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Victor Carvalho Pinto
1 – Considerações Gerais
O
setor de saneamento1 encontra-se na interface entre diversas
políticas públicas de grande repercussão social, como meio ambiente, saúde e
desenvolvimento urbano. Os esgotos urbanos são a principal fonte poluidora dos
recursos hídricos, comprometendo seus outros possíveis usos, como navegação,
irrigação, pesca e lazer, além do próprio abastecimento de água dos Municípios
a jusante. O atendimento a doenças decorrentes de más condições sanitárias
absorve grande parte dos recursos públicos em saúde.
O
déficit de saneamento ocorre principalmente em assentamentos humanos
irregulares, como loteamentos clandestinos e favelas, onde também não há
provisão de outros serviços públicos, como recolhimento de lixo, segurança
pública, educação, saúde, etc. Tais assentamentos têm origem no acelerado
processo de urbanização por que passaram as principais cidades brasileiras.
Esses
assentamentos surgem sem qualquer infra-estrutura, exigindo do poder público
pesados investimentos, que estariam sob a responsabilidade do loteador, se
fosse obedecida a legalidade. Muitos situam-se a grande distância da área
urbanizada, o que aumenta ainda mais os custos de urbanização. A provisão de
abastecimento de água e coleta de esgotos apresenta enormes dificuldades, uma
vez que não há projeto urbanístico definido, nem segurança jurídica sobre a
situação fundiária. Mesmo nos casos em que é feita a regularização e a
urbanização, é comum a revenda dos terrenos valorizados e a ocupação de novas
áreas pelos beneficiários.
A
situação do saneamento básico é dramática, mas tem melhorado significativamente
nas últimas décadas, conforme a tabela seguinte:
Cobertura de redes de abastecimento de
água e coleta de esgotos no Brasil
Percentual de domicílios urbanos
atendidos
1970
|
1980
|
1990
|
2000
|
||||
Água
|
60,5
|
79,2
|
86,3
|
89,8
|
|||
Esgoto
|
22,2
|
37 |
47,9
|
56 |
|||
Fonte:
IBGE – Censos Demográficos.
O
déficit maior, no entanto, está relacionado ao tratamento dos esgotos, que é de
50% do coletado, correspondente a 22,6 milhões de domicílios, que lançam 11
milhões de metros cúbicos de efluentes por dia diretamente nos corpos d’água.
Também nesse campo, entretanto, têm havido melhorias significativas, uma vez
que o volume de esgotos tratados cresceu 38% entre 1998 e 2001.
2 – A Necessidade de Financiamento
Em
1998, o governo federal estimou a necessidade de investimentos para a
universalização dos serviços até 2010 em R$ 44,2 bilhões, assim distribuídos:
R$ 6,7 bilhões para abastecimento de água; R$ 20,2 bilhões para coleta de
esgotos; R$ 9,9 bilhões para tratamento de esgotos e R$ 7,4 bilhões para
reposição de ativos.
Esses
investimentos corresponderiam a aproximadamente 0,36% do PIB em termos anuais.
Trata-se de uma meta inatingível. A taxa de investimento, que foi de 0,34% do
PIB durante a década de 1970, caiu para 0,28% na década de 1980 e para 0,13% na
de 1990.
As
medidas de ajuste fiscal criaram fortes restrições ao financiamento do setor
público, atingindo fortemente a área do saneamento. A disponibilidade do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) para o saneamento no ano de 2003 é de
aproximadamente R$ 1,4 bilhão, mas as Resoluções nº 3.049 e 2.827 do Conselho
Monetário Nacional estabelecem limites bastante inferiores para o financiamento
de Estados e Municípios. Somente as empresas públicas não dependentes, ou seja,
financeiramente sustentáveis, conseguem enquadrar-se nos critérios vigentes.
Apenas a Sabesp, a Caesb e a Sanepar, companhias de saneamento de São Paulo, do
Distrito Federal e do Paraná, respectivamente, atendem atualmente a esse
critério.
O
investimento federal nas demais unidades da federação passou a ser feito
basicamente com recursos orçamentários a fundo perdido. Entretanto, também
esses recursos têm sido atingidos pelas medidas de ajuste fiscal, notadamente
pelo contingenciamento das dotações orçamentárias.
3 – A Crise do Modelo Planasa
A
União passou a atuar na área do saneamento a partir da década de 1960, quando
foram criados o Banco Nacional da Habitação (BNH) e o FGTS. Uma política mais
incisiva só foi implantada na década de 1970, quando foi instituído o Plano
Nacional de Saneamento (Planasa)2.
O
Planasa definiu o modelo institucional que ainda hoje é dominante no setor. Os
Estados constituíram empresas públicas ou sociedades de economia mista
(Companhias Estaduais de Saneamento Básico – CESBs), que passaram a prestar o
serviço nos Municípios, mediante a celebração de contratos de concessão. Este
modelo foi induzido pela União por meio dos critérios para destinação dos
financiamentos do FGTS, que foram alocados exclusivamente às empresas
estaduais. A prestação por empresas estaduais abrangeu aproximadamente 75% dos
Municípios.
Os
contratos de concessão entre as empresas estaduais e os Municípios são muito
vagos. Não há normas sobre a estrutura tarifária ou sobre as obrigações da
empresa. Na prática, o serviço é prestado como se fosse de competência
estadual, inexistindo qualquer regulação municipal. A estrutura tarifária é a
mesma em todos os Municípios de cada Estado, não se levando em consideração os
custos reais do serviço. Também não há qualquer definição sobre os bens
reversíveis3 ou fórmula para o cálculo de sua amortização.
A
maior parte das atuais concessões foi celebrada pelo período de vigência de
trinta anos e encerram-se nos primeiros anos da atual década, momento em que os
Municípios deverão celebrar novos contratos.
O
Planasa entrou em crise na década de 1990, devido a uma série de fatores: final
do período de carência dos financiamentos feitos anteriormente; crise fiscal generalizada
em todos os níveis de governo; utilização das empresas como instrumento de
clientelismo e fisiologismo. Como resultado, verifica-se que a maior parte da
CESBs são ineficientes e deficitárias. É alto o índice de perdas, assim como o
desperdício por parte dos usuários. As tarifas não são suficientes para
financiar a expansão do serviço ou mesmo para a manutenção adequada da
infra-estrutura já existente.
Em
resposta a este quadro, uma alternativa de gestão para o setor passou a ser buscada
durante a década de 1990. Muitos Municípios têm optado por desvincular-se da
companhia estadual, na expectativa de poder oferecer serviços de melhor
qualidade a menores tarifas. O principal fator determinante dessa decisão é o
modelo de "subsídios cruzados" adotado pelas companhias estaduais. No
sistema atual, não há uma contabilidade separada para cada Município atendido.
Fixa-se uma tarifa homogênea para todo o Estado, que deveria cobrir todos os
custos existentes. Esta fórmula prejudica os Municípios que apresentam custos
menores. Em contrapartida, Municípios que não controlam seu processo de
urbanização, tolerando a formação de loteamentos clandestinos distantes da
malha urbana ou próximos aos mananciais de água potável, são subsidiados e
pagam uma tarifa insuficiente para financiar os custos de provisão dos
serviços.
Alguns
Municípios criaram órgãos próprios para a gestão do saneamento, que podem
assumir a forma de departamentos da administração direta, ou de autarquias. O
principal estímulo nesse sentido é a imunidade tributária atribuída
constitucionalmente a essas pessoas de direito público. O inconveniente é a
adoção do regime jurídico de direito público, que é muito mais rigoroso que o
de direito privado, a atividades de caráter industrial como são o abastecimento
de água e o esgotamento sanitário.
Outros
Municípios fizeram concessões para a iniciativa privada, após o término da
concessão à CESB. Tal mudança tem sido acompanhada de freqüentes conflitos com
as empresas estaduais, que exigem indenizações pelos investimentos realizados.
Os
problemas são mais graves nas regiões metropolitanas, onde as cidades se
encontram conurbadas e os Municípios são servidos por redes de distribuição
comum, criadas pelas companhias estaduais. Em alguns casos, a distribuição de
água e a coleta de esgotos é municipal, mas a captação de água e destinação
final do esgoto é estadual. O usuário é cliente do Município, que deveria pagar
ao Estado pela água recebida e pelo esgoto recolhido. Alguns Municípios não
pagam à companhia estadual, que acaba arcando com o prejuízo. Nas regiões
metropolitanas, o conflito diz respeito à própria titularidade do serviço, que
alguns Estados reivindicam.
Também
têm surgido problemas nos Municípios que concederam o serviço à iniciativa
privada. Alguns realizaram concessões onerosas, priorizando a arrecadação de
recursos para o erário. Como resultado, são aumentadas as tarifas e reduzidos
os investimentos necessários para a universalização do acesso. Outros romperam
unilateralmente os contratos celebrados, em prejuízo da empresa concessionária.
Outros, ainda, concederam revisões tarifárias em benefício da empresa, logo
após a assinatura do contrato de concessão. De todo modo, trata-se de experiência
ainda recente, cujos resultados ainda não podem ser plenamente aferidos.
No
que diz respeito às companhias estaduais, a tendência é de que elas passem a
competir com as empresas privadas pela prestação dos serviços. Alguns Estados
têm aberto seu capital, embora nenhum tenha alienado o controle.
4 – Potencial e Perigo da Concessão à
Iniciativa Privada
A
forma mais comum de participação de empresas privadas na prestação do
saneamento básico dá-se na forma de concessionária municipal, em substituição à
empresa estadual. Não é, portanto, pela aquisição de ações das atuais empresas
estaduais que o capital privado tem participado do setor de saneamento, mas
pela celebração de contratos de concessão diretamente com os Municípios, após
processo licitatório.
O
sucesso de qualquer modelo de concessão à iniciativa privada dependerá da
estrutura tarifária adotada e do aparato regulatório que a aplicará.
O
modelo tradicional estabelece uma tarifa suficiente para remunerar os custos da
empresa, acrescidos de uma taxa de retorno pré-estabelecida. Ele apresenta o
inconveniente de desestimular a busca da eficiência e a redução dos custos, uma
vez que essas metas não afetam a remuneração do empresário.
A
principal alternativa a esse método é o de price cap (preço máximo), que
define uma tarifa máxima por um prazo médio (5 anos, por exemplo), permitindo
que o concessionário retenha para si os ganhos de produtividade alcançados
durante o período. Ao final do prazo, é feita uma revisão tarifária, em que se
fixa uma nova tarifa, com base no desempenho da empresa e nos investimentos que
ela será obrigada a realizar. A vantagem desse método consiste no estímulo que
ele traz para a eficiência da empresa. Ele só é viável, no entanto, se houver
uma firme fiscalização sobre a empresa no que diz respeito à qualidade dos
serviços, uma vez que esta pode ser sacrificada, com o objetivo de reduzir
custos.
Outros
métodos podem ser ainda mais eficientes, embora ainda não tenham sido
amplamente adotados. Um exemplo é o da receita máxima, pelo qual se estabelece
o quanto poderá ser arrecadado de todos os usuários, mas não se fixa uma tarifa
máxima. A empresa tem a liberdade para diferenciar a tarifa conforme o custo de
provisão a cada segmento de usuários, o que contribui para desestimular a
urbanização de terrenos inadequados.
O
edital de licitação pode prever uma série de obrigações de investimento por
parte da empresa prestadora, seja para melhorar a qualidade do serviço, seja
para expandi-lo. A empresa teria melhores condições de assumir financiamentos
de longo prazo, uma vez que ela não estaria sujeita às restrições de
endividamento vigentes para o setor público. Em contrapartida, faz-se necessário
instituir um ambiente regulatório confiável, que assegure ao empresário o
retorno dos investimentos realizados, mediante o recebimento de tarifas dos
usuários.
Tal
estabilidade jurídica choca-se, no entanto, com alguns conceitos estabelecidos de
direito administrativo e com a tradição política brasileira. No primeiro
aspecto admite-se a alteração unilateral do contrato de concessão por parte da
Administração, desde que sejam posteriormente ressarcidos os prejuízos do
concessionário, de tal modo a manter o equilíbrio econômico-financeiro do
contrato. Quanto ao segundo aspecto, há uma forte tentação por parte da
comunidade política de reduzir as tarifas públicas, seja para angariar votos,
seja para conter a inflação. Tais incertezas refletem-se no processo
licitatório e resultam em propostas menos atraentes para o Poder Público, seja
no que diz respeito aos investimentos, seja no que diz respeito à tarifa.
O
sucesso de qualquer modelo depende, no entanto, da existência de uma estrutura
regulatória, que seja capaz de acompanhar os custos de prestação do serviço,
estabelecer padrões de qualidade, fiscalizar a empresa concessionária e
planejar os investimentos necessários.
A
criação de órgãos dessa natureza, que seriam verdadeiras agências reguladoras,
é um desafio gigantesco no setor de saneamento, consideradas a falta de
experiência na regulação do segmento e a pulverização dos titulares, que são
mais de 5.000 Municípios. No atual estágio da administração municipal, corre-se
o forte risco de captura das Prefeituras e Câmaras Municipais pelas empresas
privadas, a exemplo do que já vem ocorrendo no setor de trânsito. Estas
elaborariam tanto as leis quanto os editais de licitação e contratos de
concessão, cumprindo às autoridades meramente editar tais atos jurídicos.
O
atrativo para as Prefeituras seriam os recursos pagos pelas empresas, em
licitações decididas pelo maior preço. Esses recursos entrariam para o tesouro
municipal e poderiam ser gastos em projetos ou atividades de qualquer natureza.
Como resultado, seriam cobradas tarifas extorsivas, sem quaisquer investimentos
na melhoria da qualidade ou na expansão da rede.
5 – A Questão do Marco Regulatório
Cabe
aos Municípios, na qualidade de poder concedente, estabelecer as condições em
que o serviço terá de ser prestado pelo novo concessionário. Também é na esfera
local que se decide sobre a conveniência ou não de conceder os serviços à
iniciativa privada.
A
edição de uma lei federal sobre o assunto, limitando a margem de
discricionariedade das autoridades locais, teria por finalidade reduzir esse
risco regulatório, contribuindo para aumentar a atratividade desse segmento
para a iniciativa privada e, em decorrência, para ampliar a universalização do
serviço (* Ver Nota de Atualização do Editor).
Os
principais temas a serem equacionados para uma nova conformação do setor, são
os seguintes:
-
titularidade em regiões metropolitanas;
-
estrutura tarifária;
-
natureza tarifária ou tributária da cobrança pela coleta de esgotos;
-
necessidade ou não de realizar licitações, nos casos em que o Município
pretende manter a prestação pela empresa estadual;
-
possibilidade ou não de concessões onerosas;
-
critérios para a seleção de propostas dos licitantes;
-
divisão de responsabilidades pelo financiamento das redes de distribuição entre
loteadores e empresas prestadoras;
-
interface com o sistema de recursos hídricos;
-
natureza dos contratos entre empresas estaduais e Municípios, nos casos em que
a distribuição da água é municipal, mas a sua captação é estadual;
-
relação entre a expansão da rede e o ordenamento territorial do Município;
-
direitos e responsabilidades dos usuários.
6 – Conclusão
Há
uma tendência de ampliação da participação da iniciativa privada na prestação
dos serviço de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Essa participação
ocorre principalmente pela celebração de contratos de concessão de serviço
público com os Municípios, em substituição às companhias estaduais.
Na
ausência de órgãos fortes de regulação e fiscalização desses serviços, essas
concessões poderão ser usadas para arrecadar recursos para o caixa municipal no
curto prazo, o que resultará na implantação de monopólios privados desregulados
e conseqüentemente na ausência de expansão dos serviços e no aumento de
tarifas.
A
adoção de um adequado marco regulatório, mediante edição de uma lei federal
sobre o assunto, poderá, por outro lado, reduzir a insegurança jurídica
atualmente existente, o que contribuiria para aumentar a eficiência na gestão e
para aumentar os investimentos necessários para a universalização do acesso ao
saneamento básico.
Notas
1
O saneamento ambiental
abrange diversos elementos, dentre os quais se destacam: abastecimento de água,
coleta e tratamento de esgotos, drenagem, coleta e destinação final de resíduos
sólidos e controle de vetores transmissores de doenças. O presente texto
refere-se apenas aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário,
adotando, portanto, o termo "saneamento" em sentido restrito.
2
O Planasa foi
regulamentado pela Lei nº 6.528, de 11 de maio de 1978, e pelo Decreto nº
82.587, de 6 de novembro de 1978.
3
Bens reversíveis são
aqueles que são transferidos para o poder concedente ao final do contrato de
concessão, mediante indenização dos investimentos não amortizados ou
depreciados (art. 35, § 1º da Lei nº 8.987, de 1995, que dispõe sobre as
concessões de serviços públicos).
(*) Nota de atualização (do Editor)
O
Projeto de Lei do Senado nº 219/2006 (que estabelece diretrizes nacionais para
o saneamento básico e dá outras providências) foi aprovado, em dois turnos no
Senado Federal, em 12 de julho de 2006, seguindo agora para votação na Câmara
dos Deputados.
.
Redação final do projeto no Senado
PINTO, Victor Carvalho. A privatização do saneamento básico . Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1115, 21 jul. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8673>. Acesso em: 21 jul. 2006.