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O CDC e os crimes contra as relações de consumo
Antonio Ricardo Brígido Nunes Memória*
*Promotor de Justiça titular da 1a Promotoria de Defesa do Consumidor
Sumário:
1. Considerações introdutórias - breves referências à estrutura do CDC ; 2.O
CDC sob a concepção de um microssistema jurídico; 3. As infrações penais no
direito consumerista brasileiro ; 3.1. Comentários às críticas dirigidas ao
artigo 61 do CDC ; 3.2. Algumas considerações quanto ao veto do artigo 62 do
CDC ; 4. A omissão do Poder Público em dar efetividade às normas do CDC ; 5.
Presunção de extinção da punibilidade face ao adimplemento da obrigação derivada
da relação de consumo ; 6. Conclusão – alguns argumentos que justificam a
inclusão de normas penais no CDC.
1.
Considerações introdutórias – breves referências à estrutura do CDC.
Na medida
em que os consumidores vêm se conscientizando da importância da Lei 8.078, de
11 de setembro de 1990 - entre nós alcunhada Código de Defesa do Consumidor -
como instrumento de amparo a seus direitos, bem assim por constituir mecanismo
voltado a disciplinar deveres e obrigações aos produtores e fornecedores de
bens e serviços, decerto não há como por em dúvida que esse seja um importante
passo rumo ao exercício da cidadania.
Além
disso, a efetividade das normas insertas no CDC sobressai como destacada forma
de trabalhar uma nova mentalidade, isto é, uma nova ordem movida pela
conscientização de que produtos e serviços de qualidade, que não ponham em
risco a incolumidade física ou a vida das pessoas, são exigências básicas -
senão mesmo primárias - de toda sociedade que se pretenda reconhecer justa,
politicamente correta, e, por isso mesmo, inserida no contexto dos povos
civilizados (CF, arts. 1o, incs. II e III, 3o, incs. I e
IV, 5o, inc. XXXII c/c o art. 6o , incs. I e III da Lei
8.078/90).
Para não
imprimir enfoque distorcido ao tema, é essencial por em relevo que o Código de
Defesa do Consumidor não consiste formulação jurídica disposta exclusivamente a
resguardar direitos consumeristas. A bem da verdade o CDC seria ambíguo, ou
então lacunoso, se, em determinados casos, não limitasse os direitos dos consumidores.
Essa limitação à qual nos referimos inspira-se na necessidade de salvaguardar o
equilíbrio que constitui a marca indelével das relações de consumo. Assim, o
fiel da balança que tem em flancos opostos consumidores e fornecedores, há de
manter-se imaculadamente retilíneo. Ou seja, não deve pender em favor de um ou
de outro. Eis porque o tratamento diferenciado que é deferido ao consumidor
sofre limites, e esses limites fundam-se nas regras do CDC que reclamam e
impõem o nivelamento entre fornecedor e consumidor, enquanto inseridos no
perímetro das relações de consumo.
Com
efeito, se tomarmos por base o artigo 6o do CDC, que trata dos
direitos básicos do consumidor, vamos nos deparar com um elenco de situações
que se detêm em proveito do mesmo. Em outros termos, o legislador procurou
ditar, caso por caso, os direitos básicos do destinatário do produto ou serviço
(art. 3o, I e II) já que este, aos olhos da lei, é tido como parte
hipossuficiente, seja sob o aspecto fático, jurídico ou técnico. Em regra, por
se constituir parte economicamente mais frágil no âmbito das relações de
consumo.
Por esse
motivo, reconhecemos a perspicácia da Comissão encarregada de edificar o
anteprojeto do Código – referendado posteriormente pelo Poder Legislativo -
pois além de promover a inserção dos direitos básicos do consumidor, exigiu a
severa observância de outros direitos decorrentes de tratados ou convenções
internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna
ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas
competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito,
analogia, costumes e eqüidade – esta a advertência gravada no artigo 7o
do referido caderno consumerista.
Engana-se,
pois, quem esbarra nas normas inscritas no CDC para concluir, equivocadamente,
que as regras codificadas bastariam ao resguardo das relações de consumo. De
modo algum. Há, bem ao contrário, uma infinidade de direitos e deveres
incorporados em determinados regramentos jurídicos, inscritos na legislação
codificada e/ou esparsa, os quais têm íntima e firme vinculação à lei
consumerista.
Em nosso
modesto entendimento essa visão macro, ou holística, justifica-se plenamente
uma vez que o Código tem como propósito vívido a implementação de uma Política
Nacional de Relações de Consumo, regrada no Título I, Capítulo II, do
mencionado digesto. Em outros termos, o CDC desenha uma rota a ser trilhada, e
esse caminho consiste uma verdadeira filosofia de ação, em busca não apenas da
defesa do consumidor, mas, sobretudo, tendo como rumo o aprimoramento e o
equilíbrio das relações de consumo (arts. 4o e 5o). Essa
tarefa termina por render ao Poder Público o grave múnus de dar efetividade às
normas e princípios talhados no corpo do Código (art. 4o, inc. II).
Volvendo à
questão dos direitos explicitados no artigo 6o, importa notar,
todavia, que a análise açodada do referido preceito pode conduzir ao inadequado
entendimento de que somente o consumidor detém direitos na relação de consumo.
Não é bem assim. Ora, como de já suscitado, o simples reconhecimento da relação
de consumo implica em admitir a bilateralidade de partes. Conseqüentemente, de
um lado temos o fornecedor de bens e serviços, ao passo que no pólo oposto da
relação está o consumidor (arts. 2o e 3o).
Embora
lastradas em propósitos distintos, é plausível notar que as partes têm o mesmo
objetivo, qual seja, levar a termo a relação de consumo. Tanto isso é verdade
que no momento em que o consumidor busca adquirir determinado bem, porque lhe
será útil de algum modo, ao mesmo tempo, o comerciante – agente solidário ao
fornecedor do bem posto em circulação – tem na venda o meio de obter lucro e,
desse modo, procura viabilizar a sua sobrevivência na acirrada disputa que
trava com seus concorrentes.
Em decorrência
dessas asserções, é iniludível que o consumidor há de ser protegido no sítio
das relações de consumo, posto que, como dito acima, constitui, via de regra,
parte vulnerável infinitamente mais fraca na relação travada com o fornecedor
de bens e serviços.
Não é
devido perder de vista, entretanto, que esses mesmos fornecedores assumem papel
de significativa relevância no leito da economia, pois inegavelmente são eles
os grandes responsáveis pela geração de emprego e riqueza, decorrentes da
prestação de serviços os mais variados, produção de bens de consumo, comércio,
insumos agrícolas, exportação, etc.
Não fossem
esses argumentos bastantes, é incontestável que a cadeia de produção gera uma
infinidade de tributos, os quais têm por finalidade precípua viabilizar a
existência do Estado, e, por via reflexa, a operacionalização do aparelho
administrativo estatal. Se as verbas tributárias são bem ou mal empregadas,
essa é uma questão que reflui ao propósito do tema eleito – por conseqüência,
tal aspecto há de ser apreciado em ocasião oportuna.
Dando
curso às idéias acima alinhavadas, pensamos coerente afirmar que o CDC reserva
incontáveis situações em que preserva e reconhece, explicita e implicitamente,
direitos do fornecedor. Dentre elas cabe citar a hipótese do artigo 18
(responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço). Note-se, por oportuno,
que em decorrência da previsão legal em mira o consumidor somente poderá
decidir-se dentre as opções previstas em seus incisos I (substituição do
produto), II (restituição da quantia paga) ou III (abatimento proporcional do
preço), após o produtor exercer a prerrogativa que lhe dedica o § 1o
do citado artigo 18 – ressalvadas as hipóteses previstas nos §§ 3o e
5o.
De outra
parte, convém lembrar que mesmo nas hipóteses em que o CDC não faz expressa
referência aos direitos dos fornecedores, admite-se, como dito anteriormente, a
existência de situações implícitas que militam em proveito destes; sempre e
quando, evidentemente, não houver ofensa ao direito consumerista.
Essa
afirmação, ao que nos parece, assoma apropriada, sobretudo se for considerada a
regra contida no artigo 26, que cuida da decadência e da prescrição. Assim, em
razão desse paradigma é plausível sustentar que, inexistindo garantia
contratual, o consumidor perderá o direito de reclamar do produtor ou
fornecedor - por vícios aparentes ou de fácil constatação - desde que, por
óbvio, estejam exauridos os prazos indicados nos incisos I e II do mencionado
dispositivo legal. Assim, ao que tudo indica o legislador teve por alvo
reservar ao fornecedor o direito de não atender a postulação do consumidor,
tanto que consumada a decadência ou a prescrição previstas no Código.
Essa
postura assumida pelo legislador tem esteio no coerente argumento de que o
fornecedor não poderia ficar à mercê da vontade do consumidor desidioso, que
por essa razão deixou escoar o prazo decadencial ou prescricional, sem que
tenha cuidado em buscar a tutela de seu direito.
2. O
CDC sob a concepção de um microssistema jurídico.
É
importante ter em mente que o propósito destas ponderações desdobra-se, em
parte, como forma de demonstrar que o CDC constitui um microssistema jurídico,
determinado a garantir a efetividade das normas atinentes à preservação e ao
equilíbrio das relações de consumo. E de fato assim há de ser reconhecido o
Código – como um microssistema jurídico - conquanto a chamada ciência
consumerista assenta-se em princípios específicos, voltados, invariavelmente,
ao resguardo das relações de consumo, tendo em foco, obviamente, a vulnerabilidade
do consumidor; id est, a debilidade do hipossuficiente que clama e
reclama a constante vigilância e proteção do Poder Público. De mais a mais, é
essencial não perder de vista que a Lei 8.078/90 relaciona-se intimamente com
outros ramos do Direito, a saber: Constitucional, Civil, Penal,
Processual Civil, Processual Penal e Administrativo.
Por conta
desse fenômeno, é possível enxergar a perfeita interação das normas que
estruturam o CDC. Não apenas entre elas, mas, como afirmado no parágrafo antecedente,
em harmoniosa fusão com normas e princípios dispostos em outros textos legais.
Isso ocorre face à necessidade de se resguardar a incolumidade do consumidor,
dado que a sua vulnerabilidade, como mencionado linhas atrás, invoca a proteção
do Poder Público, tendo em conta que o interesse coletivo suplanta o interesse
particular que eventualmente possa emergir de uma dada relação de consumo.
Assim,
imaginamos que a conjugação destas ponderações, embora trabalhadas de modo
singelo, bastem para conduzir à devida compreensão da sistemática do CDC, o
qual, por sua natureza peculiar, tutela interesses individuais, difusos e
coletivos. Desnecessário, portanto, descer a maiores considerações a esse
respeito, mormente porque a tutela de tais direitos sobressai imprescindível à
perfeita harmonia e estabilidade das incontáveis relações que ocorrem entre os
fornecedores e o imenso universo de pessoas que compõe a população.
Feitas
tais ponderações, parece-nos coerente sustentar que os preceitos de natureza
penal - que se agregam ao conjunto das observações inculcadas – justificam
plenamente os comandos repressivos fincados no Código; sobretudo se for levado
em conta que ainda hoje perduram injustificadas críticas à inserção das penas
corporais (privação da liberdade) dispostas no CDC. E de fato tais críticas são
inconvenientes e impróprias, dado a magnitude e relevância dos interesses
públicos tutelados.
3. As
infrações penais no direito consumerista brasileiro.
Embora as
legislações de outros países tenham optado, em sua expressiva maioria, por
considerar o aspecto administrativo das infrações de consumo em detrimento das
sanções de natureza penal, no Brasil o Código de Defesa do Consumidor reservou
um capítulo especial às infrações administrativas (arts. 55/60), sem abrir mão,
todavia, do concurso de normas de caráter repressivo (arts. 61/80).
Com
efeito, a posição dominante na doutrina demonstra que a inserção de normas
penais no âmbito do CDC originou-se da necessidade de punir determinados
comportamentos, considerados de tal forma graves que a mera indenização civil
ou as punições administrativas, face à transgressão de preceitos de natureza
consumerista, seriam inócuas à eficaz recomposição do ordenamento jurídico
infirmado.
Além
disso, é cabível acrescentar que a sanção de natureza penal é dotada de caráter
preventivo. Ou seja, tende a desestimular o cometimento de infrações ou a
reincidência destas. Some-se a isso o fato de que a lei penal busca, in casu,
a efetividade das normas de natureza civil e administrativa agrupadas no CDC.
Bem a
propósito, o emérito Professor JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, Procurador de
Justiça no Estado de São Paulo e integrante da comissão então constituída com o
propósito de elaborar o anteprojeto do CDC, ao rebater críticas assacadas
contra aspectos penais do mencionado anteprojeto, efetuou apropriada referência
a esse importante ponto ao mencionar que ... as penas sugeridas para os
comportamentos delituosos previstos são efetivamente para os responsabilizados
por fraude na venda de produtos ou prestação de serviços, sim, e não para os
fornecedores de bens e serviços que agem corretamente, assim como também são
passíveis de pena corporal rigorosa os autores de crimes de homicídio, roubo,
estupro, etc. ( in, CÓDIGO BRASILEIRO DE DEFESA DO CONSUMIDOR,
Comentado Pelos Autores do Anteprojeto, 7a edição, Forense
Universitária, revista e ampliada até 2001, pg 604).
Como
visto, os argumentos do citado Mestre suplantam quaisquer outros que venham de
encontro à parcela do código consumerista que reserva espaço às normas penais,
sobretudo se for levado em conta que diante da impossibilidade de se prever
todos os delitos que possam atacar as relações de consumo, o CDC contempla o
concurso de outras normas inseridas nas legislações codificada e extravagante,
o que decerto confere ao consumidor a serenidade de encontrar-se resguardado
por uma vasta gama de normas penais, que direta ou indiretamente desestimulam o
fornecedor a transgredir o fato espécie descrito em lei (CF, art 5o,
inc. XXXIX, CDC, art. 61 e CPB, art. 1o).
Nessa
esteira de argumentação, é imperativo firmar que a circunstância em análise
deriva da regra plasmada no artigo 61, a qual adverte constituir crime contra
as relações de consumo, além dos preceitos especificados no CDC, as condutas
tipificadas tanto no Código Penal como na legislação especial.
Por
conseqüência, diante da norma grafada no citado artigo é apropriado concluir
que todas as demais normas que tenham correspondência àquelas - alusivas à
proteção das relações de consumo - passam a interagir com as normas previstas
no CDC, ao propósito de imprimir efetividade às regras consumeristas. E assim
ocorre porque, conforme foi dito ao início, o consumidor, por constituir-se
parte hipossuficiente, reclama a proteção do Poder Público. E quando o Poder
Público busca a defesa do consumidor, através da harmonização das relações de
consumo, põe em prática a filosofia de ação do código, isto é, instila o
incremento da Política Nacional de Relações de Consumo, sem a qual os preceitos
contidos no Código jamais seriam postos em execução (leia-se: efetividade das
normas consumeristas).
3.1.
Comentários às críticas dirigidas ao artigo 61 do CDC.
Para
alguns, ao preconizar o concurso de outras normas penais àquelas dispostas no
CDC, a regra estampada no artigo 61 pode apresentar-se como algo desnecessário
ou mesmo redundante, dado que o artigo 12 da lei substantiva penal, que externa
o princípio da especialidade, estatui o seguinte: As regras gerais deste Código
aplicam-se aos fatos incriminados por lei especial, se esta não dispuser de
modo diverso.
Em vista
desse preceito, tem-se a clara idéia de que não reservando o CDC qualquer
vedação às normas previstas no Código Penal, os dispositivos da lei repressiva
codificada, contidos na Parte Geral e outros atinentes à Parte Especial - estes
últimos alusivos às relações de consumo - aplicam-se em concurso com as normas
do CDC, independentemente da alocução do artigo 61.
De fato!
JULIO FABBINI MIRABETE ao tecer comentário ao art. 12 do Código Penal, afirma
que o princípio da especialidade tem correspondência na circunstância de que as
normas previstas na Parte Geral do Código Penal e em alguns dispositivos da
Parte Especial (arts. 150, §§ 3o e 4o, 327 etc) têm
caráter geral e, segundo o artigo 12, devem ser aplicadas aos fatos
incriminados por essa lei especial, desde que, evidentemente, não exista
disposição em sentido contrário (in CÓDIGO PENAL COMENTADO, Ed. Atlas,
2000, São Paulo, pgs. 127/128). Segue-se, como paradigma, a hipótese prevista
na Lei 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e
relações de consumo, particularmente em seu artigo 7o, que dita o
elenco de tipos penais referentes a crimes contra as relações de consumo –
contra os consumidores, portanto.
Ainda a
título de exemplo, é possível citar como infrações contra as relações de
consumo, dentre outras, aquelas cometidas em detrimento da economia popular
(Lei 1521/51), incorporações imobiliárias (Lei 4.591/64, arts. 65 e 66), as
contravenções previstas na lei de locações prediais urbanas (Lei. 8.245/91) e
loteamentos (Lei 6.766/79). Tenham-se ainda em conta os "crimes do
colarinho branco e contra a ordem financeira", consubstanciados,
respectivamente, nas Leis nºs 7.492/86 e 4.595/64, os praticados contra os
genericamente considerados "direitos do consumidor" e
"abastecimento de combustíveis" (cf. Leis nºs 8.002/90 e 8.176/91), o
novo Código da Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96, e muitos outros, fora
do Código Penal (excerto extraído das observações feitas pelo Prof. José
Geraldo Brito Filomeno, na obra ut supra, pg. 613).
Por sua
vez, é importante fixar que no âmbito da legislação repressiva codificada
muitos de seus preceitos têm relação com o Código Consumerista, a começar pelas
disposições contidas na parte geral, além de tantas outras previstas na parte
especial do referido caderno, cabendo, conseqüentemente, citar algumas
hipóteses legais: crimes contra a saúde pública (arts. 267 e seguintes), apropriação
indébita (art. 168), estelionato (art. 171) e fraude no comércio (art. 175).
Diante do
que afirmado, é importante estar atento ao fato de que o princípio da
especialidade indica que as normas gerais do Código penal (normas não
incriminadoras, permissivas ou complementares), bem como aquelas listadas na
Parte Especial (em sua maioria regras dotadas de preceito e sanção) devem ter
incidência concorrente ao CDC. No primeiro caso (normas gerais) em razão do
princípio da especialidade. Na segunda hipótese (regras especiais) para atender
ao disposto no artigo 61 do Código do Consumidor. Ou seja, direcionadas a
espancar ofensa a regramento destinado a salvaguardar as relações de consumo.
Por isso mesmo nada impede que o artigo 61 seja peremptório ao contemplar o
concurso das normas repressivas codificadas, como por igual aquelas insculpidas
na legislação especial, com as regras dispostas no corpo do CDC. Sobreleva
notar, em conseqüência, o manifesto propósito do legislador, que outro não foi
senão tornar estreme de dúvida a incidência de tais leis em interação com o
Código do Consumidor.
Tanto por
tanto, não é devido olvidar-se o caráter didático pedagógico do preceito (art.
61), além do que, o mesmo abate, de pronto, quaisquer cogitações acerca de
possíveis conflitos aparentes de normas. Não há, pois, qualquer razão coerente
a ensejar as críticas acima enfocadas, já que estas terminam por sucumbir ante
à falta de sustentação jurídica de maior consistência. Portanto, bem ao
contrário do que afirmado por seus críticos, o art. 61 não é desnecessário,
muito menos redundante ou repetitivo, pois aclara, propositadamente, a mens
legis, particularmente no que concerne às normas de predicado penal
inseridas no corpo da Lei 8.078/90.
3.2.
Algumas considerações quanto ao veto do artigo 62 do CDC.
O artigo
62 do CDC, que tinha em mira vedar a colocação no mercado de produtos ou
serviços impróprios – portanto de inegável valia à incolumidade dos
consumidores – foi indevidamente vetado, sob argumento de que referido dispositivo
não teria descrição precisa e determinada quanto à conduta delituosa nele
descrita.
O veto
teve esteio, por conseguinte, na presunção de ofensa ao princípio da reserva
legal, previsto no artigo 5o, inciso XXXIX, da Carta Cidadã de 1988.
Todavia, basta que nos reportemos ao teor do artigo em questão para
constatarmos de logo o equívoco do veto sob análise: Art. 62 – Colocar no
mercado, fornecer ou expor para fornecimento produtos ou serviços impróprios:
Pena – Detenção de seis meses a dois anos e multa. § 1o – Se o crime
é culposo: Pena – Detenção de três meses a um ano ou multa. § 2o –
As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à lesão
corporal e à morte.
Induvidosamente
a leitura do texto em questão remete-nos à certeza do grosseiro engano cometido
por ocasião do veto. Ora, quem tem conhecimento do conjunto de normas que
integram o CDC certamente constatará, sem maiores dificuldades, que a hipótese
em comento se conforma perfeitamente à circunstância relativa à norma penal em
branco. Isto é possível afirmar pelo simples e tão razoável argumento de que o
próprio Código, em seus artigos 18, § 6o e 20, § 2o,
respectivamente, indica explicitamente o que sejam produtos e serviços
impróprios. Portanto, não há argumento plausível que suporte a procedência do
veto – bem ao contrário.
Se
levarmos em conta que a norma penal é constituída de preceito (descrição da
conduta) e sanção (pena), é plausível afirmar que as normas penais em branco,
também chamadas normas penais incompletas, são aquelas que necessitam de
um complemento quanto ao preceito, pois este, embora existente, é
indeterminado. É exatamente por esse motivo que o comando reclama um
complemento, sem o qual, evidentemente, o tipo não há como ser definido.
O
Professor ROMEU DE ALMEIDA SALLES JÚNIOR define e exemplifica a questão em foco
de modo singular: A norma penal em branco tem preceito, pois existe o
comando. A doutrina faz distinção, afirmando que norma penal em branco em
sentido amplo é aquela que encontra complemento na própria lei ; e, em sentido
estrito, a que se completa com outra lei. Exs.: art. 269 do CP, que trata de
omissão de notificação de doença. O agente (médico) praticará o crime se não
fizer a notificação de doença cuja denúncia é compulsória. A lei penal, no
entanto, não enumera tais doenças, ficando o complemento para uma portaria da
saúde. O mesmo se diga em relação ao art. 237, sendo que o impedimento é
determinado pelo Código Civil; o Decreto-lei n. 201/67, que dispõe sobre a
aquisição de bens e realização de serviços sem licitações, "nos casos
exigidos em lei", o art. 178, sobre emissão de warrant, "em desacordo
com disposição legal" (CURSO COMPLETO DE DIREITO PENAL, Editora
Saraiva, 8a edição, pg. 10).
Sobressai
evidente, como dito linhas acima, o desacerto quanto ao veto cometido ao artigo
62, posto tratar-se de norma penal em branco em sentido amplo. Isto é, o artigo
62 é complementado na mesma lei (Estatuto do Consumidor) pelas regras dispostas
nos artigos 18 e 20 da Lei 8.078/90.
Seguindo-se
a linha de raciocínio adotada para lavrar-se o veto do artigo 62, é de se
indagar: por que Presidente da República não adotou a mesma postura em relação
a inúmeros dispositivos do CDC que têm complementação em outras regras
incrustadas em seu texto?
A título
de exemplo, citamos o tipo penal descrito no artigo 73: Deixar de corrigir
imediatamente informação sobre consumidor constante de cadastro, banco de
dados, fichas ou registros que sabe ou deveria saber ser inexata. Pena –
Detenção de um a seis meses ou multa.
Muito bem,
observe-se que embora o vocábulo "imediatamente" – introduzido na
descrição do tipo -, dê a entender que a providência deva ser adotada de
pronto, com brevidade, sem demora; é, por óbvio, imprecisa quanto ao tempo para
cumprir a providência determinada no artigo acima transcrito. Assim, para a
correta determinação do tipo é necessário que se especifique o lapso temporal
correspondente ao termo "imediatamente". A especificação, ao parece
claro, é feita através do artigo 43, § 3o. Ou seja, em cinco dias.
Destarte, temos no artigo 73 – a exemplo do artigo 62 - a ocorrência de uma
norma penal em branco em sentido amplo.
O veto,
por conseguinte, não dispõe de lastro jurídico que o justifique. Por isso mesmo
as digressões postas acima têm manifesta importância – conforme restará
determinado adiante -, pois o Chefe do Executivo Federal extirpou da Lei
8.078/90, sem motivo plausível, tipo penal de destacada relevância à defesa do
consumidor.
O
prejuízo, entrementes, foi aplacado com a edição da Lei 8.137/90, pois esta
restaurou o dispositivo vetado, fazendo-o através do artigo 7o,
inciso IX, § único, o qual segue transcrito textualmente: Constitui crime
contra as relações de consumo: (...) Vender, ter em depósito para vender ou
expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em
condições impróprias ao consumo; Pena – detenção, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos,
ou multa. Parágrafo único – Nas hipóteses dos incisos II, III e IX pune-se a
modalidade culposa, reduzindo-se a pena e a detenção de 1/3 (um terço) ou a de
multa à quinta parte.
Os
comentários acima dispostos reclamam a anotação de duas considerações de
evidente importância:
1a)
O artigo "ressuscitado" através da Lei 8.137/90, de 27 de novembro de
1990, a exemplo do artigo 62 (vetado), reclama complementação para aclaramento
do tipo em outro dispositivo de lei, ou seja, no Código de Defesa do
Consumidor, especialmente em seus artigos 18, § 6o, e 20, § 2o,
os quais explicitam, respectivamente, o que sejam produtos e serviços impróprios.
Temos,
agora, portanto, não uma norma penal em branco em sentido amplo, como ocorria
com o artigo 62, mas, sim, uma norma penal incompleta em sentido estrito, pois
como de já verificado, o artigo 7o, inciso IX, exige complementação
nos dispositivos do CDC, anteriormente mencionado, ou, ainda, em outras normas
mesmo que hierarquicamente inferiores, desde que definam produtos ou serviços
impróprios.
Na área de
produtos perecíveis, é bastante comum que o Governo estabeleça critérios
balizadores de modo a definir com maior segurança os produtos impróprios ao
consumo humano. Nesse sentido, observe-se que o Ministério da Agricultura e
Abastecimento, através do Serviço de Inspeção Federal (SIF), editou o
Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal
(RIISPOA), mediante o qual impõe regras higiênico-sanitárias a serem observadas
em estabelecimentos os mais diversos, cabendo destacar os seguintes:
entrepostos frigoríficos, matadouros, abatedouros de aves e coelhos, indústrias
de laticínios e usinas de beneficiamento de leite, indústrias de processamento
e beneficiamento de pescados, apiários e entrepostos de beneficiamento de mel
de abelhas, estabelecimentos avícolas etc.
Esse mesmo
regulamento, editado por meio do Decreto 30.691, de 29.03.52, estabelece
padrões de tolerância a serem seguidos, sob pena da inutilização do produto,
evitando-se que o mesmo seja destinado ao consumo humano. Sobre este aspecto em
particular, há espaço para citar alguns exemplos: o ph (indicador de acidez)
acima dos padrões especificados para carne, leite e pescado, dentre outros, bem
como a verificação de elementos estranhos à composição original do leite in
natura, ou de seus derivados industrializados, ou ainda a constatação de
bactérias nocivas ao ser humano, tais como salmonelas, estafilococos e
coliformes. Outro sério risco a que está exposto o consumidor decorre do abate
clandestino de animais, em decorrência das possíveis moléstias transmissíveis
ao homem - brucelose, tuberculose e aftosa, para citar apenas as mais comuns.
Na verdade
seria inadequado descer a maiores detalhes sobre os aspectos acima aventados,
posto que o nosso real interesse consiste em demonstrar que uma norma
hierarquicamente inferior, editado por autoridade competente, basta para
complementar a regra disposta no artigo 7o, inc. IX, § único da Lei
8.137/90.
Em outras
palavras, a exposição ao público consumidor de produtos fora dos padrões
anotados no RIISPOA constitui crime, e crime grave, que infirma as
relações de consumo porque colide com o dispositivo da Lei 8.137/90. Nada
impede, todavia, a imposição da sanção administrativa correspondente, sem
prejuízo, ademais, da reparação dos danos civis porventura sofridos, o que deve
ser buscado na esfera judicial civil.
2a)
O legislador houve por bem tornar mais gravosa a pena correspondente ao artigo
62 (vetado) elevando-a substancialmente. Assim, a pena de detenção, que no
artigo expurgado variava de seis meses a dois anos e multa passou ao teto base
de dois anos, podendo chegar ao patamar de cinco anos, ou multa.
Ao que nos
parece o legislador ordinário laborou acertadamente, sobretudo se levarmos em
conta que o tipo sob análise encerra conduta extremamente grave, podendo,
inclusive, como de já demonstrado, levar à morte o consumidor.
Em
conclusão, o veto, embora inadequado, terminou acidentalmente por beneficiar o
consumidor em razão dos argumentos deduzidos neste tópico, notadamente porque a
lei, constituindo-se um freio social – pois dita parâmetros de conduta de modo
a viabilizar a convivência pacífica e harmoniosa entre os indivíduos – tem na
pena mais gravosa manifesta advertência ao fornecedor imbuído de má-fé. Em
termos mais diretos, desestimula a infração capitulada no artigo 7o,
inciso IX, § único, da Lei 8.137/90.
Eis as
razões que justificam, em nosso entendimento, a inserção dos comentários ao
dispositivo vetado, tendo em conta não apenas a repercussão do veto, mas,
sobretudo, a inserção de um novo preceito que veio em substituição ao artigo
desarraigado, e que, embora externo ao CDC, encontra-se em perfeita consonância
com as regras dispostas em sua estrutura, por força do que dispõe o artigo 61.
4. A
omissão do Poder Público em dar efetividade às normas do CDC.
Grave
questão que milita em desfavor do consumidor, e mesmo do fornecedor de bens e
serviços consiste na gritante falta de informação decorrente da omissão do
Poder Público quanto às regras dispostas no CDC. Ora, se é certo - por mera
ficção legal - que a ninguém é dado o direito de eximir-se ao cumprimento da
lei, sob argumento de desconhece-la, também não se pode negar que a
desinformação é algo extremamente nocivo à efetividade das normas
consumeristas, e, por decorrência, ao equilíbrio, transparência e harmonia que
devem permear as relações de consumo (art. 4o, caput e inc.
III).
Por
conseqüência, ao observar que na prática a simples presunção de conhecimento da
lei voltar-se-ia em detrimento da efetiva implementação da Política Nacional
das Relações de Consumo, a Comissão elaboradora do anteprojeto do CDC houve por
bem adicionar o inciso IV ao citado artigo, através do qual é manifestada a
necessidade de levar-se a efeito a educação e informação de fornecedores e
consumidores, quanto aos seus direitos com vista à melhoria do mercado de
consumo. Esse preceito, de grande valia no cenário das regras destinadas à
preservação da Política de Consumo a que se refere a Lei 8.078/90, ganhou
importante reforço com o advento do Decreto 2.181, de 20.03.97, que dispõe,
dentre outras matérias, sobre o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, pois
reservou ao Departamento Nacional de Defesa do Consumidor a tarefa de ...prestar
aos consumidores orientação permanente sobre seus direitos e garantias ;
Informar, conscientizar e motivar o consumidor, por intermédio dos diferentes
meios de comunicação (art. 3o, incs. III e IV).
Na
prática, entretanto, o Poder Público tem dado as costas à importância da lei
consumerista no palco da economia nacional, tendo em vista que pouco, ou quase
nada, tem sido feito ao longo de todos esses anos ao propósito de por em
efetiva execução o Código de Defesa do Consumidor.
Tal
conduta nos parece irresponsável, senão atentatória aos direitos de
significativa parcela da população, sobretudo aquela composta por pessoas de
menor poder aquisitivo. Essa questão toma corpo tanto quanto se observe o
imenso número de iletrados que o Brasil contabiliza.
Tenha-se
claro, por conseqüência, que o incremento de uma forte política de preservação
das relações de consumo transcende a defesa unitária - ou mesmo coletiva - do
consumidor, para alcançar condição de destaque, sobremaneira em razão dos
elevados interesses públicos que resguarda. E assim acontece, pois a efetivação
das normas jurídicas ligadas à defesa do consumidor busca – como já afirmado
por tantas vezes – a harmonização das relações de consumo; tecendo, por assim
dizer, forte liame aos princípios em que se funda a ordem econômica nacional
(CF, art. 170). Isto é, tende a conciliar os interesses dos consumidores e
fornecedores, compatibilizando-os com o desenvolvimento econômico e
tecnológico, fundados na boa-fé e equilíbrio nas relações travadas entre uns e
outros.
Por conta
da omissão referida linhas acima, não é incomum que o consumidor busque, em
alguma delegacia ou mesmo em determinados órgãos de defesa e proteção do
consumidor, a solução para o problema que o aflige.
Uma vez
alcançada a satisfação do conflito, o consumidor desinformado em regra dá-se
por satisfeito, não procurando dar ensejo à aplicação da sanção penal
correspondente, pois deixa de provocar a autoridade policial, ou outro agente
público competente, de modo a conduzir ao representante do MP os elementos que
servirão de suporte à respectiva denúncia – em sendo o caso, evidentemente.
De igual
modo não é raro que a polícia judiciária dedique somenos importância ao fato
posto à sua apreciação, limitando-se, no mais das vezes, a intimar o fornecedor
em busca de uma rápida solução da reclamação manejada pelo consumidor. Deixa,
assim, indevidamente, de instaurar o procedimento adequado, frustrando, por
conseqüência, o efetivo esclarecimento do ilícito em tese cometido, e, por via
reflexa, a ação do Ministério Público – responsável que é pela promoção da ação
penal pública (CF, art. 129, I, CP, art. 100, § 1o e CPP, art. 40).
Quando
assim procede a autoridade policial, o faz, via de regra, por inaceitável
descaso, pois elege como prioritárias as investigações de outros delitos que em
sua concepção lhes parecem mais graves. Pode ainda ocorrer que essa mesma
autoridade deixe de dar ensanchas ao procedimento adequado por absoluta
ignorância dos delitos tipificados no CDC. Nessa hipótese, embora adote de
pronto determinadas providências ao escopo de por termo à insatisfação do
consumidor, na verdade enxerga na reclamação que lhe foi dirigida mera infração
de caráter administrativo.
De um modo
ou de outro, o fato é que a inexistência de divulgação dos direitos e deveres
inseridos no Código, tal como o exige a Lei 8.078/90 (art. 4o, inc.
IV) termina por alimentar a perniciosa flama da impunidade. E a impunidade, por
sua vez, se desdobra como nefasto incremento de condutas ilícitas.
O Poder
Público, em casos que tais, involuntariamente contribui para que a impunidade
se faça altaneira, perversa e contrária aos interesses coletivos. Essa é uma
contradição inaceitável, mormente porque o Estado Democrático de Direito tem
por intento o bem comum como finalidade fundamental (CF, art. 1o).
Tratando-se da tutela de direitos do hipossuficiente, estar-se-á resguardando
princípio fundamental, qual seja, a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1o,
inc. III). Ao referir-se ao postulado fundamental em referência, o Professor
GLAUCO BARREIRA MAGALHÃES FILHO o fez nos seguintes termos: (...) cumpre
lembrar que dentre os valores fundamentais que vão conferir unidade à
Constituição destaca-se a dignidade da pessoa humana. Esse valor é permanente,
sendo o mais básico de todos e para todos, pois não resulta de uma simples
decisão, mas é uma exigência da natureza humana (in Hermenêutica e
Unidade Axiológica da Constituição, editora Mandamentos, 1a edição,
pg. 99).
Para
cessar essa licenciosidade consentida, que afronta não apenas o ordenamento
jurídico que não se vê recomposto, mas, sobretudo porque ataca a dignidade do indivíduo
– ou de uma coletividade de pessoas – é necessário que muitas Unidades da
Federação que ainda hoje permanecem omissas, atentem para a necessidade de
criar delegacias especializadas em defesa do consumidor. A propósito, o
Ministério Público, que está diretamente engajado na proteção e defesa do
hipossuficiente, pode e deve provocar os Poderes Executivo e/ou legislativo com
a finalidade de serem criadas unidades policiais especializadas – tanto na
capital como nos grandes centros interioranos - de sorte a atender a exigência
do art. 5o, inc. III do CDC, c/c a parte final do artigo 9o
do Decreto 2.181/97.
Portanto,
a conjugação dos argumentos postos neste item permite-nos sustentar que só
um consumidor completamente informado pode contratar, em pleno conhecimento
de causa com os fornecedores e desempenhar o papel que deve ser seu, o de
parceiro econômico (LUC BIHL, in Le Droit Pénal de la Consommation,
Paris, Nathan, 1989, pg. 19). Sobre o excerto ora transcrito, vide os artigos 8o,
9o, 10o, § 1o, 30, 31, 43, caput, e 44,
§ 1o.
5.
Presunção de extinção da punibilidade face ao adimplemento da obrigação
derivada da relação de consumo.
Quer nos
parecer que a extinção da punibilidade, tal como ocorre nos chamados delitos
fiscais, como conseqüência do adimplemento da obrigação tributária antes do
recebimento da denúncia (art. 34 da Lei 9.249) induz ao equivocado entendimento
de que, uma vez satisfeito o dever decorrente de uma determinada relação de
consumo, este fato, de igual modo, resultaria na extinção da punibilidade
relativa ao tipo correspondente. Não é bem assim.
É preciso
que estejamos atentos para o fato de que embora a Lei 8.137/90 especifique
tipos penais alusivos a crimes contra a ordem tributária, econômica e relações
de consumo, somente os crimes decorrentes das chamadas fraudes fiscais,
previstos nos artigos 1o e 2o da citada lei, têm extinta
a punibilidade nos moldes acima referidos.
Portanto,
malgrado a Lei 8.137/90 resguarde estreito liame com as normas preconizadas no
CDC, não ocorre no âmbito deste – ou mesmo quanto aos demais dispositivos da
Lei 8.137/90 -, causas específicas de extinção da punibilidade. De sorte que,
nos crimes capitulados na lei consumerista a extinção do fato espécie opera-se
apenas naquelas hipóteses previstas no artigo 107 do Código Penal, por força do
que disposto no artigo 61 do CDC, e ainda em combinação com a regra insculpida
no artigo 12 do CPB, esta última por reverberar o princípio da especialidade.
6. Conclusão – alguns argumentos que
justificam a inclusão de normas penais no CDC.
Face ao
exposto, as críticas dirigidas aos preceitos repressivos contidos no CDC
certamente não merecem acolhida, mormente porque, conforme já foi dito linhas
acima, existem inúmeras razões de modo a ensejar a plausibilidade dos tipos
descritos nos artigos 63 usque 74. Dentre elas têm destaque as
seguintes: a) os tipos penais encravados no CDC buscam defender os consumidores
diante das obrigações contidas no corpo do Código; b) antes mesmo da elaboração
do CDC já existiam normas repressivas inseridas no CPB, bem como em leis
esparsas as mais diversas, resultado da preocupação do legislador com a
incolumidade física e a vida do consumidor, além de outras normas alusivas ao
resguardo de práticas comerciais. Tais regras conformaram-se perfeitamente aos
comandos de caráter penal adotados no CDC, pois com elas se harmonizam pleno
modo; c) há de ser levando em consideração, conforme dito ao início deste
artigo, que a ausência de tipos penais específicos, congruentes com as normas
do CDC, estimulariam a impunidade, posto que as sanções de natureza
administrativa ou mesmo as indenizações civis seriam ineficazes à efetiva
proteção do hipossuficiente. A norma penal vista sob esse prisma busca dar
efetividade aos preceitos do CDC, em defesa da implementação da Política
Nacional das Relações de Consumo, que, induvidosamente, vem a constituir o
espírito da Lei 8.078/90; d) o receio decorrente da sujeição à sanção de
natureza penal faz com que o fornecedor que procede de má-fé deixe, em muitos
casos, de reincidir, ou mesmo relute em cometer o fato espécie descrito em lei.
A norma penal, portanto, reserva em determinadas situações um forte caráter
preventivo, ou didático-pedagógico, que, por esse motivo, se antepõe à
consecução do delito.
Não
bastassem os argumentos postos no parágrafo antecedente, há espaço para lembrar
que a responsabilidade civil independe daquela de natureza penal, conforme
assim prevê o Código Civil. Eis a razão que enseja o artigo 63 do Código de
Processo Penal prever que, Transitada em julgado a sentença condenatória,
poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do
dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros. A regra em
menção tem sentido prático quando, ajuizada a ação civil destinada à reparação
do dano, tenha sido ela sobrestada em decorrência da interposição da ação penal
correspondente. Note-se, ademais, que o preceito do art. 63 do CPP ajusta-se
perfeitamente ao comando anotado no artigo 91, inciso I, do Código Penal
Brasileiro: São efeitos da condenação:...tornar certa a obrigação de
indenizar o dano causado pelo crime.
Diante
destes breves argumentos, parece claro que o CDC jamais poderia prescindir das
normas penais nele incorporadas, isto porque, como referido por tantas vezes, a
essência do Código consiste em dar efetividade às regras destinadas à proteção
do indivíduo, enquanto inserido no âmbito das relações de consumo, sobretudo
porque, como demonstrou o Kantismo, o homem é fim, e não meio.
MEMÓRIA, Antonio Ricardo Brígido
Nunes. O CDC e os crimes contra as relações de consumo. Disponível em http://www.pgj.ce.gov.br/artigos/artigo67.htm.
Acesso em 22 de set. de 2006.