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A aplicação do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária
Newton de Lucca*
*Mestre e Doutor Livre-Docente e Adjunto em Direito pela Faculdade de Direito
da USP e Juiz do TRF da 3ª Região
Seja-me permitido, inicialmente, manifestar
aos organizadores desse oportuno e memorável encontro os meus mais vivos
agradecimentos(1) por essa honrosa oportunidade de, ao lado da pessoa ilustre e
estimada do Ministro RUI ROSADO DE AGUIAR - a quem tanto admiro e louvo -,
discorrer sobre tema tão interessante e atual e acerca do qual, conforme iremos
verificar logo a seguir, existe igualmente alguma coisa de trágico.
Passo, em seguida, à exposição de nosso tema de hoje, qual seja, o relativo à
aplicação do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária, esforçando-me
para não ultrapassar os 30 minutos regimentais que me foram concedidos.
Disse, há pouco, existir algo de trágico em nosso tema de hoje. Naturalmente,
quis me referir, com todo o respeito, à exuberância da literatura helênica, à
grandeza de suas tragédias...
Como é sabido de todos, supõe-se, em dado momento da narrativa, que os
tormentos de um determinado personagem tenham chegado ao fim tantas que foram
as desventuras por que ele já terá passado. De repente, quando supomos que a
história está a terminar, somos surpreendidos por mais uma série implacável de
acontecimentos ainda reservados para o nosso herói, seja ele um Odisseus, seja
ele um Sísifo.
Não é muito diverso o que se passa com o nosso tema de hoje. Quando imaginamos
que a matéria tenha ficado definitivamente resolvida, alguém com imaginação
mais fértil do que a nossa, resolve reabrir o debate trazendo à colação um
argumento até então não apresentado.
E assim como nós, do Judiciário, deveremos sempre apreciar todos os pontos do
pedido, sob pena de serem interpostos embargos de declaração da decisão
prolatada, pareceu-nos pertinente examinar esse novo argumento, ora introduzido
no debate, ainda que nossa conclusão possa ser - e o é realmente - no sentido
de sua completa impertinência...
Faço, preambularmente, um breve retrospecto desse problema relativo à aplicação
do Código de Defesa do Consumidor às instituições financeiras, em geral, e aos
bancos, em particular.
Já terei perdido a conta, por certo, do número de vezes em que me manifestei
sobre esse tema em oportunidades anteriores. Recordo-me da primeira delas,
ocorrida em 1991, numa reunião ordinária do Instituto Brasileiro de Direito
Comercial Comparado e Biblioteca "Tullio Ascarelli".(2)
Recordo-me, também, da que foi feita no 2º Congresso Brasileiro de Direito do
Consumidor, em Brasília, em 1994.
Confesso ter cometido, em ambas as oportunidades, dois erros.
O primeiro desses erros terá sido inteiramente involuntário. Diante da disposição
expressa do § 2º do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor;(3) ciente da
circunstância de que as origens do direito do consumidor, em todo o mundo,
acham-se visceralmente ligadas aos abusos cometidos por instituições
financeiras contra seus clientes; ciente, ainda, de que os pareceres emitidos
em sentido contrário, conquanto provenientes de respeitabilíssimos juristas,
foram encomendados por famosa entidade de classe do Sistema Bancário, a
Federação Brasileira das Associações de Bancos; ciente, também, de que os
banqueiros são necessariamente considerados 'comerciantes',(4) seja pelo
disposto no artigo 119 do Código Comercial(5) de 1950, seja pelo que está
expresso no § 1º do artigo 2º da Lei 6.404, de 15.12.76,(6) seja, ainda, pela
abundante doutrina(7) a respeito de tal qualificação - e, portanto, devem os
mesmos ser tidos indisputavelmente como 'fornecedores', tanto pela definição do
caput do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor como pela retroaludida
disposição do § 2º desse mesmo artigo 3º expressa à atividade bancária - jamais
tendo sido contestada por algum tratadista essa qualificação de comerciante ao
banqueiro; ciente, enfim, de que algumas noções propedêuticas de Hermenêutica
Jurídica recomendam evitar todo o tipo de interpretação que possa conduzir ao
absurdo,(8) julguei que não seriam necessárias longas digressões para o exame
da matéria e sintetizei sobremaneira o relatório apresentado na ocasião, em
virtude mesmo do pouco tempo de que dispus para fazê-lo.
Embora a deliberação do plenário do Instituto(9) tenha sido unânime no sentido
da aprovação das conclusões a que cheguei, não tive a preocupação, na verdade,
de me entregar a maiores aprofundamentos doutrinários sobre o tema. Julguei, em
suma, que a matéria logo viria a pacificar-se.
O segundo erro cometido, também de perspectiva, foi conexo com o primeiro.
Julguei, na palestra proferida em Brasília durante o 2º Congresso Brasileiro de
Direito do Consumidor, relativa à chamada cláusula-mandato, que essa questão
preliminar da aplicação do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária
já tivesse "transitado em julgado", não no sentido processual da
expressão, com pronunciamento definitivo do Poder Judiciário sobre a matéria,
conforme assinalei na oportunidade, mas na impressão de que as tentativas de
subtrair a atividade bancária, em particular, e a atividade financeira, em
geral, do âmbito da disciplina normativa representada pela Lei 8.078, de
11.09.90, tivessem sido abandonadas...
Julguei que, inexistindo esse tipo de dúvida em países como Estados Unidos,
França, Inglaterra, Alemanha - para ficar apenas em alguns exemplos -, não se
poderia insistir numa tentativa tão desprovida de fundamentos, quer de ordem
jurídica, quer de ordem econômica ou social.
Posteriormente a essas manifestações, porém, soube-se que o Ministério Público
de alguns Estados de nossa Federação encontraram óbices no cumprimento de seus
deveres constitucionais e legais.
Voltei, então, novamente ao tema,(10) talvez com maior vigor, para tentar
esclarecer, perante a opinião pública, as razões em que se funda o movimento de
alguns na organização da resistência ao princípio constitucional da proteção ao
consumidor em nosso país.(11)
Um dos equívocos em que se baseiam os adversários dos consumidores em nossa pátria
reside numa distinção doutrinária - aliás indubitável - entre 'operações' e
'serviços' de banco. Sustenta-se, com ênfase desnecessária, que existem algumas
normas no Manual de Normas e Instruções do Banco Central - MNI disciplinando
serviços bancários e que existem outras, no mesmo Manual de Normas e Instruções
do Banco Central, regulando as operações bancárias, divididas estas últimas,
como todos sabem, em ativas e passivas.
Não parece necessária a invocação de normas regulamentares, porém, para provar
a existência da conhecida distinção. Com efeito, a própria Lei 4.595, de
31.12.64, ao cuidar do sigilo bancário, em seu artigo 38, já deixara clara essa
dicotomia.
A intenção do raciocínio é bem evidente: se há operações, de um lado, e se há
serviços, de outro, e se o Código de Defesa do Consumidor, ao aludir à
atividade bancária, fê-lo tão-somente em relação a serviços, o mesmo não teria
aplicação aos bancos no que se refere às operações praticadas por estes.(12)
O argumento tenta reforçar-se com a consideração de que o produto oferecido
pelos bancos em suas operações - o dinheiro - não poderia ser objeto de
consumo, não penetrando, assim, no âmbito da disciplina tutelar do Código, que
apenas abrange o universo das chamadas relações de consumo. Se o tomador do
empréstimo não pode ser considerado destinatário final - de conformidade com um
dos conceitos de consumidor estabelecido pelo Código - não poderia ele, nessa
linha de argumentação, ser qualificado como consumidor, para efeitos de gozar
da proteção prevista no Código de Defesa do Consumidor.
A fragilidade de tais ponderações é, no entanto, transparente.
Em primeiro lugar, parece necessário relembrar que o dinheiro, segundo o Código
Civil,(13) é considerado um bem juridicamente consumível.
Diz-nos a respeito o nosso grande Clóvis Beviláqua:(14)
"A distinção funda-se numa consideração econômico-jurídica. Há coisas que
se destinam ao simples uso, outras ao consumo do homem. Das primeiras tiramos
as utilidades, sem lhes destruir a substância; as segundas destroem-se,
imediatamente, à medida que se utilizam, ou aplicam.
As coisas consumíveis ou o são de fato, naturalmente, como os gêneros
alimentares, ou, juridicamente, como o dinheiro e as coisas destinadas à
alienação..." (grifos do próprio autor).
Seria despiciendo, por certo, o esforço de citação dos autores que versaram
sobre essa matéria para uma conclusão tão inquestionável.
Passemos, pois, ao segundo ponto. Talvez seja prudente insistir numa idéia
bastante simples - mas ainda, quiçá, não de todo compreendida - de que a Lei
8.078 não forneceu apenas um conceito de consumidor. Haverá, para os efeitos da
proteção estabelecida pelo Código, muitos outros tipos de consumidores que
jamais serão qualificados como destinatários finais. Vamos tomar um exemplo simples,
pedindo escusas, evidentemente, por parecer excessivamente didático.
Nunca consumi cigarros durante minha vida e nem pretendo fazê-lo. Mas isso não
significa que eu não seja consumidor, para os efeitos de gozar da proteção do
Código, se me considerar atingido por uma publicidade enganosa eventualmente
promovida por algum fabricante de cigarros. Não sou consumidor intermédio, nem
tampouco final. Mas a minha pretensão estaria amparada pelo artigo 29 do Código
de Defesa do Consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor, como se sabe, estabeleceu quatro diferentes
conceitos de consumidor, de conformidade com o caput do artigo 2º, o parágrafo
único desse artigo, o artigo 17 e o artigo 29. O exemplo tem inteira aplicação
aos bancos. Se um banco resolve, por exemplo, promover um anúncio na Televisão
alegando que está promovendo empréstimos sem a cobrança de juros e de IOF,
alguém sustentaria, por acaso, que esse banco não estaria violando o § 1º do
artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor? No que aproveitaria, em tal caso,
a alegação de que o tomador do empréstimo não é um colecionador de moedas ou
que, no caso, se trata de uma operação bancária e não de um serviço bancário?
O argumento poderia parecer decisivo, à primeira vista, para enquadrar os
bancos na possibilidade de lhes ser aplicado o Capítulo V do Código e não os
demais capítulos. Mas é claro que, com as ressalvas que indicaremos adiante,
também outros capítulos ser-lhes-ão aplicáveis, dependendo, é claro, de haver
ou não consumidores - em qualquer um dos sentidos existentes no Código de
Defesa do Consumidor - no outro lado das relações jurídicas que se
estabelecerem entre as partes.
Tome-se, agora, o contrato de mútuo. Trata-se de uma operação e não de um
serviço, é claro. Poderia ele conter, por exemplo, uma cláusula segundo a qual
a taxa de juros pactuada entre as partes sofreria elevação diária, a critério
exclusivo do mutuante, na hipótese de o balanço patrimonial do banco acusar
pequena queda no percentual de lucratividade, sem que se ferisse algum dos
incisos do artigo 51 do Código de Defesa do Consumidor, mais especificamente os
de número IV, X, XIII e XV?
Ou, numa hipótese ainda mais absurda, poderia o contrato celebrado por um banco
estabelecer que o pagamento, na hipótese de atraso, por parte do mutuário,
seria feito obrigatoriamente de joelhos diante do gerente da agência, sem que
se conspurcasse o artigo 71 do Código?(15)
Já dizia ANTONIO CANDIDO - esse grande mestre de nossas Letras recentemente
agraciado com o prêmio Camões de Literatura - que nada mais importante para
chamar a atenção sobre uma verdade do que exagerá-la.(16) É claro que não me
passa pela cabeça a idéia, nem mesmo remotamente, de que algum banco de nosso
país possa praticar ato de tal jaez.
É igualmente claro, por outro lado, que todas essas considerações que faço
estão desenvolvidas a título meramente preliminar, apenas com o propósito de
rechaçar essas idéias preconcebidas de estabelecer a não aplicabilidade ou, de
outro lado, a aplicabilidade absoluta. Equivocam-se, na verdade, uns e outros.
Não se escapa, com efeito, de analisar as situações caso a caso.
Daí serem necessárias, a meu ver; algumas precisões complementares.
Uma dessas precisões diz respeito às formas pelas quais se pode dar o crédito
ao consumidor. Imaginemos o consumidor diante da loja que lhe vende o produto
em prestações diretamente, isto é, sem a intermediação de um banco. Estamos
diante de um contrato de compra e venda, inserido nas relações de consumo, e
nenhuma dúvida se põe quanto à sujeição de tal contrato às normas do Código de
Defesa do Consumidor.(17) Quer seja uma compra e venda a prazo, quer seja uma
compra e venda conjugada a um contrato de mútuo, quer exista a alienação
fiduciária ou não do produto negociado, consumidor e fornecedor estão sujeitos
às normas do Código de Defesa do Consumidor. Todas as divergências surgidas
entre eles, seja em relação ao produto, seja em relação ao financiamento, serão
resolvidas com as normas do Código.
Imagine-se, agora, se o financiamento é feito não diretamente pelo fornecedor
do produto e sim por uma instituição financeira. É evidente que o contrato de
compra e venda do produto diz respeito ao fornecedor e ao consumidor. Eventual
vício do produto, por exemplo, será de responsabilidade do fornecedor e não da
instituição financeira que celebrou o contrato de mútuo com aquele consumidor.
Mas é igualmente evidente que esse contrato de mútuo entre o consumidor e a
instituição financeira também se submete às normas do Código de Defesa do
Consumidor. É ainda igualmente claro que os eventuais problemas que esse
contrato de mútuo possa ter não dirão respeito ao fornecedor do produto.(18)
Servem tais considerações para demonstrar a impropriedade de todos esses
raciocínios tendentes a afirmar categoricamente quer a não aplicabilidade aos
bancos das normas do Código de Defesa do Consumidor, quer a sua plena
aplicabilidade, independentemente de considerações adicionais. O banco é, à luz
do Código de Defesa do Consumidor, um fornecedor. E não é apenas um fornecedor
de serviços. Ele é, igualmente, um fornecedor de produtos (o dinheiro). Mas
isso não significa que as normas do Código de Defesa do Consumidor ser-lhe-ão
sempre aplicáveis. Os contratos por ele celebrados poderão não ser considerados
relações de consumo, mas não por causa de ser o tomador do dinheiro um eventual
colecionador de moedas (?), mas sim pela boa razão de que a relação de consumo
depende de dois sujeitos: o fornecedor e o consumidor. Se o banco realiza
contratos com partes que não poderão ser consideradas consumidores, sua
disciplina jurídica não será afetada pela legislação consumerista.
Vamos tomar, por exemplo, os empréstimos efetuados junto aos bancos por
empresários. Imagine-se uma rotineira operação de desconto de duplicatas. Aqui
sim tem sentido dizer que se trata de uma operação bancária destinada à
produção ou ao consumo intermédio. A prevalecer a teoria finalista(19) - que
nos parece claramente a mais acertada em matéria de Direito do Consumidor -, o
aspecto teleológico da proteção ao Código se sobrepõe aos demais. Quer isso
dizer que os empresários, salvo raras exceções,(20) não se acham albergados
pela legislação tutelar, não obstante a definição de "consumidor",
constante do caput do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor, que, com a
expressão "pessoa jurídica", contemplou a possibilidade de os
empresários, quando destinatários finais, serem também abrangidos pela
proteção.
Embora não se duvidasse que outras considerações ainda pudessem ser trazidas à
colação, tanto a doutrina quanto a jurisprudência foram se encarregando de
espancar as dúvidas porventura subsistentes sobre a matéria, bastando lembrar a
respeito - e temos à nossa mesa a ilustre figura do eminente Ministro RUI
ROSADO DE AGUIAR, que exporá exatamente acerca da jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça sobre o Código de Defesa do Consumidor e me corrigirá, por
certo, se eu estiver cometendo alguma impropriedade... - os julgados de nossos
Tribunais e, em especial, do Superior Tribunal de Justiça.
Quando essa questão parecia estar definitivamente apaziguada, novo argumento
foi levantado pelos adversários da aplicação do Código de Defesa do Consumidor
aos bancos.
Tal argumento - absolutamente improsperável, a meu ver - pretende basear-se
numa suposta questão de hierarquia de leis. Em síntese grosseira, essa nova
argumentação poderia ser exposta da seguinte forma.
O caput do artigo 192 da Constituição Federal estabeleceu que o sistema
financeiro nacional, entre outras coisas, seria regulado em lei complementar.
Essa lei complementar, como se sabe, não foi promulgada até hoje, sendo de
interrogar-se, portanto, se as Leis 4.595, de 31.12.64 - alcunhada de Lei da
Reforma Bancária - e 4.728, de 14.07.65 - conhecida por Lei do Mercado de
Capitais - teriam sido ou não recepcionadas pela atual Constituição de 1988.
Existindo consenso no sentido de que tais leis foram, efetivamente,
recepcionadas pela atual Carta Magna, teriam elas o status de lei complementar,
a qual, segundo o artigo 59 desse nosso Texto Supremo (inciso II), estaria
hierarquicamente superior às leis ordinárias (inciso III), sendo o Código de
Defesa do Consumidor - Lei 8.078, de 11.09.90 - uma simples lei ordinária.
Nessa ordem de idéias, não poderia essa lei ordinária dispor sobre atividade
que, constitucionalmente, estivesse reservada exclusivamente ao âmbito de uma
lei complementar.
Passemos, então, a um singelo exame dessa argumentação que, na verdade, muito
me agradou. Sei que tal afirmação poderia, a princípio, mais parecer um
paradoxo para quem tem procurado defender com firmeza - mas sempre acompanhado
da indispensável serenidade - os direitos do consumidor no Brasil. Agradou-me,
sim, porque ela nos revela e nos propõe uma interessante reflexão acerca do que
é visível e do que é invisível para certas pessoas.
Poder-se-ia observar, a título liminar, que se vê demais quando se afirma que a
atividade disciplinada por uma lei complementar não pode ser afetada por uma
lei ordinária. A lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária -
ninguém, por certo, o discutirá -, mas isso não significa que não possam ambas
conviver no contexto geral da ordenação jurídica.
Diz-nos a respeito o Professor ROQUE ANTONIO CARRAZZA: (21)
"Como, em termos estritamente jurídicos, só podemos falar em hierarquia de
normas quando umas extraem de outras a validade e a legitimidade (Roberto J.
Vernengo), torna-se onipatente que as leis nacionais (do Estado brasileiro), as
lei federais (da União) e as leis estaduais (dos estados-membros) ocupam o
mesmo nível, vale consignar, umas não preferem às outras. Realmente, todas
encontram seu fundamento de validade na própria Carta Magna, apresentando
campos de atuação exclusivos e muito bem discriminados. Por se acharem
igualmente subordinadas à Constituição, as várias ordens jurídicas são isônomas,
ao contrário do que proclamem os adeptos das 'doutrinas tradicionais'.
Observamos que as leis nacionais - que encerram normas de caráter geral,
obrigando súditos da Federação e as próprias pessoas políticas - tanto podem
ser veiculadas por meio de leis ordinárias (como se observa no inciso XXVII do
artigo 22 da Constituição Federal, que remete à União competência para legislar
sobre normas gerais de licitação e contatos) ou de atos normativos de igual
tope jurídico (verbi gratia, uma Resolução do Senado fixando alíquotas máximas
do ICMS, nas operações internas, ou um decreto legislativo, referendando um
tratado internacional), quanto por via de leis complementares (exempli gratia,
a prevista no artigo 146 da Carta Magna)".
Diz-nos, igualmente, Reinaldo Pizolio Júnior: (22)
"O importante a ser considerado para a convivência harmônica e pacífica de
ambos não é a subordinação da lei ordinária para com a complementar e sim o
respeito que reciprocamente deve haver entre as mesmas no que concerne à esfera
privativa própria de atuação de cada uma.
Com efeito, se ambas as espécies legislativas têm campo próprio de atuação
(como de fato o têm) e se tanto a lei complementar quanto a lei ordinária
respeitam mutuamente os limites de cada um destes campos (de tal forma que não
vá dispor sobre matéria que compete à outra, não havendo, portanto, invasão), é
forçoso reconhecer que pouco importa que haja relação de subordinação entre
elas e que tais campos encontrem-se em mesmo nível hierárquico".
E complementa o autor linhas adiante: (23)
"Importa que o legislador ordinário saiba que não poderá tratar
normativamente de determinado tema de modo diverso pois estará ingressando em
campo de atuação que é reservado privativamente ao legislador complementar e,
sendo assim, ao dispor sobre matéria inserida neste campo, não poderá fazê-lo
contrariando a dita lei complementar, não porque esta lhe é superior, mas sim
porque detém a exclusividade para dizer normativamente neste campo de atuação.
Assim sendo, e para finalizar, acreditamos que a lei ordinária que venha a
tratar de maneira diversa, de matéria afeta à lei complementar, vale dizer, de
matéria cujo tratamento foi reservado à norma complementar por força de
dispositivo constitucional não estará eivada de ilegalidade por ter, em tese,
desobedecido outra lei que lhe é hierarquicamente superior. Ao revés, padecerá
de vício de inconstitucionalidade, por invasão de competência, na medida em que
pretendeu regular de modo diverso matéria cujo tratamento somente é admitido
pela espécie legislativa lei complementar, nos termos previstos pela
Constituição Federal".
Também o Professor JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES - que escreveu todo um volume sobre
essa questão (ainda que aplicada ao direito tributário) - foi incisivo ao
afirmar que não existe esta superioridade formal entre leis complementares e
leis ordinárias, posto que cada uma atua em campos jurídicos distintos, não
existindo interpenetração de competências legislativas: (24)
"Não se nega a procedência da afirmação de que a lei ordinária não pode
revogar a lei complementar. Todavia, partindo dessa afirmação não é possível a
conclusão pela superioridade formal da lei complementar porque a recíproca é
verdadeira: a lei complementar não pode revogar a lei ordinária.
E não pode em virtude basicamente de dois argumentos: 1º) os campos da lei
complementar e da lei ordinária em princípio não se interpenetram, numa
decorrência da técnica constitucional de distribuição ratione materiae de
competências legislativas; 2º) a superveniência da lei complementar somente
suspende ou paralisa a eficácia da lei ordinária, em casos
excepcionais...".
Assim, vêem demais aqueles que, por defenderem a hierarquia superior da lei
complementar sobre a lei ordinária, inferem que sua coexistência seja
impossível, implicando a sobrevivência da primeira em detrimento da segunda.
Vê-se de menos, por outro lado, quando não se percebe que essa argumentação
tenta provar muito mais do que, na verdade, pretende. Nunca ninguém questionou,
por exemplo, a plena aplicabilidade da Lei 6.404, de 15.12.76, às instituições
financeiras. Sendo estas, por força de lei, constituídas obrigatoriamente sob a
forma de sociedades por ações, sempre se entendeu e se entende que os bancos
estão sujeitos a ela...
Se os bancos abrem seu capital, por exemplo, hão de sujeitar-se às normas
existentes sobre as sociedades abertas, sejam elas provenientes da
retro-referida Lei 6.404 ou da Lei 6.385, ou, ainda, da Comissão de Valores
Mobiliários.
Os bancos sujeitam-se, igualmente, às normas tributárias não necessária e
exclusivamente previstas no Código Tributário Nacional - que, como se sabe, foi
recepcionado como lei complementar - mas também àquelas que se originam de leis
ordinárias como, por exemplo, as que regulam a matéria do imposto sobre a
renda.
É claro que os exemplos poderiam ser multiplicados, mas sua continuação já
seria, positivamente, uma verdadeira afronta à inteligência da seleta platéia
que superlota este auditório.
Prefiro encerrar dizendo, pura e simplesmente, que há sempre, em nossas vidas,
o visível - que, às vezes, não se quer ver - e o invisível - que só se vê
porque se deseja fazê-lo -, sendo tudo, na ordem das coisas, uma questão de
saper vedere, como diria LEONARDO...
Agradeço a todos pela paciência com que me ouviram.
(*) Texto básico da palestra proferida em Salvador, em 30.07.98, no painel
sobre o Código de Defesa do Consumidor, realizado em conjunto com o Ministro
Rui Rosado de Aguiar, por ocasião da Semana de Altos Estudos promovida pela
Escola Nacional da Magistratura e pelo Tribunal de Justiça do Estado da Bahia.
NOTAS
(1) Em particular, não poderia deixar de sublinhar essa minha gratidão ao
eminente Ministro Sálvio de Figueiredo, ao Desembargador Castro Filho, de
Goiânia - que preside este painel -, ao Desembargador Jatahy Fonseca, à Desembargadora
Fátima Nancy Andrighi, à Juíza Eliana Calmon e demais companheiros aqui da
Bahia, que nos acolheram com calor humano inesquecível.
(2) Conforme artigo O Código de Defesa do Consumidor: discussões sobre o seu
âmbito de aplicação, publicado na Revista de Direito do Consumidor 6/61 et seq.
e na RDM 85/81 et seq.
(3) Diz esse parágrafo: "Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado
de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária,
financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de
caráter trabalhista".
(4) Ou, mais propriamente, empresários, segundo a moderna teoria da empresa,
pedra angular do direito comercial contemporâneo.
(5) Diz esse artigo: "São considerados banqueiros os comerciantes que têm por
profissão habitual do seu comércio as operações chamadas de Banco". E o
artigo 120 ainda completa: "As operações de Banco serão decididas e
julgadas pelas regras gerais dos contratos estabelecidos neste Código, que
forem aplicáveis segundo a natureza de cada uma das transações que se
operarem".
(6) Diz o parágrafo: "Qualquer que seja o objeto, a companhia é mercantil
e se rege pelas leis e usos do comércio".
(7) Relembremo-nos, apenas, de Carnelutti que, em sua Teoria giuridica della
circolazione, partindo da consideração de que o comerciante exerce função
intermediária na circulação de bens, fazia a seguinte classificação do
comerciante: mercador, na troca; banqueiro, no crédito; empresário, no
trabalho; segurador, no risco.
(8) Sustentamos, com efeito, o absurdo a que chegaria se se entendesse
inaplicável a Lei 8.078 à atividade bancária: os contratos celebrados pelos
bancos poderiam, por exemplo, conter as cláusulas mais abusivas, violando
escancaradamente um ou até todos os incisos do artigo 51 do Código sem que
houvesse alguma conseqüência para tal procedimento. Os bancos poderiam, nessa
mesma linha de raciocínio, veicular a mais enganosa ou abusiva forma de
publicidade e nada lhes aconteceria posto que a eles não se aplicaria o Código
de Defesa do Consumidor e assim por diante...
(9) Refiro-me à reunião ordinária do Instituto Brasileiro de Direito Comercial
Comparado e Biblioteca Tullio Ascarelli, realizada em 09.10.91.
(10) Palestra proferida em 24.10.95, por ocasião do encerramento do I Seminário
Brasilcon sobre o Código de Defesa do Consumidor. Teoria - Prática e
Jurisprudência, no Salão Nobre da Faculdade de Direito da Universidade de São
Paulo, posteriormente publicada no livro Direito do consumidor - Aspectos
práticos - Perguntas e respostas (São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,
Biblioteca de Direito do Consumidor, volume 10, página 143 et seq.). Estamos
nos valendo, neste breve retrospecto histórico, desse último texto publicado.
(11) Não caberia nos limites dessa nossa palestra enfrentar a discussão
relativa à atuação do Ministério Público no que se refere ao chamado controle
administrativo das cláusulas gerais dos contratos de adesão, a partir do veto
presidencial tanto ao § 3º do artigo 51 como ao § 5º do artigo 54 do Código de
Defesa do Consumidor, ambos com idêntica fundamentação. Antes do advento do
Código de Defesa do Consumidor, manifestei-me contrariamente à subsistência
desse § 5º do artigo 54 por entender que, não obstante toda a competência
atribuída ao Ministério Público, tanto em sede constitucional (artigo 129)
quanto no âmbito da ação civil pública (Lei 7.347, de 24.07.85), não poderia
ser retirada do Poder Judiciário sua atribuição de julgar, por via da ação
declaratória, a interpretação de uma cláusula contratual constante do "formulário-padrão".
Estranhamente, a meu ver, o Ministério Público seria levado à condição de réu,
parecendo-me, em princípio, procedente o veto presidencial. Tal conclusão,
todavia, não implica negar a possibilidade de o Ministério Público, a exemplo
do que já vem fazendo o do estado de São Paulo, exercer o controle sobre as
cláusulas abusivas com base no § 1º do artigo 8º da retro mencionada Lei
7.347/85, com a nova redação que lhe deu a Lei 8.078/90. Conforme, a propósito,
o magistério do Professor Nelson Nery Júnior (Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor comentado pelos autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1991. página 368 et
seq., 387-388), onde a matéria é analisada em maior profundidade.
(12) É claro que, para ser possível o entendimento de tal raciocínio, é preciso
um certo esforço de imaginação para entender, por exemplo, por que as
informações adequadas sobre o montante dos juros de mora e da taxa efetiva
anual de juros a que tem direito o consumidor (conforme inciso II do artigo 52
do Código de Defesa do Consumidor) só se aplicariam ao consumidor que obtivesse
o crédito direto do fornecedor e não na hipótese de ser o mesmo obtido em algum
banco. Seria preciso, igualmente, na leitura do caput do artigo 53 do Código de
Defesa do Consumidor, imaginar, com alguma dose de extravagância de espírito,
que as alienações fiduciárias em garantia ali referidas seriam algum outro tipo
de contrato que não aqueles corriqueiramente celebrados pelas instituições
financeiras do país e assim por diante...
(13) Conforme artigo 51, que trata das coisas consumíveis.
(14) Código Civil comentado. Francisco Alves, 1956. Volume 1, página 226.
(15) Diz o artigo 71: "Utilizar, na cobrança de dívidas, de ameaça,
coação, constrangimento físico ou moral, afirmações falsas, incorretas ou
enganosas ou de qualquer outro procedimento que exponha o consumidor,
injustificadamente, a ridículo ou interfira com seu trabalho, descanso ou
lazer". Embora, como já vimos acentuando há muito tempo, haja um evidente
defeito na colocação desse advérbio "injustificadamente" - que
deveria estar no final da frase ou logo após o verbo interferir -, tenho a
impressão de que a exigência imaginada no texto principal seria considerada
desarrazoada até mesmo para o mais ardoroso defensor da desigualdade humana e
da exploração do homem pelo homem que, infelizmente, conheci em minha vida...
(16) Literatura e sociedade. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.
página 3. Diz esse autor, logo em seguida, que também nada "é mais perigoso,
porque um dia vem a reação indispensável e a relega injustamente para a
categoria de erro, até que se efetue a operação difícil de chegar a um ponto de
vista objetivo, sem desfigurá-la de um lado nem de outro". É o que estamos
tentando fazer aqui e agora...
(17) Como tenho afirmado, não se pode dizer, a priori, se a compra e venda está
disciplinada pelos Código Civil, Comercial ou do Consumidor.
LUCCA,
Newton de. A aplicação
do Código de Defesa do Consumidor à atividade bancária. Disponível em: http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/impressao.asp?id=122.
Acesso em 22 de novembro de 2006.