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A
Legitimação do Ministério Público na Tutela dos Interesses ou Direitos
Individuais Homogêneos
Tycho
Brahe Fernandes* e Angela Silva Guimarães **
SUMÁRIO:
1. Introdução - 2. A origem das ações coletivas no Brasil - 3. Dos Interesses
ou Direitos Individuais Homogêneos - 3.1. Da Lei e da Doutrina - 4. A
legitimação do Ministério Público frente à tutela dos Interesses ou Direitos
Individuais Homogêneos - 4.1. O papel do Ministério Público no Estado
Democrático e de Direito - 4.2. Como vêem os Tribunais a legitimidade
Ministerial - 5. Da posição dos autores - 5.1. Do conceito de Interesses ou
Direitos Individuais Homogêneos - 5.2. Dos Interesses ou Direitos Individuais
Homogêneos como Direitos Indisponíveis - 5.3. Dos Interesses ou Direitos
Individuais Homogêneos em si - 5.4. Da legitimação propriamente dita - 6.
Conclusões
1.
INTRODUÇÃO
O
presente trabalho tem como objetivo pesquisar o conceito de interesses ou
direitos individuais homogêneos, que foi inserido na esfera dos interesses
metaindividuais pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), e que
vem despertando muita polêmica na doutrina e jurisprudência, até mesmo com
relação à legitimidade do Ministério Público para propor as ações judiciais
destinadas à tutela de tais interesses, tudo isto em função do raciocínio
individualista ainda presente na consciência de nossos operadores do direito e
da real dificuldade que sempre se tem na análise de um novo tema apresentado.
2. A
ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS NO BRASIL
O
ordenamento jurídico vigente em nosso país teve sua formação baseada nos
princípios do direito continental europeu (romano-germânico), e, por via de
conseqüência, o processo civil foi organizado para atender às demandas de cunho
estritamente individuais.
Até pouco
tempo atrás não havia na legislação nacional grande preocupação com a tutela
dos interesses difusos e coletivos. A necessidade de estar o direito subjetivo
sempre referido a um titular determinado, ou ao menos determinável, impediu por
muito tempo que os "interesses" pertinentes a toda uma coletividade e
a cada um dos membros dessa mesma coletividade, como, por exemplo, os
"interesses" ao meio ambiente, à saúde, à educação, à qualidade de
vida, etc., pudessem ser havidos por juridicamente protegíveis. Era a estreiteza
da concepção tradicional do direito subjetivo, marcada profundamente pelo
liberalismo individualista que obstava a essa tutela jurídica.
Em
princípio, considerava-se "parte" no processo somente aquele que se
apresentasse como sendo o titular de um interesse juridicamente protegido,
sendo vedado pleitear em juízo, em nome próprio, direito alheio, salvo
autorização expressa da lei.
Assim,
permitindo a substituição processual, tivemos a Lei n° 4.591/64 (Condomínios e
Incorporações), que em seu art. 21, parágrafo único, autoriza qualquer
condômino, na omissão do síndico, a promover, em benefício do condomínio, ação
para cumprimento de deveres estipulados na convenção; a Lei n° 6.404/76
(Sociedades Anônimas), que em seu artigo 159, parágrafo 3°, permite ao acionista
promover, em favor da sociedade, ação de responsabilidade contra o
administrador que causou prejuízos ao patrimônio social, entre outros exemplos.
Pode-se
dizer que a primeira tutela jurisdicional de interesses difusos deu-se com a
promulgação da Lei n° 4.717/65 (Ação Popular), que possibilitou a qualquer
cidadão, no gozo de seus direitos cívicos e políticos, obter a invalidação dos
atos ou contratos administrativos ilegais e lesivos ao patrimônio público.
Mais
tarde, tivemos a Lei n° 6.938/81 tratando de uma ação civil de natureza
pública, pois dispunha em seu artigo 14, parágrafo 1 °, que "sem obstar a
aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado,
independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos
causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O
Ministério Público da União e dos Estados terão legitimidade para propor ação
de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio
ambiente".
Entretanto,
a grande e significativa mudança ocorreu com a publicação da Lei n° 7.347/85,
que disciplinou a Ação Civil Pública por danos causados ao meio ambiente, ao
consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e
paisagístico.
Aproveitando
a onda de evolução no sistema processual, a Constituição Federal de 1988 trouxe
ao ordenamento jurídico brasileiro o instituto do Mandado de Segurança
Coletivo.
Em 1989,
entrou em vigor a Lei n° 7.853 para tutelar os interesses coletivos e difusos
dos deficientes físicos.
Finalmente,
em 1990 foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor que, com seu espírito
inovador e moderno, valorizou o rigor técnico-científico na seara do direito
processual visando alcançar a efetiva concretização dos direitos dos
consumidores, seja a título singular, seja a título coletivo.
3. DOS
INTERESSES OU DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
A
preocupação do legislador pela instrumentalidade substancial e pela maior
efetividade do processo, ante a nova realidade sócio-econômica que vivenciamos
com a presença da economia de massa, levou-o a concretizar, a por em prática um
dos maiores anseios da sociedade: a proteção dos conflitos de natureza coletiva
nascidos das relações geradas pela economia de massa, de forma totalmente
desgarrada da nossa tradição individualista no tratamento das questões
processuais.
Mas o
legislador foi mais além e juntamente com a categoria dos interesses e direitos
difusos e coletivos, inseriu no direito brasileiro uma nova categoria de
interesses, qual seja a dos interesses individuais homogêneos. Trata-se de um
instrumento processual criado para tutelar coletivamente direitos individuais.
Foi um
passo muito importante no caminho evolutivo das ações coletivas iniciado pela
Lei da Ação Civil Pública, a qual somente fazia referência à defesa dos
interesses difusos e coletivos voltados à proteção dos consumidores e do
ambiente, em sentido lato, na dimensão da indivisibilidade do objeto.
A
doutrina tem considerado como origem dos interesses ou direitos individuais
homogêneos em nosso direito positivo o advento da Lei n° 7.913/89, que trata da
ação civil pública proposta pelo Ministério Público para reparação dos danos
causados aos investidores no mercado de valores mobiliários.
Entretanto,
como se trata de uma legislação específica dos investidores no mercado de
valores mobiliários, tem-se que foi a partir da publicação da Lei n° 8.078/90,
que os direitos subjetivos individuais puderam ser defendidos isoladamente, na
sua forma clássica, ou agrupados em demandas coletivas, desde que presente a
homogeneidade.
A ação
civil pública para a defesa desses interesses assemelha-se, em alguns aspectos,
com a conhecida class action for damages do sistema americano do common law,
por intermédio da qual um ou mais membros da classe podem demandar, ou serem
demandados, como representantes, no interesse de todos, em face de um prejuízo
causado por uma empresa a um certo número de consumidores.
No
entanto, a diferença entre a class action e a ação civil pública para defesa
dos interesses individuais homogêneos reside no fato de que enquanto na class
action qualquer interessado pode ingressar com a ação, representando os demais
e obrigando a todos a decisão, na ação civil pública para a tutela dos
interesses individuais homogêneos somente estão legitimados aqueles que estão
previstos no rol do artigo 82, do CDC, entre os quais não se inclui o lesado
individualmente, e no que diz respeito a extensão negativa da sentença e a
respectiva autoridade da coisa julgada suscetível de se formar no plano da ação
coletiva, não virá essa a afetar a esfera individual.
O
tratamento legislativo consagrador dos direitos individuais homogêneos tem em
si uma função estritamente teleológica, qual seja, a de propiciar uma maior
efetividade no acesso à justiça, tendo em vista a ineficácia dos meios até bem
pouco tempo atrás existentes no processo civil brasileiro, que como já dissemos
é de índole puramente individualista. Aliás, podemos dizer que a função
teleológica dos direitos individuais homogêneos é, em si, a mesma dos direitos
difusos e coletivos: propiciar uma maior efetividade no acesso à justiça,
considerando para tal as dificuldades relacionadas ao valor das custas
judiciais, às possibilidades econômico-financeira ou às dificuldades de ordem
educacional e cultural das partes e à lentidão dos processos, ocasionada pelas
demandas individualizadas que sobrecarregam o sistema judiciário e contribuem
para a demora da prestação jurisdicional.
A
inovação trazida pelo Código de Defesa do Consumidor com relação aos interesses
e direitos individuais homogêneos foi tão significante, que este reservou um
capítulo especial para regulamentar o assunto, a saber, o Capítulo II, do
Título III (arts. 91 a 100).
O
legislador preferiu definir os interesses individuais homogêneos, embora como
técnica legislativa não fosse aconselhável, com o intuito de evitar que dúvidas
e discussões doutrinárias, que ainda persistem, pudessem impedir ou retardar a
efetiva tutela desses interesses ou direitos dos consumidores e das vítimas ou
seus sucessores. Porém, como se verá, não foi feliz no intento.
1.Da Lei
e da Doutrina
O Código
de Defesa do Consumidor estabelece no inciso III, parágrafo único, de seu
artigo 81 que são "interesses ou direitos individuais homogêneos, assim
entendidos os decorrentes de origem comum".
Os
doutrinadores também apresentam suas definições e entre elas salientamos as
seguintes:
Segundo
Arruda Alvim (1995:371):
"
Interesses ou direitos individuais homogêneos são aqueles cujos danos se
ostentam com qualidade de ocorrência (=origem) igual, i. e., danos provocados
por uma mesma causa ou em razão de origem comum, entendendo-se, por estas
expressões, situações que são juridicamente iguais (quanto a terem origem comum
e, pois, tendo em vista que o mesmo fato ou fatos causaram lesão), embora diferentes;
na medida em que o fato ou fatos lesivos manifestaram-se como fatos
diferenciados no plano empírico, tendo em vista a esfera pessoal de cada uma
das vítimas ou sucessores".
Por seu
turno encontramos a conceito de Sérgio Fernandes (1995:95/96) no sentido de que
"Os direitos individuais homogêneos particularizam-se por serem
singulares, próprios de cada pessoa (pois, divisíveis), decorrentes de fato
comum, mas que por motivos de interesse social podem ser tutelados
coletivamente, como meio de lograr maiores êxitos no aspecto da efetiva
reparação patrimonial".
Já Teori
Albino Zavascki, citado por Mancuso (1995:439), afirma que os direitos ou
interesses individuais homogêneos "são divisíveis e individualizáveis e
têm titularidade determinada. Constituem, portanto, direitos subjetivos na
acepção tradicional, com identificabilidade do sujeito, determinação do
objetivo e adequado elo de ligação entre eles. Decorrentes, ademais, de
relações de consumo, têm, sem dúvida, natureza disponível. Sua homogeneidade
com outros direitos da mesma natureza, determinada pela origem comum, dá ensejo
à defesa de todos, de forma coletiva, mediante ação proposta, em regime de
substituição processual, por um dos órgãos ou entidades para tanto legitimados
concorrentemente no artigo 82. Tal legitimação recai, em primeiro lugar, no
Ministério Público".
Por fim,
referimo-nos a lição de Rodolfo de Camargo Mancuso (1991: 278-279) que afirma
que "Tudo indica que os interesses individuais homogêneos não são
coletivos em sua essência, nem no modo como são exercidos, mas apresentam certa
uniformidade, pela circunstância que seus titulares se encontram em certas
situações, que lhes confere coesão suficiente para destacá-los da massa de
indivíduos isoladamente considerados"
4. A
LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FRENTE À TUTELA DOS INTERESSES OU DIREITOS
INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS
4.1 - O
papel do Ministério Público no Estado Democrático e de Direito
Tradicionalmente,
o papel do Ministério Público sempre foi a persecução penal. Desde a sua
instituição republicana, em 1890, coube ao Ministério Público velar pela
execução da lei e promover a ação pública, sendo que sua atuação era
marcadamente no processo penal onde exercia, e ainda exerce, o monopólio da
ação penal pública.
Com
relação ao processo civil, a atuação do Ministério Público estava restrita
àquelas causas em que haviam interesses de incapazes ou eram de interesse
público.
Esse
panorama começou a sofrer alterações a partir de 1.985, quando a Lei n° 7.347
atribuiu ao Ministério Público a titularidade da ação de proteção ao meio
ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético,
histórico, turístico e paisagístico.
Titularidade
esta que era concorrente, pois estavam também legitimados para propor a ação
civil pública a União, os Estados e Municípios, as autarquias, empresas
públicas, sociedades de economia mista, fundações e certas associações, que
preenchessem os requisitos legais.
Com o
advento do Código de Defesa do Consumidor, também foi entregue ao Ministério
Público legitimação ativa para a defesa coletiva dos consumidores, no que tange
aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Estas
novas atribuições cíveis dirigidas ao Ministério Público têm sua razão de ser.
O
Ministério Público é uma das poucas instituições estruturadas no País, sendo
que em cada comarca brasileira existe pelo menos um Promotor de Justiça atuando
tanto na área civil quanto na área penal. Além do mais a Instituição prima pela
independência e pela separação da magistratura e do Poder Executivo.
Sem falar
que a sua tradição de independência foi acentuada pela Constituição Federal de
1988, que atribuiu ao Ministério Público uma série de atributos, entre eles, a
unidade, a indivisibilidade, a independência funcional, a autonomia
administrativa e financeira e garantias institucionais, tais como a
vitaliciedade, irredutibilidade dos vencimentos e inamovibilidade, que lhe
evidenciam cada vez mais o papel de guardião da sociedade e da ordem jurídica.
O papel
exercido pela Instituição é tão relevante que foi consagrado pelo artigo 127,
da Constituição Federal que o Ministério Público é "instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais
indisponíveis".
Por seu
turno, dispõe o artigo 129, III, da Constituição Federal de 1988, que constitui
"função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a
ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos", bem como, segundo o
inciso IX, exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que
compatíveis com sua finalidade.
Embora a
Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, promulgada pela LC 40, de
14.12.81, tivesse inaugurado legislativamente a expressão "ação civil
pública" , esta somente foi instituída pela Lei n° 7.347/85, que em seus
artigos 1°, II e 5°, concedeu ao Ministério Público a legitimidade, que já
tinha sido atribuída pela Lei Orgânica, para propor ações de responsabilidade
por danos causados ao consumidor, ao meio ambiente e ao patrimônio público e
social, quando se tratasse de direitos difusos e coletivos, de natureza
indivisível e, a partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor, dos
interesses ou direitos individuais homogêneos, inclusive.
4.2 Como
vêem os Tribunais a legitimidade Ministerial
Se por um
lado reconhecemos a importância da inclusão do interesse ou direito individual
homogêneo no rol dos interesses ou direitos metaindividuais, por outro não
podemos deixar de fazer uma constatação quanto à grande dificuldade que se
enfrenta para o reconhecimento da legitimidade do Ministério Pública em aforar
ações civis públicas na defesa dos interesses ou direitos individuais
homogêneos dos consumidores, nos termos do artigo 82, I, do CDC.
Infelizmente,
tem sido inúmeras as decisões proferidas pelo Poder Judiciário em que não se
reconhece a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses
individuais homogêneos por uma série de razões que discorreremos neste estudo,
mas que no fundo são inconsistentes e apenas revelam a grande influência da
carga individualista vigente no processo civil.
Os
argumentos utilizados para o afastamento da legitimidade Ministerial no tocante
à defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos, em que pese existir
autorização expressa da lei, são no sentido de que tais interesses ou direitos
não constam expressamente nos dispositivos constitucionais, ou de que o artigo
127 da Constituição Federal exige um plus, qual seja a
"indisponibilidade", como qualificativo dos "interesses sociais
e individuais", ou porque a isolada circunstância do número expressivo de
sujeitos abrangidos num dado interesse individual homogêneo não seria motivo
suficiente para imprimir a nota de "relevância social" à espécie, que
pudesse exsurgir a legitimação do Parquet ou, ainda, porque as ações coletivas
em defesa de interesses individuais homogêneos impõem aos beneficiários da sentença
condenatória um direito que talvez eles não queiram exercer.
Outro
argumento contrário à legitimação do Ministério Público, que merece ser
ressaltado, é o de que basta que os interesses ou direitos individuais
homogêneos possam ser defendidos em juízo individualmente, ou que seja possível
a cada indivíduo lesado dentro da coletividade, de per se, postular a reparação
desse direito ou interesse, para que se afaste, ipso facto, o uso da ação civil
pública manejada pelo Ministério Público.
Felizmente
tais posicionamentos encontram resistência, existindo Tribunais que vem
reconhecendo a legitimidade conferida ao Ministério Público para a propositura
de ações para defesa de interesses e direitos individuais homogêneos.
A título
de exemplo encontramos decisão que está ementada da seguinte forma: "ACÃO
CIVIL PÚBLICA - Propositura pelo Ministério Público - Defesa dos direitos
individuais homogêneos - Admissibilidade - inteligência dos arts. 81, III e 82
do CDC. À luz do art. 82 do CDC tem o Ministério Público legitimidade para
intentar ação civil pública, em defesa dos interesses individuais
homogêneos." (RT 707/125).
5. DA
POSIÇÃO DOS AUTORES
5.1 Do
Conceito de Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos
Da
leitura dos conceitos trazidos de outros autores podemos extrair as seguintes
características principais dos interesses ou direitos individuais homogêneos:
a) cuidam de um tratamento coletivo para interesses ou direitos que podem
perfeitamente ser defendidos por instrumentos previstos no processo civil
tradicional; b) abrange uma série de indivíduos identificados ou
identificáveis; c) o objeto é cindível, divisível, atribuível a cada um dos
indivíduos; d) não existe relação jurídica base entre os interessados; e) os
interessados estão unidos entre si pelo simples fato de seus interesses
decorrerem de uma causa comum.
Logo,
direitos ou interesses individuais homogêneos são aqueles interesses que
decorrem de um fato comum, correspondente ao ato lesivo ao ordenamento
jurídico, permitindo desde logo a determinação de quais membros da coletividade
foram atingidos.
Quando se
fala em homogeneidade, deve-se ter em mente que tais direitos ou interesses
devem decorrer de uma origem comum, ou seja, devem ser homogêneos
qualitativamente e apresentados com uniformidade, de maneira a viabilizar a
defesa coletiva. Para ser homogêneo basta a uniformidade qualitativa.
Dispensada está a uniformidade quantitativa, pois com relação aos aspectos
pessoais diferenciados, próprios de cada situação concreta, de cada consumidor,
estes poderão ser postulados pelos próprios interessados em uma fase posterior
denominada habilitação e que ocorre na liquidação da sentença genérica
proferida por ocasião da ação coletiva.
É mister
salientar que "origem comum" não significa, necessariamente, uma
unidade factual e temporal. O importante é que tais lesões decorram de um fato
comum, embora a forma, o tempo, a localidade, a quantidade das lesões sejam
diferentes em relação a cada indivíduo.
Assim,
seriam passíveis de defesa pela via da ação civil pública, as vítimas de uma
oferta de produto veiculada por vários órgãos da imprensa e em repetidos dias
ou de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo
espaço de tempo e em várias regiões, pois as lesões decorreriam de um fato
comum e presente está a homogeneidade.
Podemos
citar como exemplos de interesses individuais homogêneos a cobrança abusiva de
mensalidades escolares; os prejuízos causados a integrantes de planos para
aquisição de bens móveis (p. ex.: telefones) e imóveis(p. ex.: apartamentos) ou
de planos de saúde, de seguro; os prejuízos causados aos poupadores que tiveram
suas cadernetas de poupança bloqueadas.
Importante
também lembrar que em momento algum a lei fez referência ao número de pessoas
que seriam necessárias para a caracterização do direito ou interesse individual
homogêneo.
Desta
forma, não é de ser aceito o argumento de que o mesmo somente pode ser tutelado
pelo Ministério Público quanto abranger um número considerável de interessados
posto que havendo a homogeneidade dos direitos e interesses de duas pessoas já
é o suficiente para a caracterização do mesmo e, sua correspondente tutela pelo
Ministério Público.
O que não
pode ocorrer é a tutela pelo Ministério Público de um direito puramente
individual mas, sendo o direito ou interesse a ser tutelado individual de mais
de uma pessoa e, havendo homogeneidade entre eles, a legitimação é
inquestionável.
Merece
destaque ainda a possibilidade de o Ministério Público, ou qualquer outro
legitimado, promover a defesa geral de todos os consumidores que se encontram
em uma situação de homogeneidade de seus direitos individuais, mesmo quando
apenas parte deles procura o Ministério Público para obter a tutela coletiva.
Do
contrário, a exigir-se o pedido de tutela de todos, ou mesmo de uma maioria,
chegaríamos a inviabilização de tal tutela, seja pela acomodação natural de
nosso povo, seja pela maior ou menor pressão que parcela dos titulares dos
interesses ou direitos individuais homogêneos possa sofrer.
Dessa
forma, entendemos legítima a intervenção Ministerial no aforamento da
competente ação civil pública, por exemplo, em favor de integrantes de um
condomínio em construção, com cinqüenta apartamentos, no caso de correção
abusiva das prestações, desde que receba, ao menos, uma única reclamação e, a
comprovação de que há outros indivíduos na mesma situação, frente a causa
comum.
Assim,
podemos afirmar que interesse ou direito individual homogêneo é todo aquele
que, possuindo mais de um titular, identificado ou identificável e, embora
possa ter seu objeto divisível e até mesmo disponível, protegível
individualmente, sem uma relação jurídica base entre os consumidores, têm uma
causa comum.
5.2- Dos
Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos como Direitos Indisponíveis
Quando se realiza um estudo das questões relativas aos interesses ou direitos
individuais homogêneos, partindo-se do pressuposto da defesa coletiva do
consumidor, não se pode perder de vista que tal defesa é uma garantia
constitucional de todos nós.
Tanto é
assim que a Constituição Federal, no Título II, Capítulo I, que trata dos
Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, dentro dos Direitos e Garantias
Fundamentais, no seu artigo 5º, XXXII determina que "o Estado promoverá,
na forma da lei, a defesa do consumidor" e, posteriormente, quanto trata
da Ordem Econômica e Financeira inclui entre os princípios gerais da atividade
econômica a ser seguido, o da defesa do consumidor (art. 170, V, CF).
Tais
dispositivos constitucionais já poderiam nos levar a conclusão de que, em sendo
função do Estado, como garantia constitucional do indivíduo, a defesa do
consumidor, tal defesa possui um caráter de indisponibilidade, eliminando assim
toda e qualquer discussão acerca da legitimação ativa do Ministério Público
para promover as ações coletivas que tutelam os interesses e direitos
individuais homogêneos dos consumidores.
Isto
porque não se pode imaginar a Constituição Federal tutelando interesses de
importância relativa.
Além
disto, a nível infraconstitucional, encontramos o disposto no artigo 1º, do
Código de Defesa do consumidor, no qual é afirmado que a questão do consumo é
de ordem pública e interesse social.
Desta
forma, afasta-se a alegação de que o artigo 127, da Constituição Federal, exige
um plus, qual seja, a "indisponibilidade" como qualificativo dos
interesses sociais e individuais, até porque, tal requisito se encontrará,
sempre, presente.
Mas,
mesmo que assim não fosse, podemos afirmar que a lei não distinguiu, ao
mencionar direitos individuais homogêneos, se disponíveis ou não, se passíveis
ou não de individualização.
Entendemos,
portanto, que, como a lei considera as normas de consumo de ordem pública e de
interesse social (art. 1°, CDC), devendo o Ministério Público obrigatoriamente
atuar como fiscal da lei nas ações em que não for parte (art. 92, CDC), sob
pena de nulidade, a proteção do consumidor é indisponível, cabendo assim ao
Ministério Público velar pelos direitos indisponíveis e via de conseqüência
pelos direitos decorrentes das relações de consumo.
Assim,
havendo homogeneidade nas lesões causadas a dois, cinco, dez, vinte, cem
consumidores, o Ministério Público tem o poder-dever de aforar ação civil
pública para apurar a responsabilidade civil pelos danos causados por
fornecedores de produtos e serviços, visto ser a proteção do consumidor direito
indisponível ex lege, embora seja "disponível" factualmente falando.
A necessidade de proteção ao consumidor justifica-se não por uma deficiência
dele em velar pelos seus direitos, mas por uma flagrante desigualdade, de natureza
econômica entre os sujeitos das relações de consumo, que leva à imposição de
uma das partes à outra.
Sobre a
questão encontramos preciosa lição de Nelson Nery Júnior (1995:358 e 366) a
qual, corroborando o entendimento exposto afirma que "O art. 82 do CDC
confere legitimidade ao Ministério Público para ajuizar ações coletivas na
defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos
consumidores. Assim agindo, a lei infraconstitucional (CDC) agiu em
conformidade com a Constituição Federal, porque a defesa do consumidor, além de
garantia fundamental (artigo 5°, inciso XXXII, CF), é matéria considerada de
interesse social pelo artigo 1°, do CDC.
"Como
é função institucional do Ministério Público a defesa dos interesses sociais
(art. 127, "caput", CF), essa atribuição dada pelo art. 82, do CDC,
obedece ao disposto no art. 129, inciso IX, CF, pois a defesa coletiva do
consumidor, no que tange a qualquer espécie de seus direitos (difusos,
coletivos ou individuais homogêneos) é, "ex vi legis", de interesse
social.
"
[...]
"O
argumento de que ao Ministério Público não é dada a defesa dos direitos
individuais disponíveis não pode ser acolhida porque em desacordo com o sistema
constitucional e do CDC, que dá tratamento de interesse social à defesa coletiva
em juízo. O "Parquet" não pode, isto sim, agir na defesa de direito
individual puro, por meio de ação individual. Caso o interesse seja homogêneo,
sendo defendido coletivamente (CDC, art. 81, pár. único, III), essa defesa pode
e deve ser feita pelo Ministério Público (CDC, art. 82, I, por autorização da
CF, artigo 129, IX e 127, "caput")."
Outro não
é o entendimento de Marcus Vinícius Rios Gonçalves (1993:63), que com clareza
expõe:
"A
norma fundamental acerca da participação do MP é o artigo 1°, que estabelece
que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e
interesse social, nos termos dos arts. 5°, XXXII, 170,V, da CF e art. 48 das
Disposições Transitórias. As normas são de ordem pública e interesse social. Do
confronto entre o art. 1°, "caput" e o art. 127, da CF, verifica-se
que o
Ministério
Público deverá intervir em todos os processos em que se discutam relações de
consumo, e em que controvertam fornecedores e consumidores. A intervenção
ministerial é obrigatória e sua ausência gera nulidade, ainda que não resulte
prejuízo ao consumidor. Isto porque as normas são de ordem pública por sua
natureza, e porque assim as considerou o legislador. Nesse aspecto, são
aplicáveis subsidiariamente, por serem inteiramente compatíveis com o sistema,
as normas dos arts. 84 e 246, do CPC.
"A
proteção do consumidor constitui direito indisponível, e cabe ao Ministério
Público velar pelos interesses indisponíveis. "Sob este enfoque, podemos
afirmar que, em qualquer situação, é possível o aforamento de ação civil
pública ou de qualquer outra ação capaz à adequada e efetiva tutela dos
interesses individuais homogêneos (art. 83 CDC), para a tutela do consumidor,
posto que se estará tutelando, em qualquer situação, um interesse social
indisponível.
5.3 Dos
Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos em si
Mesmo que
não admitíssemos a tese anterior, a da indisponibilidade de todo e qualquer
interesse ou direito relativo a defesa do consumidor, não podemos perder de
vista dois aspectos que são de fundamental importância para o reconhecimento da
legitimidade do Ministério Público para a tutela dos interesses ou direitos
individuais homogêneos.
O
primeiro, o de que a lei é clara ao conferir ao Ministério Público, dentre
outros legitimados, a legitimação para a tutela dos direitos ou interesses
individuais homogêneos e, conforme já o afirmamos, sem fazer qualquer restrição
quanto a quantidade de titulares e a disponibilidade ou não do objeto a ser
tutelado.
E depois,
o fato de a Lei 7.347/85, bem como a Constituição Federal, não terem se
referido aos direitos e interesses individuais homogêneos como tuteláveis pelo
Ministério Público não é motivo para sua não tutela, até porque, por uma
questão cronológica, vemos que ambas são anteriores ao Código de Defesa do
Consumidor, estatuto legal que criou os mesmos.
Aliás,
extremamente importante lembrar que parcela da doutrina contrária foi escrita
quando a Lei 7.347/85 não possuía no seu artigo 1º, em razão de veto
presidencial, o inciso IV, que confere legitimidade àqueles referidos no artigo
5º, para proceder a defesa de "qualquer outro interesse difuso ou
coletivo", entendendo-se aí, obviamente os direitos e interesses
individuais homogêneos.
De acordo
com os ensinamentos apresentados pelo ilustre Promotor de Justiça e Mestre em
Direito, Paulo de Tarso Brandão, em sua obra "AÇÃO CIVIL PÚBLICA"
(1996:124-125), "o fato de não inserir o legislador, já na Lei n°
7.347/85, o interesse individual homogêneo, deu oportunidade a que parte da
doutrina e expressiva parcela da jurisprudência viessem a negar legitimidade
àquelas entidades arroladas na lei como co-legitimadas para a defesa de
interesses difusos e coletivos, analisando esta circunstância como condição da
ação, por entenderem que o pedido de tutela judicial recaia sobre direito
individual.
"Isto
determinou, como é comum no âmbito do direito, que mesmo após o advento do
Código de Defesa do Consumidor, em casos típicos de defesa da relação de
consumo, a doutrina e a jurisprudência continuassem a desconsiderar tal
dispositivo legal".
Já nos
referimos anteriormente que o nosso ordenamento jurídico processual é de índole
estritamente individualista, herança do sistema romano-germânico por nós
adotado. A tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos é recente e foi
instituída no sistema a partir do Código de Defesa do Consumidor, razão dos
percalços encontrados na aplicação dos mesmos.
Talvez,
por esta razão, aqueles não admitem a legitimidade do Ministério Público na
tutela dos interesses e direitos individuais homogêneos utilizam-se do
argumento de que, assim agindo, o Ministério Público estaria substituindo a
vontade individual pela vontade do portador em juízo dos interesses
metaindividuais, não podendo, de forma alguma, reconhecer direitos aos cidadãos
contra a sua vontade.
Preciosa
é a intervenção de Ada Pellegrini Grinover (1993:218-219) quanto a esta
questão: "Esse argumento incorre, "data venia", em equívoco
conceitual grave, confundindo o reconhecimento dos direitos com a sua fruição.
"O
reconhecimento de direitos aos indivíduos deflui do sistema normativo - e,
antes mesmo, do direito natural - sem que se leve em consideração a autonomia
da vontade. O direito à vida, à saúde, à segurança, ao ambiente, à propriedade;
os direitos dos consumidores, dos usuários dos serviços públicos etc., são
assegurados pela Constituição e pelas leis, independentemente da vontade dos
beneficiários. Somente quanto a sua efetiva fruição, é que depende ela da
vontade e da iniciativa do titular.
"Ora,
a tutela jurisdicional dos interesses (ou direitos) individuais homogêneos, no
sistema brasileiro, obedeceu rigorosamente a essa distinção. A ação coletiva,
ajuizada pelo órgão público ou pelos entes associativos, em nome próprio e no
interesse alheio, leva simplesmente a uma sentença condenatória genérica, que
reconhece a existência do dano e estipula o dever de indenizar.
"Cessa,
aqui, a substituição processual dos entes legitimados à ação coletiva dos arts.
91-100 do CDC.
"A
seguir, a liquidação e execução da sentença, pelas vítimas ou seus sucessores,
será promovida diretamente por estes, ou pelos legitimados às ações coletivas,
mas agora a título de representação.
"Dependerá,
portanto, da vontade do beneficiário da sentença habilitar-se individualmente à
liquidação, em processo de conhecimento em que cada qual, em contraditório
pleno, deverá provar não apenas o "quantum debeatur", mas também o
"an", relativamente aos danos pessoalmente sofridos e o nexo
etiológico com o dano global reconhecido na sentença condenatória.
"Decorre
daí que nada se impõe ao beneficiário da indenização. A sentença condenatória
estabelece, apenas, o direito ao recebimento do ressarcimento decorrente da
responsabilidade civil por parte das vítimas do ato lesivo. Reconhece o seu
direito à indenização.
" Mas
para a fruição do direito, será necessária a iniciativa do lesado que,
diretamente ou por seus representantes, deverá habilitar-se na liquidação,
provando ainda seu dano pessoal e o montante deste. Nada poderão fazer os entes
legitimados, se não forem solicitados pela iniciativa de cada indivíduo
pessoalmente prejudicado.
Como
vimos, no processo para a tutela dos direitos individuais homogêneos a causa de
pedir e o pedido a ser formulado pelos legitimados do art. 82, do CDC, deverá
ser genérico, assim como a sentença condenatória.
Ajuizada
a ação, expedir-se-á edital para conhecimento de terceiros, a fim de que os
consumidores possam intervir no processo como litisconsortes.
No
entanto, reforçando a posição de que a atuação do Ministério Público na defesa
dos interesses individuais homogêneos não substitui a vontade das partes,
tem-se que os consumidores que não quiserem intervir, abrindo mão de seu
direito de indenização, poderão omitir-se, já que seu direito individual
homogêneo é divisível e disponível.
Assim,
não haverá um processo cognitivo que apure individualmente todos os danos. O
que ocorrerá é uma apuração genérica na qual a defesa processual dos direitos
individuais homogêneos é feita de forma indivisível, ocasionando, desta feita,
uma sentença condenatória genérica que reconhece a existência do dano geral e a
responsabilidade do réu pelos danos causados, não individualizando os
consumidores lesados.
Em uma
fase posterior, haverá a habilitação dos consumidores, das vítimas ou seus
sucessores, a título individual, momento no qual procederão a liquidação de
sentença (diretamente ou pelas entidades legitimadas), devendo, nessa
oportunidade, serem provados a existência do dano individual, o nexo de
causalidade com o dano genérico apontado na sentença e o montante deste dano.
Para isto é preciso que seja expedido novo edital após o trânsito em julgado da
sentença.
Como
podemos perceber, nesta fase de liquidação de sentença já não se trata mais de
direito individual homogêneo, mas sim de direito estritamente individual que
será apurado não em um mero processo de liquidação nos moldes tradicionais, mas
sim em um autêntico processo cognitivo.
Com
relação à coisa julgada podemos afirmar que o sistema tradicional vigente no
processo civil brasileiro foi profundamente alterado pelo Código de Defesa do
Consumidor, em razão da necessidade de tutelar-se de outra forma os direitos e
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Estabeleceu-se
o sistema da coisa julgada secundum eventum litis, ou seja, nas ações coletivas
para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos, a coisa julgada
terá eficácia erga omnes, em benefício do consumidor, somente se houver
procedência do pedido.
Na
eventualidade de o pedido ser julgado improcedente, por insuficiência de
provas, mesmo assim o consumidor poderá, individualmente propor ação
ressarcitória com o mesmo objeto, pois não há como dizer que houve coisa
julgada, pelo simples fato de que as partes da ação coletiva e da ação
individual seriam distintas.
Além
desta situação, temos que o artigo 104, do Código de Defesa do Consumidor,
embora com redação imprecisa, determina não haver litispendência entre a ação
coletiva e aquela aforada pelo titular, individualmente, se ele entender mais
conveniente o aforamento desta.
Essas
situações mais uma vez vêm corroborar a tese de que a ação civil pública
proposta pelo Ministério em defesa dos interesses e direitos individuais
homogêneos não afronta a vontade dos indivíduos lesados.
Mesmo
porque, uma vez que coexistem interesses e direitos coletivos e individuais,
seria temerário fosse prejudicado um direito individual pela propositura da
ação coletiva, quando justamente se pretendeu dar maior proteção àquele.
5.4 - Da
Legitimação Propriamente dita
Em que
pese grande parte da doutrina e da jurisprudência de nossos Tribunais ainda não
aceitarem com facilidade a legitimação do Ministério Público na defesa dos
interesses ou direitos individuais homogêneos, por intermédio da ação civil
pública, tem-se presenciado uma discussão doutrinária, entre aqueles que
aceitam tal legitimação, acerca da natureza da participação processual dos
co-legitimados. E o debate é no sentido de se saber se tal legitimidade seria
ordinária ou extraordinária; se seria substituição processual ou representação.
Ter
legitimação para a causa significa, ter "legitimidade para agir em
juízo", também denominada legitimatio ad causam. Uma das condições da
ação, juntamente com o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido,
a legitimidade de agir, é no dizer de Alfredo Buzaid, "a pertinência
subjetiva da ação". Só pode propor determinada ação aquele que está
autorizado a demandar sobre o objeto da demanda.
No
processo, a legitimação ordinária é a regra e a extraordinária é a exceção.
Legitimação ordinária ocorre quando alguém, em nome próprio postula em Juízo
direito próprio. Já a legitimação extraordinária, também denominada de
substituição processual, é a possibilidade que a lei concede à alguém de, em
nome próprio, defender interesse ou direito alheio.
Segundo
princípios de direito processual civil comum, a legitimação extraordinária pode
ser autônoma e exclusiva ou autônoma e concorrente. É exclusiva quando aquele
que seria o legitimado ordinário está impedido de assumir a ação como parte
principal. Doutra forma, é concorrente, quando o titular da relação jurídica de
direito material não está impedido de assumir a posição de parte processual.
Nesses termos, tem-se que a legitimação extraordinária somente ocorre se for
exclusiva.
O Código
de Defesa do Consumidor, em seu artigo 82, optou por uma legitimação
concorrente e disjuntiva. Isto significa que cada um dos co-legitimados pode
propor a ação coletiva, sem necessidade da autorização dos demais, sendo
facultativo o eventual litisconsórcio entre eles.
Segundo
Arruda Alvim, legitimação concorrente para o Código de Defesa do Consumidor
significa que qualquer um dos co-legitimados ex lege pode agir processualmente,
independentemente da atividade simultânea de outro legitimado.
Já no que
concerne à legitimação do Ministério Público para as ações de proteção dos
interesses e direitos individuais homogêneos, a doutrina fala em substituição
processual.
Ora,
falar que a legitimidade é concorrente, que no caso dos interesses e direitos
individuais homogêneos ocorre a substituição processual e que admite-se o
litisconsórcio, é ir de encontro ao que dispõe os antigos princípios clássicos
do processo civil e conceitos tradicionais das espécies de legitimação, citados
anteriormente.
Assim,
percebe-se claramente que o Código de Defesa do Consumidor é fruto de um
pensamento moderno do direito e informado por princípios clássicos do direito e
a questão da legitimidade, por ter outra natureza, em nenhum momento pode ser
confundida com a legitimidade processual estudada na esfera do direito
intersubjetivo.
Em razão
disso, temos que a nossa herança individualista prejudica e por conseqüência
retarda a compreensão de um interesse coletivo, tendo em vista que existe uma
tendência normal na interpretação dos institutos de seguir os padrões
clássicos, quando as questões processuais relativas às relações de consumo
deveriam ser vistas e analisadas sob a égide do próprio Código de Defesa do
Consumidor.
Ciente do
caráter estritamente individual presente no Processo Civil, o legislador ao
editar o Código de Defesa do Consumidor não pôs em relevo a defesa individual
dos direitos e interesses do consumidor. Compreende-se que assim seja, porque
as ações civis envolvendo conflitos intersubjetivos já estão, naturalmente,
reguladas em sede específica que é o CPC, ou mesmo em leis extravagantes. O que
o Código de Defesa do Consumidor dá ênfase é à defesa coletiva, como aliás não
deixa dúvida o parágrafo único do artigo 81.
Levou um
certo tempo, mas o legislador aos poucos apercebeu-se que a proteção de
determinados interesses e direitos estava se tornando inviável pela via do
instituto do litisconsórcio, justamente diante da imensidão de pessoas a esses
ligadas.
E não foi
por outra razão que a recente Lei n° 8.952/94 alterou o artigo 46, parágrafo
único, do CPC, permitindo ao juiz a limitação do número dos litisconsortes
facultativos, quando muito numerosos (litisconsórcio multitudinário) de forma a
comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa.
E como o
elemento caracterizador dos interesses individuais homogêneos é o fato de
derivarem de uma "origem comum", eles podem apresentar-se muito
numerosos, de sorte que sua veiculação através da ação coletiva acaba sendo o
mais adequado.
Por isso,
foi bastante válida a iniciativa do Código de Defesa do Consumidor de
introduzir em nosso ordenamento jurídico um instrumento processual para tutelar
coletivamente direitos individuais. Além da dificuldade prática do ajuizamento
de milhares de ações individuais, por parte dos prejudicados, conforme já
mencionamos, nem sempre a reparação patrimonial compensaria ao indivíduo,
isoladamente, enfrentar os custos de uma contenda judicial.
Já
afirmava Mauro Cappelletti, citado por Sérgio Ricardo de Arruda Fernandes
(1995:94): O consumidor que compra um produto com pequeno defeito equivalente a
um dólar, não pode se defender individualmente, eis que aí se trata de um
interesse fragmentado, demasiado pequeno para que o cidadão, individualmente,
defenda seu direito. Mas se todos os consumidores, em conjunto, decidirem
atuar, serão milhares de dólares, e não apenas um, pois milhares, centenas de
milhares ou milhões de consumidores estarão comprometidos. Além dos interesses
individuais de cada consumidor, há interesses difusos e coletivos, a demandar
tratamento mais eficaz e sobretudo rápido".
Embora
muitos doutrinadores considerem ser a legitimação do Ministério Público na ação
civil pública de natureza extraordinária, na forma de substituição processual,
começa a firmar-se o entendimento doutrinário de que o poder-dever de defesa
dos interesses de natureza coletiva (em sentido amplo) é de natureza ordinária,
porque ela decorre da lei e não da titularidade do interesse deduzido em juízo.
Entendemos
que deva prevalecer tal entendimento, uma vez que as pessoas que não estiverem
legitimadas pela lei a exercitar o direito de ação decorrente da ação civil
pública, não poderão assim proceder, nem mesmo extraordinariamente, pois a lei
não prevê a hipótese de substituição processual. É nesse sentido que se afirma
ser tal legitimidade de natureza ordinária, e não no sentido clássico do
processo civil comum, o qual, insistimos, quando se tratar de direitos
coletivos lato sensu, só deve ser utilizado subsidiariamente.
Quanto a
esta questão socorremo-nos novamente na lição de Brandão (1996:118-119) que
afirma:
"Em
síntese, a legitimidade para buscar em Juízo a tutela dos interesses coletivos
(abrangendo com tal expressão os interesses coletivos, difusos e individuais
homogêneos) decorre de lei. Assim, na esfera da Ação Civil Pública não opera o
conceito ou a noção de legitimidade extraordinária, uma vez que as pessoas
jurídicas ou as instituições, são legitimadas por força de disposição legal; e,
nesse caso, a legitimação é sempre ordinária. Qualquer outra pessoa que não
seja legitimada por força de lei não poderá exercitar o direito de ação
decorrente da Ação Civil Pública, pois em nenhuma hipótese poderá haver a
substituição processual, ou seja, a legitimação extraordinária.
"Assim,
quando a Ação Civil Pública é proposta por um dos co-legitimados previstos pela
lei [...], resta somente indagar se o interesse que a ação busca tutelar é
difuso, coletivo ou individual homogêneo."
Já
criticamos mais de uma vez a visão individualista que se pretende dar ao trato
de assuntos coletivos.
No caso
dos direitos ou interesses individuais homogêneos não se pode, a nosso ver,
falar em legitimação extraordinária, uma vez que, conforme já dito, o
Ministério Público, bem como os demais legitimados, agem em nome próprio,
tutelando os interesses de indivíduos que não possuem legitimidade para tal
defesa coletiva.
Ressaltamos,
para evitar qualquer confusão conceitual que, tal legitimação ordinária diz
respeito exclusivamente ao manejo da ação civil pública ou de outra ação de
cunho coletivo onde os consumidores, individualmente, não possuem legitimidade
para a mesma, sendo a legitimação apenas daqueles elencados no artigo 82 do
Código de Defesa do Consumidor.
Porém,
tanto o Ministério Público, como os demais legitimados, não possuem legitimidade
alguma, sequer extraordinária, para promover a tutela em sede de ação
individual, dos mesmos interesses ou direitos individuais homogêneos, a qual
deve ser realizada, individualmente pelo próprio consumidor lesado.
Assim,
temos o caso em que a legitimação para a tutela dos interesses ou direitos
individuais homogêneos será ordinária para os elencados no artigo 82 do Código
de Defesa do Consumidor, quando se tratar de tutela coletiva e, também de
legitimação ordinária para a tutela individual dos mesmos direitos e
interesses, desde que feita pelo próprio titular, individualmente.
Se assim
não fosse, seria de se indagar: se o Ministério Público, bem como os demais
co-legitimados, têm legitimação extraordinária, quem seria o legitimado
ordinário para a tutela coletiva dos interesses individuais homogêneos se,
conforme já visto, os consumidores individualmente não podem manejar a ação
civil pública?
6.
CONCLUSÕES
Por tudo
o que foi exposto nos é possível chegar as seguintes conclusões:
a) O
interesse ou direito individual homogêneo é todo aquele que, possuindo mais de
um titular, identificado ou identificável e, embora possa ter seu objeto
divisível e até mesmo disponível, protegível individualmente, sem uma relação
jurídica base entre os interessados, tem uma causa comum.
b) Pode o
Ministério Público, ou qualquer outro legitimado, promover a defesa geral de
todos os consumidores que se encontram em uma situação de homogeneidade de seus
direitos individuais, mesmo quando apenas parte deles procura o Ministério
Público para obter a tutela coletiva.
c) As
questões relativas a defesa do consumidor são de ordem pública e de interesse
social.
Assim,
tem o Ministério Público legitimidade para a tutela dos interesses ou direitos
que ali se incluam.
d) Mesmo
que não fossem as questões relativas aos direitos do consumidor de ordem
pública, a lógica levaria a possibilidade do aforamento de ação civil pública,
pelo Ministério Público, para a proteção dos interesses ou direitos individuais
dos consumidores, até para evitar o aforamento de um grande número de ações
semelhantes, ou até mesmo idênticas, as quais teriam tramitação lenta, pelo
volume e, correriam o risco de receber soluções conflitantes para problemas que
têm origem comum.
e) A
legitimação do Ministério Público, bem como dos demais co-legitimados, para o
aforamento da ação civil pública em defesa dos interesses ou direitos
individuais homogêneos é ordinária.
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(*)
Ex-coordenador das Promotorias de Defesa do Consumidor do Centro das
Promotorias da Coletividade do Ministério Público de Santa Catarina.
Data: 08/11/2004
Fonte:
Tycho Brahe Fernandes e Angela Silva Guimarães
*Promotor de Justiça **Advogada
Disponível em: http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2561
acesso em 12.09.05