norma, é um princípio, um
mandamento nuclear, cujo respectivo desrespeito colocará todo um sistema em
xeque, posto que lhe é o norteador.
Como
já dito anteriormente, nos contratos é que se torna ainda mais evidente a
aplicação desse princípio, pois a cláusula geral de boa-fé foi adotada pelo
Código do Consumidor, implicitamente, devendo reputar-se inserida e existente
em todas as relações jurídicas de consumo, mesmo que não inserida de forma
expressa no contrato. Nesse sentido, vale aqui citar o art. 51, inciso IV do
diploma legal acima referido, que diz in verbis:
Art. 51 – São nulas de pleno
direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de
produtos e serviços que:
IV – estabeleçam obrigações
consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam imcompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
Segundo
os autores do anteprojeto do código, a verificação da presença de boa-fé na
conclusão do negócio jurídico cabe ao magistrado, no intuito de constatar se
determinada cláusula contratual é ou não válida perante o dispositivo supra
transcrito. Já no que diz respeito à eqüidade, esta constitui regra de
julgamento apenas nos casos prescritos em lei, consoante prescrição do art. 127
do Código de Processo Civil. Sendo assim, nesses casos o juiz não julgará com
base na eqüidade, mas tão somente observará o que está de acordo com a eqüidade
e a boa-fé.
Traço
interessante encontrado no Código de Defesa do Consumidor brasileiro,
intimamente ligado ao princípio aqui estudado, diz respeito ao direito à
informação previsto no artigo 6º, III do diploma legal acima citado. Nesse
sentido, ensina Tereza Negreiros que "o mais típico dever acessório
derivado do princípio da boa-fé é o dever de informar". Na verdade isso se
verifica porque em uma relação de consumo não só a obrigação principal é objeto
de tutela, mas sim o interesse global, ou seja, ao adquirir um produto ou
serviço o consumidor tem o direito de acesso a todas as informações acerca do
que está adquirindo.
2.
AS PRINCIPAIS FORMAS DE CONTROLE DAS ABUSIVIDADES
2.1
O PAPEL DO JUDICIÁRIO
Atualmente,
quando se fala em Direito das Obrigações, a figura da função social do contrato
vem sendo cada vez mais prestigiada. A liberdade de contratar foi protegida,
sendo então, os contraentes, submetidos aos princípios da probidade e da
boa-fé. Com a edição do Novo Código Civil, dois novos institutos foram
consagrados, quais sejam, o estado de perigo e a lesão. Relativamente a esta
última figura, vale lembrar que já havia sido incorporada ao direito pátrio
pelo Código de Defesa do Consumidor, objetivando a defesa dos economicamente
mais fracos.
Como
visto anteriormente, a boa-fé serve como regra de julgamento pelo magistrado
quando da apreciação de questões, as quais a lei nem sempre prevê. Cabe
destacar que, conforme constatado na pesquisa realizada junto à doutrina e
jurisprudência, são três as funções da boa-fé, quais sejam, interpretativa, de
integração e de controle.
No
que se refere à função interpretativa da boa-fé, esta se observa quando por
exemplo, um contrato de adesão contenha em si cláusula obscura e duvidosa, o
que permite ao juiz afastar-se de qualquer outra interpretação, que não aquela
em favor do contraente aderente. O artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor
é um exemplo de norma que prevê essa função, ao determinar que as cláusulas
contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor.
As
funções integradora e controladora da boa-fé nada mais refletem do que a busca
do equilíbrio entre os partícipes da relação de consumo. Decidiu o STJ em
Recurso Especial que:
"Os princípios
fundamentais que regem os contratos deslocaram seu eixo do dogma da autonomia e
do seu corolário da obrigatoriedade, para considerar que a eficácia dos
contratos decorre da lei, a qual sanciona porque são úteis, com a condição de
serem justos. O art. 53 do CDC veio apenas expressar um enunciado que já estava
presente no ordenamento e era aplicado sempre que necessário para restabelecer
o equilíbrio entre as partes, afastar a vigência de cláusulas resultantes do
arbítrio de uma, impor o respeito ao princípio da boa-fé e fazer cumprir a
solidariedade social" (6).
Judith
Martins Costa, em sua obra "Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil
Brasileiro" destaca que no Brasil, mesmo tendo sido incorporada ao direito
legislado em 1990, através da edição do Código de Defesa do Consumidor, há
quinze anos os tribunais brasileiros vêm utilizando o princípio da boa-fé
objetiva como fonte de específicos deveres de conduta e como limite ao
exercício de direitos. Assinala a autora que dos Tribunais brasileiros, o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul é o que guarda o maior número de
decisões cujo teor aprecia o princípio da boa-fé como regra de conduta,
demonstrando, segundo suas palavras, uma "modelagem brasileira" da
boa-fé objetiva, de cunho fortemente jurisprudencial. Muitos autores devem tal
transformação na mentalidade jurídica brasileira à obra de Clóvis do Couto e
Silva, autor da obra "O princípio da boa-fé no direito brasileiro e português"
(7) que, inclusive, compartilha da opinião de Caio Mário da Silva Pereira
no que se refere à falha do legislador e da doutrina brasileira ao não dar à
boa-fé a devida importância no campo do direito obrigacional.
Jurisprudência
interessante firmada pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul diz respeito
à Apelação Cível nº 598225720, julgada pela 17a. Câmara Cível em
1999 (8), a qual decidiu acerca do comportamento de cliente
correntista de banco que alegou inexistência de débito aos realizar sucessivos
saques. Asseverou o Relator Demétrio Xavier Lopes Neto, que tal expediente veio
a ferir a boa fé, quebrando-se, assim, o dever de lealdade do cliente em
relação à instituição financeira. Vislumbra-se aqui um caso não muito freqüente
de se observar, onde o Poder Judiciário apreciou o princípio da boa-fé objetiva
contra o consumidor. Segundo Judith Martins Costa, tal decisão foi prolatada
mediante a verificação da existência da função de "otimização"
(9) do comportamento contratual, decorrente do destaque que a função
social do contrato vem ganhando atualmente. Em observância ao dever de
cooperação que as partes devem guardar, aquele mesmo Tribunal decidiu que age
com deslealdade o advogado que recomenda providência judicial onerosa para o
cliente e benéfica a ele, estipulando-a no contrato de honorários, caso este
que levou à nulidade da cláusula (10).
Em
instância superior, decidiu o STJ que o estabelecimento bancário que coloca
área de estacionamento à disposição do cliente, assume também o dever de
proteção do bem ali guardado, oriundo da boa-fé objetiva (11).
Percebe-se, então que, ao apreciar a lide o julgador levou em conta não só os
interesses decorrentes do contrato bancário, mas sim a totalidade dos
interesses envolvidos. Nesse sentido, assevera Flávio Alves Martins que além do
dever de prestação há também o dever de conduta, sendo que:
"(...) aqueles são
destinados a preparar o cumprimento ou assegurar a perfeita execução da
prestação; enquanto estes, também chamados laterais, correlatos ou acessórios,
são os que, não interessando diretamente à prestação principal, são importantes
ao correto processamento da obrigação" (12).
Essa
opinião é compartilhada por Tereza Negreiros, como já visto anteriormente no
que se refere às prestações acessórias. Exemplo disso pode ser encontrado na
Apelação Cível nº 589071711 do TJRGS. Versa o caso sobre furto de veículo em
estacionamento de um shopping center, o qual acabou por ser condenado ao
pagamento de indenização pelo ocorrido. Em 1a. instância, decidiu-se
pela improcedência do pedido, ao argumento de que a gratuidade do
estacionamento constitui em um fator impeditivo da responsabilidade contratual.
Todavia, entendeu aquele Egrégio Tribunal que o ato do consumidor aceitar a
oferta e deixar seu veículo estacionado no parque, por si só acaba gerando a
relação obrigacional, porquanto o bem acaba ficando sob a guarda do esquema de
segurança disponibilizado pelo estabelecimento, também decorrente do contrato
social como elemento necessário e quase sempre imprescindível para a prática
dos atos de mercancia em locais como o shopping que, apesar de não exigir
pagamento imediato pelo estacionamento, acaba por embuti-lo no preço dos bens e
serviços por ele prestados.
Afirma,
ainda, o autor, que nos últimos anos o Código de Defesa do Consumidor foi a
fonte mais recorrida pelos juízes quando da aplicação do princípio da boa-fé.
Certamente isso se deve ao fato do CDC haver sido o primeiro diploma legal a
consignar a boa-fé objetiva de forma expressa em nosso ordenamento jurídico.
2.2
A FUNÇÃO DO PARQUET
Para alguns autores, o
controle das abusividades nas relações de consumo somente pode ser exercido
pelo Judiciário, à exemplo da Alemanha. Há países onde tal controle é misto,
como a Suécia, e outros como a França, que adotou o controle puramente
administrativo pela autoridade competente.
Todavia,
a realidade brasileira mostra que o Ministério Público vem adotando o inquérito
civil como forma de controle das cláusulas contratuais abusiva. Mesmo com o
veto do § 3º (13) do artigo 51 e do § 5º (14) do artigo
54, ambos do Código de Defesa do Consumidor, que previam a intervenção do
Ministério Público como agente controlador das cláusulas contratuais abusivas,
Newton de Lucca esclarece, citando palestra proferida por Nelson Nery Júnior,
que o Ministério Público do Estado de São Paulo já exercia o controle
administrativo dessas cláusulas através da Lei nº 7.347/85 (Lei da Ação Civil
Pública), demonstrando que, na prática, tal veto presidencial não traria
maiores conseqüências. Aliás, se for feita uma análise detalhada do § 5º do
artigo 54 do codex citado, vislumbrar-se-á que, de fato, seria inviável
que todos os contratos de adesão fossem submetidos ao crivo do Ministério
Público, tornando-o demasiadamente sobrecarregado, em detrimento de outras
prerrogativas ministeriais.
Assinala
Plínio Lacerda Martins que o Ministério Público continua exercendo o controle
das cláusulas abusivas, tendo como instrumento o inquérito civil, expressamente
previsto no artigo 90 do diploma consumerista, sendo seu procedimento regulado
pelo artigo 8º, § 1º da Lei nº 7.347/85. Nesse procedimento, o Ministério
Público pode arregimentar documentos, informações, proceder à oitiva de
testemunhas e interessados, proceder à realização de perícias e exames, tudo
objetivando a formação de um juízo acerca da existência ou não de cláusula
abusiva. E segue o autor, dizendo tratar-se de procedimento inclusive passível
de composição extrajudicial, tornando assim efetivo o controle administrativo,
sem que se necessite da apreciação do judiciário. Afirma o mesmo autor,
mencionando a crítica de Nelson Nery Júnior acerca do veto supracitado, que
apenas o "caráter geral da decisão" do órgão ministerial é que ficou
prejudicado pelo veto.
No
que diz respeito ao controle das referidas cláusulas, este pode ser exercido de
forma abstrata e concreta. A primeira forma se verifica quando não existe ainda
uma violação do direito concreto do consumidor, ou seja, este não sofreu ainda
nenhum dano. Entretanto, pode o Ministério Público receber reclamação a fim de
verificar a existência de cláusulas abusivas. Nesse caso, qualquer interessado,
ou até mesmo o órgão ministerial, por iniciativa própria. No segundo caso, há
efetivamente uma violação do direito do consumidor. Nesse caso, o consumidor
prejudicado encaminhará representação ao órgão, a qual se limitará a apreciar o
fato concreto. Ou seja, no primeiro caso verifica-se a existência de cláusulas
gerais que ainda receberão a adesão do consumidor, e no segundo, a existência
de uma situação já concretizada, oriundo de uma relação de consumo específica.
Nesse passo, é importante ressaltar que o Parquet não só defenderá
direitos que, em tese, poder-se-iam classificar em individuais, mas acima de
qualquer coisa o interesse social, conforme previsto no artigo 1º da lei
consumerista.
Interessante
frisar que a legitimidade do Ministério Público para propor a defesa do
consumidor em juízo decorre de previsão Constitucional (art. 129, IX), e não
restam dúvidas acerca da importância do controle promovido por este importante
órgão, uma vez que, assim procedendo, nada menos estará fazendo do que
cumprindo seu papel de fiscal da lei.
2.3
OUTRAS FORMAS DE CONTROLE
Além
das formas de controle das cláusulas abusivas acima referenciadas, há de se
destacar a importante atuação dos órgãos administrativos de proteção e defesa
do consumidor e de diversas associações criadas para esse fim.
No
âmbito da administração pública os PROCONs se fazem presentes em muitos
municípios dos Estados da Federação. Dentre as atribuições conferidas a
estes órgãos estão as de atendimento ao público, fiscalização das atividades
empresariais, instauração de processos administrativos, multas, dentre outras.
O artigo 33 do Decreto nº 2.181/97, por exemplo, prevê o processo
administrativo como forma de apurar as práticas que atentem contra as normas de
proteção e defesa do consumidor. É bem verdade que em municípios de menor porte
a atuação dos PROCONs nem sempre apresenta reflexos de destaque, como em
cidades de maior porte. Entretanto, não é por isso que sua importância seja
menor, porquanto em muitos casos a composição extrajudicial pode ser verificada,
a exemplo do Ministério Público, exteriorizando-se, então, o controle
administrativo, não só das cláusulas abusivas, como também das práticas
abusivas, estas nem sempre dependentes da existência de um contrato para que
sejam verificadas. Recentemente, o Departamento Nacional de Defesa do
Consumidor (DPDC), da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça
vem promovendo programas que incentivam a criação de PROCONs nos municípios.
Aliás, o DPDC é outro importante mecanismo de controle, cujas atribuições estão
elencadas no artigo 106 e incisos do Código de Defesa do Consumidor. Prevê,
ainda, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC) a criação de órgãos e
instituições aptas a promover a defesa do consumidor, podendo aqui ser citadas
as Associações de Defesa do Consumidor, Associações de Donas de Casa, que
refletem nada menos do que o próprio consumidor como fiscal de seus direitos.
Além
do controle administrativo das cláusulas e praticas abusivas, há de se destacar
o controle através de normas incriminadoras que prevêem o comportamento dos
fornecedores, passível de apreciação no âmbito penal, uma vez que as sanções
administrativas e as indenizações civis se mostram insuficientes diante da
gravidade desses comportamentos. A previsão penal para os crimes envolvendo
relações de consumo está expressamente prevista no artigo 61 usque 80 do
CDC. Nesse sentido, afirma Fábio Ulhoa Coelho em seu "Manual de Direito
Comercial":
"Para assegurar a
proteção ao consumidor, a lei tipifica como crime a inobservância de quase
todos os deveres impostos aos empresários . Assim, desde a omissão
de informações sobre a periculosidade do produto até a promoção de publicidade
enganosa ou abusiva, define o CDC uma série de infrações penais,
responsabilizando qualquer pessoa que concorrer para a prática criminosa, bem
como o representante legal da sociedade empresária (administrador, gerente ou
diretor) que promover, permitir ou aprovar o fornecimento, oferta, exposição à
venda ou depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços em condições
vedadas pela lei (CDC, arts. 61 a 80)".
Ainda
no que diz respeito aos mecanismos de controle das abusividades, verifica-se em
nosso ordenamento jurídico a presença de legislações específicas, reflexo do
intervencionismo estatal no que se refere a conter abusos praticados nos
contratos de adesão, em detrimento do consumidor. A título ilustrativo, podemos
citar, além do disposto no artigo 51 do CODECON, a edição, pelo Governo
Federal, da Lei nº 9.656/98, que objetivou a regulamentação dos contratos de
planos de saúde, haja visto o número elevado de reclamações nos PROCONs.
3.
EDUCAÇÃO PARA O CONSUMO
Como
já explanado anteriormente, no início deste trabalho, é notório o crescimento
acentuado do consumo na sociedade moderna. Mesmo que não percebamos, acabamos
por praticar inúmeras relações de consumo ao longo de cada dia de nossas vidas,
desde a manhã, quando nos dirigimos ao banheiro para praticar hábitos de
higiene, utilizando a água, a escova e a pasta de dentes, o papel higiênico, a
toalha etc., até à noite, quando encostamos a cabeça no travesseiro, deitamos
no colchão e, por muitas vezes, ligamos a televisão, que nos bombardeia com
propagandas das mais variadas. É tão acentuada a orgia consumista, que hoje em
dia até canais de vendas, que ficam no ar vinte e quatro horas por dia, vêm se
multiplicando, principalmente nos canais por assinatura, herança dos Estados
Unidos, maior mercado de consumo do mundo.
Geraldo
de Faria Martins da Costa chama a atenção para a chamada "embriaguez
(15) do consumidor, causada pela incitação publicitária, que o torna
pronto para comprar e a tudo comprar, e continua, afirmando que:
"Iludido
pela publicidade matreira, o consumidor é psicologicamente condicionado pela
idéia "por que não eu?" Ou pelos refrãos "você pode
comprar", "compre tudo, imediatamente tudo" Pagar parcelado
tornou-se um hábito, ou até uma boa forma de viver. Os estudiosos vêem nessa
ideologia uma questão de sobrevivência do capitalismo que não seria possível
sem a criação no consumidor de uma série de necessidades relativas a um desejo
desenfreado de conforto e novas comodidades".
O
mesmo autor ainda afirma que, segundo pesquisas, no Brasil os consumidores de
poder aquisitivo mais limitado são os que mais consomem produtos de alta
tecnologia e qualidade, como forma de alimentarem sua auto-estima. Via de
conseqüência, produtos de primeira necessidade acabam por serem substituídos
por eletroeletrônicos, vestuário caro etc., sendo que tal expediente exacerbado
de consumo acaba por comprometer sobremaneira a renda desses consumidores.
O
5º Congresso Brasileiro de Defesa do Consumidor trouxe em seu Painel 8 algumas
conclusões acerca do direito básico à educação para o consumo. Destacou-se em
primeiro lugar a importância da escola como meio ideal para a informação e
formação do consumidor, a fim de que este possa desempenhar seu papel de forma
consciente, crítica e participativa. O artigo 6º, II do CODECON prevê
expressamente a educação do consumidor, asseverando os autores do anteprojeto
do código que a educação ali tratada deve ser encarada sob dois aspectos. O
primeiro deles diz respeito à educação formal, que é exatamente aquela
ministrada no primeiro grau das escolas públicas e privadas, abordando o tema
em disciplinas como a educação moral e cívica (aspectos legais e
institucionais), ciências (aspectos técnicos) etc.. O segundo aspecto diz
respeito à responsabilidade dos próprios fornecedores, levando-se em conta
aspectos éticos que envolvam a informação do consumidor em relação às
características dos produtos e serviços colocados no mercado de consumo,
caracterizando, assim, um elo permanente entre fornecedores e consumidores.
Aliás, esse também foi um dos pontos tratados no congresso acima referido,
sendo, ali, sustentado que as empresas devem assumir e implementar
tarefas específicas de educação do consumidor, relacionada a asuntos dos seus
negócios.
Há
de se destacar, também, o importante papel desempenhado pelos órgãos públicos
de proteção e defesa do consumidor que, com a edição de cartilhas, realização
de debates, pesquisas de mercado, procuram disponibilizar ao público o máximo
de informações possível no tocante aos seus direitos.
É
de bom alvitre assinalar que todo esse trabalho conjunto de educação para o
consumo não visa apenas alertar os consumidores em relação a eventuais perigos
representados à sua pessoa, envolvem também medidas cujo objetivo precípuo é o
de garantir a liberdade de escolha do consumidor, o que, por fim, fará com que
se alcance a igualdade de contratação, conforme enfatizam os autores do
anteprojeto. Evita-se, assim, por exemplo, que o consumidor seja posteriormente
surpreendido com cláusulas contratuais abusivas.
Mencionou-se
anteriormente a respeito da harmonização entre os interesses das partes
envolvidas na relação de consumo e o desenvolvimento econômico e tecnológico,
previstos no artigo 4º, III da lei consumerista pátria. Nesse sentido, o 5º
Congresso Brasileiro de Defesa do Consumidor aprovou, por maioria, o programa
do INMETRO. Tem por objetivo tal programa analisar produtos, promovendo,
posteriormente a divulgação dos respectivos resultados. Isso contribui não só
para a orientação do consumidor para adequadas decisões de compra, tornando-o
parte efetiva do processo de melhora da qualidade de produtos e serviços, mas
também fornece subsídios para a indústria nacional melhorar continuamente a
qualidade e equalizar a concorrência, refletindo, portanto, a harmonização
daqueles interesses tratados no dispositivo legal supracitado.
Atualmente,
a rede de lanchonetes Mac Donalds vem promovendo um tipo de marketing
interessante. Trata-se de incentivar seu público alvo a praticar exercícios
físicos e adotar hábitos alimentares mais saudáveis. Pode parecer um pouco
estranho, mas, na verdade, isso nada mais é do que um exemplo de educação para
o consumo, pois, tendo em vista o alto grau de nocividade que os alimentos por
ela comercializados traz ao organismo humano, a empresa promove esse tipo de
incentivo a fim de que seus consumidores continuem consumindo seus produtos,
porém de forma mais responsável para com a saúde (16). Ao que
parece, a adoção desse tipo de propaganda vem dando certo, pois outras redes de
fast food espalhadas pelo mundo, a exemplo da americana, estão adotando
a mesma medida, uma vez que se observou o aumento das vendas do tão famoso trio
(hambúrguer, refrigerante e batata frita). Verifica-se aí, um típico caso raro
de demonstração de boa-fé por parte dessas empresas, ou seja, a preocupação com
a saúde do consumidor, diante da ciência dos malefícios trazidos por uma má
alimentação,
A
atuação da imprensa é também merecedora de destaque no que se refere à educação
para o consumo. A todo o momento são veiculados nos meios de comunicação
entrevistas com economistas, empresários, juristas etc., as quais procuram
orientar o consumidor da maneira mais objetiva possível para que exerçam seus
direitos perante os fornecedores. Todavia, em que pesem os esforços
empreendidos nesse sentido, o que se verifica como fato notório é que o
consumidor brasileiro ainda está aquém do ideal de consumo almejado pelos
especialistas. Isso talvez seja reflexo da parca cultura jurídica do nosso
povo, ou talvez pela necessidade desenfreada de consumir, como salientou
Geraldo de Faria Martins da Costa, pois não se pode aqui deixar de observar que
muitos são os casos onde, mesmo informado, o consumidor brasileiro muitas vezes
acaba por buscar, seja na justiça, seja através dos órgãos públicos, direitos
que na verdade não possuem, às vezes porque não leram o contrato no momento da
contratação, ou não telefonaram pro serviço de atendimento ao consumidor (SAC),
disponibilizado pelas empresas, a fim de buscarem maiores informações sobre
determinado produto ou serviço etc..
Dessa
forma, demonstrada está a importância da educação para o consumo como forma de
conter as abusividades praticadas pelos fornecedores, sendo este um trabalho
que deve ser cada vez mais empreendido, sendo, acima de tudo, responsabilidade
do Estado fornecer subsídios para que sejam viabilizados ainda mais programas
no sentido de orientação do consumidor.
CONCLUSÃO
Ao
longo deste trabalho, procurou-se discorrer acerca do princípio da boa-fé como
forma de equilibrar as relações de consumo, uma vez que o equilíbrio é fator
indispensável à correta execução das obrigações contraídas entre consumidores e
fornecedores.
Restou
verificado que já na Roma Antiga percebeu-se que a sociedade sofre constantes
transformações, as quais a lei codificada nem sempre traz a tutela adequada
para dirimir conflitos ocasionados pelas transformações sociais, o que levou os
romanos a elaborarem princípios universais, dentre eles o da boa-fé, capaz de
orientar o pensamento jurídico através dos tempos, sendo notados seus traços em
legislações antiqüíssimas, como o Código de Hamurabi, denotando-se, já naquela
época, a necessidade de tutela dos interesses daqueles vulneráveis às práticas
comerciais.
E
não foi diferente, uma vez que o estudo mostrou que o princípio da boa-fé foi
adotado como cláusula geral pelas mais importantes legislações ocidentais,
algumas, inclusive, serviram de modelo à legislação consumerista brasileira,
com destaque para o BGB e a AGBG da Alemanha. Todavia, foi visto que se
necessitou dar à boa-fé um caráter objetivo, alheio ao elemento psicológico
humano, de forma que as partes, numa relação jurídica, adotassem um
comportamento afinado com padrões socialmente aceitos.
O
Código de Defesa do Consumidor brasileiro foi o primeiro diploma legal, em
nosso país, a adotar a boa-fé como cláusula geral, até mesmo antes do Código
Civil, o que, para a maioria dos juristas foi uma falha imperdoável. Mesmo
assim, a chegada desse princípio ao nosso ordenamento jurídico foi tardia em
termos jurídicos, somente em 1990, vez que há muito já constava de outras
legislações. Traz, ainda, o código, o elenco das cláusulas contratuais
contrárias à boa-fé, sendo ali elencadas de forma taxativa, e conferindo às
mesmas nulidade absoluta.
Como
forma de controle das abusividades, foi visto que o princípio da boa-fé
objetiva afigura-se como regra de julgamento a ser utilizada pelo magistrado na
defesa do consumidor em juízo, permitindo ao mesmo a formação de um juízo de
valor no que se refere às cláusulas contratuais abusivas, inclusive
declarando-lhes a nulidade, conforme previsto na lei consumerista, cabendo,
aqui, frisar que, mesmo antes do advento do Código de Defesa do Consumidor,
esse princípio já vinha sendo utilizado pela jurisprudência pátria como forma
de equalizar as relações de consumo, certamente devido à flexibilização que os
contratos vêm recebendo, oriunda da recente consagração da teoria da lesão.
Ainda nesse passo, chega-se a um consenso de que o controle judicial é ainda o
mais eficaz, porquanto na solução de conflitos colocados a seu apreço opera-se
a coisa julgada.
Observou-se,
também, as várias formas de controle administrativo das abusividades, com
destaque para a atuação do Ministério Público que, mesmo com o veto
presidencial atinente aos §§ 3º e 5º dos artigos 51 e 54, respectivamente, do
diploma consumerista, continuou atuando em favor do consumidor, para tanto
valendo-se da Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública), permitindo que o órgão
ministerial continue cumprindo sua função precípua como fiscal da lei. Das
demais formas de controle administrativo, ficou a certeza acerca de sua
importância como meio de composição extrajudicial entre os partícipes da
relação de consumo, o que, via de conseqüência, evita a sobrecarga do
Judiciário, sem se esquecer das sanções penais e do controle legislativo, este
último demonstrador da importância da criação de microssistemas legislativos, a
exemplo da Alemanha, que visem atender a setores específicos do mercado de
consumo.
Por
derradeiro, a educação para o consumo mostra-se extremamente necessária, uma
vez que, através dos programas implementados pelos órgãos públicos, empresas,
imprensa e demais entidades afins do mercado de consumo permite-se ao
consumidor a formação de um juízo crítico em relação aos bens colocados à sua
disposição, ou seja, tomando um caráter eminentemente preventivo, o que,
conseqüentemente, evita possíveis conflitos em torno da relação jurídica ali
estabelecida.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
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Gerson Luiz Carlos. COSTA, Judith Martins. Diretrizes Teóricas do Novo
Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002.
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Forense, 1999.
LUCCA, Newton de. Direito
do Consumidor: aspectos práticos: perguntas e respostas. São Paulo: RT,
1995.
MANDELBAUM,
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Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2000.
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Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da boa-fé.
Rio de Janeiro: Forense, 2002.
NEGREIROS,
Teresa. Fundamentos para uma interpretação constitucional do Princípio da
Boa-fé. Rio de Janeiro: Renovar, 1998.
PEREIRA,
Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: vol. III: Contratos.
Rio de Janeiro: Forense, 2003.
ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução
ao Direito Civil Alemão e Inglês. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
Notas
01.
MARTINS, Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da
boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
02.
MARTINS, Plínio Lacerda. O abuso nas relações de consumo e o princípio da
boa-fé. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
03.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol III,
Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 20.
04.
GAMA, Hélio Zaghetto. Curso de Direito do Consumidor. Rio de Janeiro:
Forense, 1999.
05.
Cabe aqui destacar que uma das inovações trazidas pelo Novo Código Civil diz
respeito à função social do contrato.
06. STJ, Resp. 45.666-5-SP, 1994.
07.
Infelizmente não tivemos acesso a esta importante obra acerca do tema aqui
tratado.
08. TJRGS, Ap. Civ. 598225720, 17
a. C. Civ., j. 6-4-1999, Rel. Demétrio Xavier Lopes Neto.
09.
A otimização a que se refere a autora diz respeito ao aumento de deveres de
cooperação intersubjetiva e de consideração aos interesses do parceiro
contratual.
10.
TJRGS, Ap. Civ.194045472, 9 a. C. Civ., j. 26-4-1994, Rel. Des.
Antônio Guilherme Tanger Jardim.
11. STJ, 4a. AGA
47901-3/SP, j. 12-9-1994, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior.
12.
MARTINS, Flávio Alves. A boa-fé objetiva e sua formalização no Direito das
Obrigações Brasileiro. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2000, p. 104-105.
13.
§ 3º - O Ministério Público, mediante inquérito civil, pode efetuar o controle
administrativo abstrato e preventivo das cláusulas contratuais gerais, cuja
decisão terá caráter geral.
14.
§ 5º - Cópia do formulário será remetida ao Ministério Público que, mediante
inquérito civil, poderá efetuar o controle preventivo das cláusulas gerais dos
contratos de adesão.
15.
Notícia veiculada pelo Jornal Nacional, exibido pela TV Globo.
* assessor de juiz, especialista em Direito do Consumidor em Juiz de
Fora (MG).
Disponível em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=4706
>. Acesso em: 22/11/06.