® BuscaLegis.ufsc.br





Apontamentos sobre o regime jurídico aplicável aos consumidores livres de energia elétrica





Taciana Fonseca Marques*





Introdução

Para entender o mecanismo das condições de fornecimento de energia elétrica aplicáveis aos consumidores finais, no Brasil, devemos ter em mente dois períodos distintos: o período anterior a 1995 e o período posterior àquele ano.

Além disso, considerar que o desenho das condições de fornecimento e formação das tarifas utilizados no Brasil, tradicionalmente, leva em conta os grupos e classes de consumidores de energia elétrica, divididos conforme a tensão de fornecimento (altas, médias e baixas tensões) e a atividade para qual a energia se destina (industrial, comercial, rural, residencial, serviço público e iluminação pública).

Pois bem. No primeiro período, i.e., aquele anterior a 1995, os consumidores de energia elétrica, independentemente da classe ou grupo, eram obrigatoriamente cativos, ou seja, só podiam comprar energia da concessionária de distribuição local. Assim, o fornecimento a todos os consumidores ocorria de acordo com as normas e condições ditadas pelo governo e estruturadas pelas próprias concessionárias de distribuição (até então, estatais). Ou seja, as condições de fornecimento de energia eram integralmente reguladas e impostas pelo governo.

Em 1995, em virtude da abertura da economia e a necessidade de criação de mecanismos de competição em meio à reestruturação do setor elétrico no Brasil, a Lei nº 9.074/95, regulamentada pelo Decreto n° 2003/96, introduziu a figura do consumidor livre, aquele que pode optar por contratar seu fornecimento, no todo ou em parte, com qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica no mesmo sistema interligado, desde que atendidos alguns requisitos fixados pela própria lei, conforme níveis de demanda[1] e/ou tensão[2].

Por outras palavras, consumidor livre é aquele que, atendidos os requisitos legais, tem liberdade de escolher seu fornecedor, em contrapartida ao consumidor cativo, que continuaria a ser atendido pela distribuidora local em condições reguladas pelo governo.

Neste sentido, a Lei 9.074/95 estabeleceu um processo de liberalização gradativa do mercado, de maneira que, num primeiro momento, apenas alguns consumidores passaram a ter condições de serem livres, i.e., condições específicas de compra e venda de energia elétrica e possibilidade de negociar os próprios preços, consideradas as cargas, a tensão, o tipo de fornecedor e condições dos contratos de fornecimento então vigentes. Com o passar do tempo, todos os consumidores de energia elétrica tornar-se-iam livres.

Naquela época, o universo de consumidores livres era pequeno, para, com o passar dos anos, se estender. Por esta razão, o artigo 15 da Lei 9.074 estipulou que, após o ano de 2003, o governo poderia reduzir os montantes de carga e tensão, chegando a um nível de liberalização que permitisse a todos os consumidores escolherem de quem comprar energia, negociando o seu próprio preço.

Todavia, em 2003, após a crise de abastecimento no setor elétrico brasileiro, deu-se uma nova reforma institucional e o poder público, por motivos de conveniência e oportunidade, optou por adiar a liberalização do mercado, obstruindo a redução dos montantes de carga e tensão.

Assim, atualmente, com o advento da 10.848/04 e do Decreto 5.163/04, o qual a regulamentou, o regime jurídico aplicável aos consumidores livres é semelhante àquele concebido em 1995.

O Decreto 5.163/04, de seu turno, introduziu um novo conceito, que é o do consumidor potencialmente livre, assim entendido aquele consumidor que, a despeito de cumprir os requisitos da Lei 9.074/95, é atendido de forma regulada.

Na prática, os consumidores de médio e grande porte, hoje cativos, são os consumidores potencialmente livres, vez que continuam sendo os únicos que reúnem condições de exercer o direito que a Lei 9.074/95 conferiu aos consumidores de se tornarem livres, também por quê, pelo seu montante de carga, têm mais poder de barganha junto às concessionárias distribuidoras.

Requisitos legais e regulamentares para contratação de energia

na modalidade consumidor livre

Conforme já apontamos, os requisitos legais e regulamentares para tornar-se um consumidor livre variam conforme níveis de demanda e/ou tensão.

Os primeiros alicerces para a contratação de energia nesta modalidade foram reconhecidos pelo artigo 15 da Lei 9.074/95, o qual estipulou que todos os consumidores com carga maior ou igual a 10 MW, atendidos em tensão maior ou igual a 69 kV, podem optar por contratar seu fornecimento, no todo ou em parte, com qualquer concessionário, permissionário e autorizado, no mesmo sistema interligado (após o ano 2000), ou produtor independente de energia elétrica (após 1995).

Diante deste contexto, em 1996, a Lei 9.427/96, ampliou o espectro de opções para que os consumidores pudessem tornar-se livres e determinou que os consumidores cuja carga seja maior ou igual a 500 kW podem comprar energia de PCHs (Pequenas Centrais Hidrelétricas), usinas de biomassa, eólica ou solar, celebrando contrato de compra e venda de energia diretamente com a usina.

Neste giro, a Resolução 264/98 da Agência Nacional de Energia Elétrica (“ANEEL”) estabeleceu a grade de regras e condições para contratação de energia pelos consumidores livres, contemplando os direitos inaugurados pelas Leis 9.074/95, 9.427/96 (conforme alteradas pela Lei 10.848/04 e pelo Decreto 5.163/04).

O quadro abaixo sintetiza os requisitos legais conforme os níveis de demanda e/ou tensão para a possibilidade de exercício da opção pela contratação livre de fornecimento de energia elétrica:

Data para exercer a opção


Modalidade de consumidor, conforme a carga/ tensão
Agentes dos quais pode contratar

Publicação da Lei 9.074/95 - 08/07/1995
Carga = 10MW

Tensão = 69 kV
Produtor independente de energia elétrica.

08/07/1995
Carga = 3 MW,

Qualquer Tensão, ligados após 08/07/1995
Qualquer concessionário, permissionário, autorizado de energia elétrica, do mesmo sistema interligado ou produtor independente.

Publicação da Lei 9.427/96 -26/12/1996
Carga = 500 kW

Qualquer Tensão
PCHs, usinas de biomassa, eólica ou solar.

3 anos após a Lei 9.074/95 - 08/07/1998
Carga = 10MW

Tensão = 69 kV, que estavam ligados em 08/07/1995
Qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica, do mesmo sistema interligado, ou produtor independente de energia elétrica.

Publicação da Resolução 264/98 – 13/08/1998
Consumidores desligados há mais de 12 meses (contados de 13/08/1998) e sem contrato de fornecimento vigente, que venham a ser ligados ou religados a partir de 13/08/1998, com demanda contratada = 3MW
Qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica, do mesmo sistema interligado.

5 anos após a publicação da Lei 9.074/95 – 08/07/2000
Carga = 3MW

Tensão = 69 kV
Qualquer concessionário, permissionário ou autorizado de energia elétrica, do mesmo sistema interligado.

A fim de assegurar o equilíbrio do mercado de energia como um todo e evitar uma perda significativa de consumidores cativos das distribuidoras, a ANEEL, por meio da Resolução nº 264/98 determinou, para os consumidores (i) com demanda maior ou igual a 10 MW e tensão maior ou igual a 69 kV, ou (ii) consumidores ligados após 08/07/1995, com demanda maior ou igual a 3MW, atendidos em qualquer tensão, ou (iii) ligados antes de 08/07/1995, com demanda maior ou igual a 3MW e tensão maior ou igual a 69kV (livres após 08 de julho de 2000); cujos contratos de fornecimento não contenham cláusulas de tempo determinado, que a opção por outro fornecedor somente será válida após o prazo de 36 meses a partir da data de manifestação formal ao concessionário, ou prazo inferior, mediante acordo entre as partes. Após esse prazo, tais consumidores poderão, ainda, optar por continuar sendo atendidos pelo mesmo concessionário de distribuição, dentro de novas condições e preços, que livremente negociados.

Se de um lado é verdade que o consumidor pode romper o contrato de exclusividade de fornecimento com a concessionária, de outro lado, também é verdade que este mesmo consumidor possa desejar voltar a ser atendido mediante tarifa regulada, tornando-se novamente um consumidor cativo. Caso exerça esta opção, i.e., retornar à tarifa regulada, deverá fazê-lo mediante aviso à concessionária, permissionária ou autorizada de distribuição local com a antecedência mínima de 5 anos, por força da Lei 10.848/04. Este prazo pode ser diminuído a critério da distribuidora[3].

Referida preocupação de nosso legislador teve o intento de prevenir a reentrada súbita de consumidores livres no mercado da distribuidora, sem que esta esteja preparada para receber uma excessiva demanda de energia, visto que tais consumidores livres são, via de regra, grandes consumidores de energia (eletrointensivos).

A par disso, note-se, a Resolução 264/98, determina que quando de eventual retorno ao antigo concessionário, de consumidor que tenha optado por outro fornecedor, o mesmo será considerado, para fins de negociação das condições de compra e venda de energia, como consumidor livre (artigo 4º).

A nosso ver, a Resolução 264/98 padece de atualização pela ANEEL. Veja, neste sentido, que, a Lei 10.848/04 vinculou o retorno do consumidor livre ao atendimento através de tarifa regulada. De outro giro, aquela resolução determina que o consumidor que retornar deverá ser considerado como consumidor livre. Com isso, foi instalado um verdadeiro contra-senso no regime jurídico aplicável aos consumidores livres no Brasil[4], o que pode representar um transtorno para as distribuidoras no momento de fixar o preço da energia que será fornecida a este ex-consumidor livre que desejar retornar ao seu mercado.

Principais aspectos envolvidos na

comercialização de energia por consumidores livres

A comercialização de energia pelos consumidores livres é realizada através de contratos bilaterais firmados entre o consumidor livre e um agente comercializador ou gerador. A liquidação destes contratos ocorre no ambiente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (a “CCEE”), organização que a partir da Lei 10.848/04, do Decreto nº 5.163/04 e da Convenção de Comercialização instituída pela Resolução Normativa ANEEL nº 109/2004, sucedeu ao Mercado Atacadista de Energia Elétrica – MAE.

A compreensão do mecanismo de comercialização de energia pelos consumidores livres envolve também a compreensão dos ambientes de contratação introduzidos com a Lei 10.848/04, a saber: Ambiente de Contratação Regulada e Ambiente de Contratação Livre.

No Ambiente de Contratação Regulada, a CCEE garante a contratação conjunta de todos os agentes distribuidores através de leilões, visando permitir economias de escala na compra de energia e a distribuição equilibrada dos riscos e benefícios da contratação. Os agentes da CCEE devem registrar os contratos, assim como os dados de medição dos pontos de consumo e geração. Neste diapasão, à CCEE é permitido contabilizar as diferenças entre o que foi produzido ou consumido e o que foi contratado. As diferenças positivas ou negativas são liquidadas ao Preço de Liquidação de Diferenças (PLD)[5].

Em verdade, os consumidores livres atuam no Ambiente de Contratação Livre e as novas regras de comercialização esculpidas com a Lei 10.848/04 e o Decreto 5.163/04, determinaram que a ANEEL e a CCEE aprovarão as quantidades de energia elétrica a serem contratadas para o atendimento de todas as necessidades do mercado nacional, incluídas as necessidades dos consumidores livres. Ou seja, os consumidores livres devem informar à CCEE a quantidade de energia necessária para atendimento a seu mercado ou sua carga e os contratos de compra e venda de energia firmados por estes consumidores devem ser registrados na CCEE.

Na prática, é sabido que a previsão de consumo não é tão fácil de ser mensurada, por não ser exata, de sorte que, poderão ocorrer diferenças entre o valor contratado junto ao agente vendedor e o valor efetivamente consumido. Tais diferenças são apuradas mensalmente e tratadas de acordo com o definido em cada contrato de fornecimento. Tem sido uma constante, nos contratos com consumidores livres, o tratamento deste assunto da seguinte maneira: (1) se o volume consumido for maior que o contratado, o consumidor livre pagará ao agente vendedor o maior valor entre o Valor Normativo (definido pela ANEEL) e o preço spot (definido pela CCEE) ou (2) se o volume consumido for menor que o previsto, o consumidor pagará pelo volume total contratado junto ao agente vendedor, recebendo do vendedor, referente à “sobra” de energia, o menor valor entre o Valor Normativo e o preço spot da CCEE.

Finalmente, ressaltamos que, por força da Lei 9.074/95, os consumidores livres e seus fornecedores têm assegurado o livre acesso aos sistemas de distribuição e transmissão de concessionário e permissionário de serviço público, mediante ressarcimento dos custos de conexão e de transporte envolvidos.

Por assim dizer, além dos valores pagos pela compra de energia propriamente dita, os consumidores livres devem pagar os custos do transporte e os encargos da conexão, melhor descritos abaixo.

Os custos de transporte são calculados com base em critérios fixados pela ANEEL, através da TUSD – Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição ou da TUST - Tarifa de Uso do Sistema de Transmissão, conforme o caso.

A TUSD é paga pelos consumidores livres pelo uso do sistema de distribuição da concessionária distribuidora à qual o consumidor livre esteja conectado, é reajustada anualmente, levando-se em conta a variação de seus componentes, o primeiro deles, a TUSD-Encargos, tarifa mensurada de acordo com o uso de energia elétrica, e o segundo deles, a TUSD-Serviço, tarifa mensurada de acordo com a demanda contratada.

De outra parte, a TUST é paga no caso de os consumidores livres conectarem-se diretamente na Rede Básica, no que pagarão pela utilização da Rede Básica[6]. Esta tarifa é reajustada anualmente pela ANEEL de acordo com (i) a inflação e (ii) as receitas anuais permitidas para as concessionárias de transmissão, determinadas pela ANEEL.

Os encargos de conexão, estabelecidos anualmente pela ANEEL, têm por objetivo cobrir despesas com as instalações de conexão e implantação de sistemas de medição. Estes encargos de conexão referem-se aos valores pagos aos agentes da transmissão, em função do uso das instalações destes, e são objeto de contrato entre eles e os consumidores livres.

Assim, analisados os custos de transporte e conexão, incidentes sobre a comercialização de energia pelos consumidores livres, nota-se que, diferentemente dos consumidores cativos, que recebem uma única fatura pelo consumo de energia, o consumidor livre pode receber várias faturas.

Destarte, a opção por tornar-se consumidor livre, embora sedutora, deve levar em consideração a aptidão pelo risco de contratar o seu fornecimento fora das tarifas reguladas e os aspectos descritos na parte final deste artigo.

(maio de 2005, artigo escrito com a colaboração de Bruno Gandolfo).
-----------------------------------------------------------------------------

[1] Entende-se por demanda: a média das potências elétricas ativas ou reativas, solicitadas ao sistema elétrico pela parcela da carga instalada em operação na unidade consumidora, durante um intervalo de tempo especificado. De outro lado, potência elétrica é a quantidade de energia elétrica solicitada na unidade de tempo, expressa em quilowatts (kW).

[2] É o padrão de diferença de potência elétrica entre dois pontos, para fins de transformação, em que a unidade consumidora é atendida. De acordo com este padrão, as unidades consumidoras são classificadas em Grupo A (alta tensão); A1, A2, A3, A4 e As (subterrâneo) e Grupo B (baixa tensão); B1, B2, B3. A sua unidade de medida é o Volt (V).

[3] Muito embora se cogite que todos os consumidores de energia tenham direito à continuidade na prestação dos serviços por parte das concessionárias de serviço público de distribuição (às quais está vedada a discriminação a quaisquer consumidores), deve-se levar em consideração que o retorno deve ocorrer de maneira que as distribuidoras não comprometam suas instalações e, conseqüentemente, seu mercado cativo, em virtude da reentrada deste consumidor eletrointensivo.

[4] A incoerência no setor elétrico brasileiro, infelizmente, não é característica apenas do regime jurídico dos consumidores livres, mas sim uma constante. Isso ocorre porque a reestruturação do setor elétrico é uma verdadeira colcha de retalhos, na qual as mudanças legislativas e regulatórias ocorrem ao léu. Em verdade, o sistema legal brasileiro dá brechas a todo tipo de alteração, seja por medida provisória, seja pela inclusão aleatória de artigos em normas fracionadas, dificultando a consolidação do regime jurídico aplicável ao setor.

[5] De acordo com a Resolução ANEEL nº 109/04, o PLD é o preço a ser divulgado pela CCEE, calculado antecipadamente, com periodicidade máxima semanal e com base no custo marginal de operação, limitado por preços mínimo e máximo, vigente para cada período de apuração e para cada Submercado, pelo qual é valorada a energia comercializada no Mercado de Curto Prazo (segmento da CCEE onde são comercializadas as diferenças entre os montantes de energia elétrica contratados e registrados pelos agentes da CCEE e os montantes de geração ou consumo efetivamente verificados e atribuídos aos respectivos agentes da CCEE.)

[6] Entende-se por Rede Básica o conjunto das conexões e instalações de transmissão de energia elétrica integrantes do Sistema Interligado Nacional, relacionadas no anexo I da Resolução 166/2000 da ANEEL e as que vierem a ser incluídas a qualquer tempo ou declaradas como tal pela ANEEL.



*Advogada em São Paulo. Integrante do grupo “SBDP Extra-Muros”. Ex-aluna da Escola de Formação.



Disponível em: http://www.sbdp.org.br/revista.php. Acesso em: 12 ago. 2006.