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O MINISTÉRIO PÚBLICO COMO HIPOSSUFICIENTE PARA EFEITOS DE INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NAS AÇÕES COLETIVAS DE DEFESA DO CONSUMIDOR

 

 

 

 

AUTOR: CLÁUDIO BRAGA LIMA

PROMOTOR DE JUSTIÇA DO MPGO

COORDENADOR DO CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DE DEFESA DO CONSUMIDOR, USUÁRIOS DOS SERVIÇOS PÚBLICOS E CRIMES CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO.

 

 

 

 

 

RESUMO:

 

O Ministério Público pode ser considerado hipossuficiente para efeitos da inversão do ônus da prova em matérias de natureza consumerista. A hipossuficiência de que fala o CDC não se restringe à econômica ou jurídica, mas também a de obter informações necessárias à solução das questões envolvidas. A inversão do ônus da prova não pode ser entendida apenas como o encargo do réu de adiantar as despesas do processo, mas sim o ônus de tornar acessíveis todas as provas necessárias à compreensão dos fatos, sob pena de não o fazendo, fazer prova contrária a sua defesa. Na ausência, ou na falta de presteza ou isenção de perícias idôneas, o Ministério Público pode não ter meios técnicos suficientes para comprovar determinadas práticas complexas, já que muitas vezes o réu tem o monopólio da tecnologia e das informações sobre a real situação dos serviços ou produtos que ele próprio fornece, e que certamente omitirá em proveito próprio.

 

SUMÁRIO:

 

A formulação do presente estudo surgiu em decorrência de um caso concreto, uma ação coletiva proposta pelo Ministério Público contra a Brasil Telecom, concessionária do serviço público de telefonia fixa comutada no município de Cavalcante, em Goiás. Conforme constatou a Promotora de Justiça da Comarca, os serviços de telefonia fixa naquele município apresentavam péssima qualidade, sendo constantes os ruídos e interferências, que constantemente prejudicavam a comunicação local. Assim foi proposta uma ação coletiva com pedido de condenação na obrigação de melhorar os serviços prestados naquela localidade.

 

A empresa contestou o feito argumentando que cumpria todas as determinações da ANATEL – Agência Nacional de Telecomunicações, órgão federal responsável pela fiscalização do serviço público, utilizando-se de termos técnicos específicos e incompreensíveis aos leigos em telecomunicações.

No entanto, é patente a falta de estrutura da ANATEL para cumprir o seu papel fiscalizador. É até mesmo duvidosa a isenção da ANATEL na defesa dos consumidores dos serviços de telefonia, sendo comum ler nos noticiários que a agência sempre toma parte a favor das concessionárias nas questões de direitos dos seus consumidores, em uma clara posição de reafirmação de uma sistema que se sabe defasado. Tal conduta é até mesmo lógica, pois o reconhecimento da falência do sistema operacional de telefonia levaria à confissão da sua própria omissão.

 

Pois bem, diante desta situação, a seguinte preocupação: Como provar um fato reconhecidamente notório no município, qual seja, a péssima qualidade do serviço de telefonia, se a própria concessionária detém todas as informações técnicas sobre o serviço que presta, e por outro lado, a ANATEL não tem estrutura suficiente, ou mesmo a isenção que se espera, para apontar as deficiências necessárias ao julgamento da lide ?

 

Portanto, sem uma intervenção eficiente da ANATEL, no sentido de esclarecer a real situação do sistema operado pela concessionária no município, o Ministério Público jamais chegaria a um bom grau de certeza, restando ao parquet somente a inversão do ônus da prova para que a Brasil Telecom seja obrigada a abrir mão de suas informações, sob pena de sua omissão resultar em prejuízo próprio.

 

EXPOSIÇÃO :

 

O artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece ser direito básico do consumidor “a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando a critério do juiz, for verossímel a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência”.

Ressalte-se inicialmente que não concordamos com doutrina que vincula o conceito de verossimilhança à vulnerabilidade técnica do consumidor, renegando a hipossuficiência legal apenas aos aspectos econômicos (Vide a respeito JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO, in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, FU, 8ª edição, pg. 144/151).

 

Se ainda não há um consenso sobre o alcance das condições impostas pelo referido artigo, é certo que a jurisprudência pátria está longe de limitar a caracterização da hipossuficiência apenas com base em critérios econômicos. Prova maior deste fato é o reconhecimento da divergência entre a terceira e a quarta turmas do STJ, como adiante comentado. Ademais, não nos parece certo igualar o conceito de hipossuficiência processual ao de assistência judiciária, pois os momentos processuais são completamente distintos, conforme a seguir demonstrado.

 

Assim, para o reconhecimento do Ministério Público como hipossuficiente nos termos do Código de Defesa do Consumidor, dois pressupostos são necessários:

 

1) Que a hipossuficiência preconizada pela lei não se restrinja ao aspecto econômico.

 

Com efeito, a hipossuficiência de que fala o Código do Consumidor não é a meramente econômica, mas também a de obter informações ou outros meios disponíveis a respeito do serviço ou do produto fornecido.

O julgador deverá se valer da inversão do ônus da prova em favor do Ministério Público sempre que o parquet não tiver meios técnicos próprios ou através de terceiros capacitados, que possam emitir perícias idôneas e isentas, de forma a comprovar a prática abusiva elencada na inicial, em casos em que a empresa ré for a única detentora da tecnologia e das informações necessárias para se chegar a uma conclusão a respeito da real situação do serviço ou do produto que ela própria fornece, e que certamente omitirá em proveito próprio.

O Superior Tribunal de Justiça já entendeu que a Associação de Defesa da Saúde do Fumante – ADESF pode obter a inversão do ônus da prova em relação aos prejuízos causados pela nicotina, em processo movido contra a Philips Morris, verbis:

 

PROCESSUAL CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. DEFESA DOS INTERESSES OU DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. DISPENSA DE PRÉ-CONSTITUIÇÃO PELO MENOS HÁ UM ANO. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE DA AÇÃO COLETIVA SUPERADA.

.....

A regra contida no art. 6º/VII do Código de Defesa do Consumidor, que cogita da inversão do ônus da prova, tem a motivação de igualar as partes que ocupam posições não-isonômicas, sendo nitidamente posta a favor do consumidor, cujo acionamento fica a critério do juiz sempre que houver verossimilhança na alegação ou quando o consumidor for hipossuficiente, segundo as regras ordinárias da experiência, por isso mesmo que exige do magistrado, quando de sua aplicação, uma aguçada sensibilidade quanto à realidade mais ampla onde está contido o objeto da prova cuja inversão vai operar-se. Hipótese em que a ré/recorrente está muito mais apta a provar que a nicotina não causa dependência que a autora/recorrida provar que ela causa. (Resp 140097/ SP ; Relator Ministro CESAR ASFOR ROCHA, DJ 11.09.2000 p. 252 RDR vol. 18 p. 342RSTJ vol. 136 p. 333RT vol. 785 p. 184.)

 

Cabe transcrever trecho bastante ilustrativo do eminente relator, verbis:

“Contudo, são muitos os casos em que um litigante sofre limitações para produzir elementos de convicção para dar respaldo ao que afirma.

Daí que a regra da inversão do ônus é uma chave a permitir ao litigante hipossuficiente a abertura de um das principais portas a lhe dar acesso à Justiça.

E essa hipossuficiência não diz com aspecto de natureza econômica, mas com o monopólio da informação já que evidentemente o consumidor, em muitas hipóteses, não tem acesso às informações sobre as quais recairia todo o seu esforço para a prova dos fatos alegados, na lição do aplaudido Professor JOSÉ ROGÉRIO CRUZ E TUCCI (RT 671/35, conforme lição colacionada pelo recorrente.

A não ser assim, bastaria que o CDC invertesse o ônus financeiro da produção da prova, carreando ao fornecedor apenas o encargo de suportar as despesas, não se denotando do Código de Defesa do Consumidor o seu propósito de, com a inversão, beneficiar o consumidor pobre, mas sim o consumidor em geral, como sujeito vulnerável nas relações de consumo, como destaca com acuidade, ANTONIO GIDI (in, “Direito do Consumidor”, ed. RT, 1995, Vol. 13, p. 35), também lembrado pela ré(grifos no original).

 

Como bem observado pelo julgado em tela, determinadas informações necessárias para se julgar uma lide, dependendo do grau de complexidade da relação envolvida, ficam restritas ao conhecimento da própria ré, que certamente delas não fará uso em prejuízo próprio.

 

2) Que o momento processual para a aplicação do ônus da prova seja o julgamento da causa.

 

O momento correto para a aplicação da regra da inversão do ônus da prova é o julgamento da causa, e não o saneamento, quando o juiz defere ou não as provas requeridas pelas partes. É que somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará o juiz habilitado a afirmar se há verossimilhança da alegação do consumidor ou a sua hipossuficiência em relação aos meios de prova que eram necessários para provar a demanda. Como é livre a aferição das provas, a inversão do ônus de provar pode ser inclusive reconhecida de ofício pelo juiz.

 

Assim, a não produção das provas essenciais ao conhecimento da demanda acarretará prejuízo ao réu se o juiz reconhecer, segundo as regras ordinárias de experiência, que o autor não tinhas meios técnicos, jurídicos ou econômicos de obter a prova necessária

A boa doutrina leciona que o momento correto para a aplicação da regra da inversão do ônus da prova é da fato o julgamento da causa.

Neste sentido, KAZUO WATANABE, in “Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto”, Forense Universitária, 8ª edição, pag. 797:

 

“Efetivamente, somente após a instrução do feito, no momento da valoração das provas, estará o juiz habilitado a afirmar se existe ou não situação non liquet, sendo caso ou não, consequentemente, de inversão do ônus da prova. Dizê-lo em momento anterior será o mesmo que proceder ao prejulgamento da causa, o que é de todo inadmissível”.

 

Este também é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que ficou materializado na Apelação Civel nº 255.461-2/6, reator Des. ALDO MAGALHÃES, j. 6.4.95, conforme trecho do acórdão abaixo transcrito:

 

preceito legal algum determina que o citado art. 6º, VIII, só pode ser aplicado quando o juiz, antes do início da instrução probatória, tenha decidido ser o caso de sua incidência. ... se a inversão do ônus probatório, no caso do art. 6º, VIII, depende da verossimilhança da alegação do consumidor ou de sua hipossuficiência, força entender que o juiz não pode decidir antecipadamente a respeito, posto que as citadas circunstâncias fáticas ao menos na maioria dos casos dependem da elucidação probatória, não comportando, portanto, decisão antecipada”.

 

Da mesma forma o Superior Tribunal de Justiça, verbis:

 

Serviços de mecânica. Código de Defesa do Consumidor. Artigos 6°, VI, e 39, VI. Precedentes. 1. A inversão do ônus da prova, como já decidiu a Terceira Turma, está no contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ficando subordinada ao "'critério do juiz, quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências' (art. 6°, VIII). Isso quer dizer que não é automática a inversão do ônus da prova. Ela depende de circunstâncias concretas que serão apuradas pelo juiz no contexto da 'facilitação da defesa' dos direitos do consumidor (REsp nº 122.505-SP, da minha relatoria, DJ de 24/8/98).” (REsp 332869/RJ; Relator Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES, DJ 02.09.2002 p. 184 - RSTJ vol. 165 p. 327)

 

Na verdade, o Superior Tribunal de Justiça em breve decidirá se os bancos estão obrigados a adiantar o pagamento de perícia pedida pelo consumidor, como consequência do princípio da inversão do ônus da prova, no julgamento dos embargos de divergência interpostos no Recurso Especial nº 542281, a ser realizado pela sua Segunda Seção. O recurso tornou-se cabível na medida em que as duas turmas que compõe a Segunda Seção do STJ estão dando entendimento diverso sobre a matéria.

 

A Terceira Turma do STJ vem firmando jurisprudência no sentido de que a inversão do ônus da prova não tem o condão de obrigar a parte contrária a arcar com as custas da prova requerida pelo consumidor, sofrendo no entanto com as consequências advindas da sua não produção.

 

Já a Quarta Turma entende que a inversão do ônus da prova tem o alcance de transferir ao réu o ônus de antecipar as despesas que o autor não pode suportar, quando indispensável a realização da perícia.

 

A nosso ver, a posição mais consistente e que deverá prevalecer é a exarada pela Terceira Turma do STJ. Caso contrário será o reconhecimento de que a hipossuficiência se limita à impossibilidade econômica do autor em produzir provas.

 

CONCLUSÃO:

 

Em conclusão temos que, entendendo-se que (1) a hipossuficiência preconizada pelo Código de Defesa do Consumidor para efeitos de aplicação da regra da inversão do ônus da prova, não se restringe à mera debilidade econômica da parte; e (2) que o momento processual adequado para a aplicação deste princípio é o do julgamento da causa, quando o juiz releva as provas produzidas (ou não) pelas partes; podemos afirmar que o Ministério Público pode ser considerado como hipossuficiente para efeitos de aplicação do princípio da inversão do ônus da prova nas ações coletivas de consumo quando, no decorrer da instrução probatória, não tiver meios técnicos próprios ou através de terceiros capacitados, que comprovem a prática abusiva elencada na inicial, em casos em que a ré for a única detentora da tecnologia e das informações necessárias para se chegar a uma conclusão a respeito da real situação do serviço ou produto que ela própria fornece, e que omite em proveito próprio.

 

Em sentido contrário, se restringirmos a hipossuficiência como a falta de condições econômicas da parte autora para custear a produção de provas necessárias à compreensão da lide, e por consequência entendermos que a inversão do ônus da prova deve ser aferida no momento da produção das provas, o Ministério Público jamais será hipossuficiente, pois sempre lhe restará capacidade econômica e jurídica para defender os interesses coletivos dos consumidores substituídos. Até mesmo a capacidade técnica o Ministério Público deterá em tese, caso a inversão do ônus da prova seja aplicada pelo juiz ao deferir as provas requeridas pelas partes, pois sempre nesta fase uma perícia em abstrato lhe restará.

 

 

 

Retirado de: http://www.mp.go.gov.br