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A nova lei concursal e o papel dos agentes do Direito


Waldo Fazzio Júnior*



Quer dizer que, com as mudanças promovidas no direito concursal brasileiro pela nova lei de recuperações e falência, os agentes do Direito (advogados, juízes, promotores de justiça, procuradores estatais) precisam experimentar uma reengenharia teórica e prática? A LRE implica na alteração de condutas profissionais e diretrizes de assessoramento jurídico empresarial?


Essas indagações suportam, senão seu próprio questionamento como dúvidas, diversificadas possibilidades de argumentação e, no mesmo grau, variadas respostas.


Em princípio, o molde da legislação concursal que se introduz é diferente do padrão estruturado pelo binômio falência-concordata. O fio condutor da Lei nº 11.101 é construtivo: cifra-se na primazia da recuperação empresarial sobre a inexorabilidade da falência. Na mesma medida em que coloca como objetivo superior o soerguimento da empresa viável, elimina do reduto da falência as possibilidades de composições. Em outras palavras, a LRE visa recuperar empreendimentos produtivos e, simultaneamente, almeja eliminar do mercado empresa inviáveis. É condescendente com a prevenção da falência, mas implacável quando esta se materializa.


Na vigência do que poderíamos apelidar "esquema concursal antigo", a concordata preventiva pouco prevenia, transformando-se, a se acreditar nas estatísticas, numa espécie de expediente procrastinador do exício empresarial, quando não se prestava a proporcionar entabulações mais interessantes para o empresário devedor do que para a própria empresa, como organização social da atividade econômica.


Por seu turno, a falência era um palco de negociações (quando o ativo arrecadado era promissor), que entremostrava, ainda, algumas possibilidades de composições inoficiosas que poderiam culminar em saudáveis concordatas suspensivas ou perdões parciais de débitos ante a perspectiva da perda total. No plano social, a empresa propriamente dita não era a primeira preocupação. Daí o relativo desafogo do empresário e a ruína da empresa, com todas as conseqüências que a vida forense demonstra: desemprego, desabastecimento, prejuízo público, crimes sem sanção etc.


Dizendo pouco, todos perdiam com a falência, ninguém ganhava com a concordata e os agentes do Direito desempenhavam ora o papel de assessores do algoz, ora a consultoria jurídica do moribundo mercantil.


Nessa perspectiva, o arcabouço teórico e prático dos agentes do Direito, na área empresarial (os misteres jurídicos são práticas teóricas), tende a se modificar. O que se pretende dizer é que o ponto de partida do raciocínio concursal não se confina mais à uma alternativa delgada entre as possibilidades de uma concordata incerta e o desfecho indesejável da falência punitiva.


A nova lei concursal aproxima os agentes do Direito. Os patronos da empresa devedora e dos credores, os defensores dos empregados, os procuradores do interesse público, os fiscais da lei e os pretores – todos os agentes jurídicos envolvidos – têm em comum a necessidade de equalizar as possibilidades recuperatórias da empresa em crise e os interesses particular e público. A falência, agora, uma vez decretada, traz a marca do point of no return. Os meios de recuperação são os inúmeros expedientes jurídicos previstos na LRE mais o que for possível, dependendo da criatividade de credores e devedores. A via extrajudicial da reestruturação empresarial, como uma súmula de negócios, oficializa a práxis das acordanças brancas, desde que lícitas.


Da atenta leitura da nova normação concursal verifica-se que uma certa solidariedade teleológica parece aproximar os agentes do Direito imbricados nas questões derivadas da insolvência empresarial. A LRE, de certo modo, impõe essa fraternidade finalística que longe de ser pós-moderna, remonta ao antigo brocardo forense que recomendava as vantagens de um bom acordo sobre a má demanda. Se os patronos de credores, empregados e devedor lograrem convergir nas recuperações propostas pela LRE, as possibilidades de êxito plurilateral são mais excitantes do que o egoísmo do tudo ou nada pode proporcionar.


Os magistrados têm influência muito menor na problemática concursal das empresas, mas podem desempenhar papel inestimável na condução dos processos de recuperação a seu cargo, se imbuídos dessa ideologia da recuperação empresarial em favor do crédito, do mercado e da sociedade. Os espaços para essa práxis estão confortados na LRE, estendendo-se aos representantes das Fazendas Públicas e do Ministério Público. O sentido compositivo ganha proeminência sobre o confronto improfícuo entre credores, e entre estes e o empresário em crise.


Para resumir, a nova lei concursal impõe aos profissionais das carreiras jurídicas o redimensionamento da relação custo-benefício na defesa das pretensões de seus patrocinados, o assessoramento jurídico voltado para o compartilhamento dos interesses comuns, o conhecimento dos meandros administrativos da empresa em crise financeira, a visão realista do mercado, o direcionamento prioritário de sua atividade aos procedimentos extrajudiciais e, sobretudo, o aprimoramento de seus conhecimentos jurídicos pela integração com os demais setores responsáveis pela gestão empresarial.


Se as possibilidades de recuperação empresarial são, agora, concretas; se as empresas em crise não são mais redutos indevassáveis; se a falência deixou de ser arrimo de cobranças e se tornou conjuntura irremediável; se as chances de negociação preventiva se ampliaram; enfim, se as regras do jogo estão mais dúcteis, o espírito zetético se afirma como opção prioritária sobre as intransigências dogmáticas, e aos juristas é franqueada a oportunidade de se imiscuir, construtivamente, nos mistérios das complexas relações empresariais.


Com a nova lei concursal, o mínimo que se pode dizer é que a instância jurídica se afirma, como mediadora entre as instâncias econômica e social, na formação social brasileira. Com isso, valoriza-se o profissional do Direito, não o singelo operador de normas, mas o agente qualificado de uma integração de interesses capaz de superar percalços e cimentar os vínculos, nem sempre consistentes, entre empresa e sociedade.



*advogado e professor em Bauru (SP), autor de livros de Direito Comercial



Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7496

Acesso no dia 31/11/05