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A Legitimação do Ministério Público na Tutela dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos

 

 

Tycho Brahe Fernandes* e Angela Silva Guimarães **

 

 

SUMÁRIO: 1. Introdução - 2. A origem das ações coletivas no Brasil - 3. Dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos - 3.1. Da Lei e da Doutrina - 4. A legitimação do Ministério Público frente à tutela dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos - 4.1. O papel do Ministério Público no Estado Democrático e de Direito - 4.2. Como vêem os Tribunais a legitimidade Ministerial - 5. Da posição dos autores - 5.1. Do conceito de Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos - 5.2. Dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos como Direitos Indisponíveis - 5.3. Dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos em si - 5.4. Da legitimação propriamente dita - 6. Conclusões

1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo pesquisar o conceito de interesses ou direitos individuais homogêneos, que foi inserido na esfera dos interesses metaindividuais pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei n° 8.078/90), e que vem despertando muita polêmica na doutrina e jurisprudência, até mesmo com relação à legitimidade do Ministério Público para propor as ações judiciais destinadas à tutela de tais interesses, tudo isto em função do raciocínio individualista ainda presente na consciência de nossos operadores do direito e da real dificuldade que sempre se tem na análise de um novo tema apresentado.

2. A ORIGEM DAS AÇÕES COLETIVAS NO BRASIL

O ordenamento jurídico vigente em nosso país teve sua formação baseada nos princípios do direito continental europeu (romano-germânico), e, por via de conseqüência, o processo civil foi organizado para atender às demandas de cunho estritamente individuais.

Até pouco tempo atrás não havia na legislação nacional grande preocupação com a tutela dos interesses difusos e coletivos. A necessidade de estar o direito subjetivo sempre referido a um titular determinado, ou ao menos determinável, impediu por muito tempo que os "interesses" pertinentes a toda uma coletividade e a cada um dos membros dessa mesma coletividade, como, por exemplo, os "interesses" ao meio ambiente, à saúde, à educação, à qualidade de vida, etc., pudessem ser havidos por juridicamente protegíveis. Era a estreiteza da concepção tradicional do direito subjetivo, marcada profundamente pelo liberalismo individualista que obstava a essa tutela jurídica.

Em princípio, considerava-se "parte" no processo somente aquele que se apresentasse como sendo o titular de um interesse juridicamente protegido, sendo vedado pleitear em juízo, em nome próprio, direito alheio, salvo autorização expressa da lei.

Assim, permitindo a substituição processual, tivemos a Lei n° 4.591/64 (Condomínios e Incorporações), que em seu art. 21, parágrafo único, autoriza qualquer condômino, na omissão do síndico, a promover, em benefício do condomínio, ação para cumprimento de deveres estipulados na convenção; a Lei n° 6.404/76 (Sociedades Anônimas), que em seu artigo 159, parágrafo 3°, permite ao acionista promover, em favor da sociedade, ação de responsabilidade contra o administrador que causou prejuízos ao patrimônio social, entre outros exemplos.

Pode-se dizer que a primeira tutela jurisdicional de interesses difusos deu-se com a promulgação da Lei n° 4.717/65 (Ação Popular), que possibilitou a qualquer cidadão, no gozo de seus direitos cívicos e políticos, obter a invalidação dos atos ou contratos administrativos ilegais e lesivos ao patrimônio público.

Mais tarde, tivemos a Lei n° 6.938/81 tratando de uma ação civil de natureza pública, pois dispunha em seu artigo 14, parágrafo 1 °, que "sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terão legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente".

Entretanto, a grande e significativa mudança ocorreu com a publicação da Lei n° 7.347/85, que disciplinou a Ação Civil Pública por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico.

Aproveitando a onda de evolução no sistema processual, a Constituição Federal de 1988 trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro o instituto do Mandado de Segurança Coletivo.

Em 1989, entrou em vigor a Lei n° 7.853 para tutelar os interesses coletivos e difusos dos deficientes físicos.

Finalmente, em 1990 foi promulgado o Código de Defesa do Consumidor que, com seu espírito inovador e moderno, valorizou o rigor técnico-científico na seara do direito processual visando alcançar a efetiva concretização dos direitos dos consumidores, seja a título singular, seja a título coletivo.

3. DOS INTERESSES OU DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

A preocupação do legislador pela instrumentalidade substancial e pela maior efetividade do processo, ante a nova realidade sócio-econômica que vivenciamos com a presença da economia de massa, levou-o a concretizar, a por em prática um dos maiores anseios da sociedade: a proteção dos conflitos de natureza coletiva nascidos das relações geradas pela economia de massa, de forma totalmente desgarrada da nossa tradição individualista no tratamento das questões processuais.

Mas o legislador foi mais além e juntamente com a categoria dos interesses e direitos difusos e coletivos, inseriu no direito brasileiro uma nova categoria de interesses, qual seja a dos interesses individuais homogêneos. Trata-se de um instrumento processual criado para tutelar coletivamente direitos individuais.

Foi um passo muito importante no caminho evolutivo das ações coletivas iniciado pela Lei da Ação Civil Pública, a qual somente fazia referência à defesa dos interesses difusos e coletivos voltados à proteção dos consumidores e do ambiente, em sentido lato, na dimensão da indivisibilidade do objeto.

A doutrina tem considerado como origem dos interesses ou direitos individuais homogêneos em nosso direito positivo o advento da Lei n° 7.913/89, que trata da ação civil pública proposta pelo Ministério Público para reparação dos danos causados aos investidores no mercado de valores mobiliários.

Entretanto, como se trata de uma legislação específica dos investidores no mercado de valores mobiliários, tem-se que foi a partir da publicação da Lei n° 8.078/90, que os direitos subjetivos individuais puderam ser defendidos isoladamente, na sua forma clássica, ou agrupados em demandas coletivas, desde que presente a homogeneidade.

A ação civil pública para a defesa desses interesses assemelha-se, em alguns aspectos, com a conhecida class action for damages do sistema americano do common law, por intermédio da qual um ou mais membros da classe podem demandar, ou serem demandados, como representantes, no interesse de todos, em face de um prejuízo causado por uma empresa a um certo número de consumidores.

No entanto, a diferença entre a class action e a ação civil pública para defesa dos interesses individuais homogêneos reside no fato de que enquanto na class action qualquer interessado pode ingressar com a ação, representando os demais e obrigando a todos a decisão, na ação civil pública para a tutela dos interesses individuais homogêneos somente estão legitimados aqueles que estão previstos no rol do artigo 82, do CDC, entre os quais não se inclui o lesado individualmente, e no que diz respeito a extensão negativa da sentença e a respectiva autoridade da coisa julgada suscetível de se formar no plano da ação coletiva, não virá essa a afetar a esfera individual.

O tratamento legislativo consagrador dos direitos individuais homogêneos tem em si uma função estritamente teleológica, qual seja, a de propiciar uma maior efetividade no acesso à justiça, tendo em vista a ineficácia dos meios até bem pouco tempo atrás existentes no processo civil brasileiro, que como já dissemos é de índole puramente individualista. Aliás, podemos dizer que a função teleológica dos direitos individuais homogêneos é, em si, a mesma dos direitos difusos e coletivos: propiciar uma maior efetividade no acesso à justiça, considerando para tal as dificuldades relacionadas ao valor das custas judiciais, às possibilidades econômico-financeira ou às dificuldades de ordem educacional e cultural das partes e à lentidão dos processos, ocasionada pelas demandas individualizadas que sobrecarregam o sistema judiciário e contribuem para a demora da prestação jurisdicional.

A inovação trazida pelo Código de Defesa do Consumidor com relação aos interesses e direitos individuais homogêneos foi tão significante, que este reservou um capítulo especial para regulamentar o assunto, a saber, o Capítulo II, do Título III (arts. 91 a 100).

O legislador preferiu definir os interesses individuais homogêneos, embora como técnica legislativa não fosse aconselhável, com o intuito de evitar que dúvidas e discussões doutrinárias, que ainda persistem, pudessem impedir ou retardar a efetiva tutela desses interesses ou direitos dos consumidores e das vítimas ou seus sucessores. Porém, como se verá, não foi feliz no intento.

1.Da Lei e da Doutrina

O Código de Defesa do Consumidor estabelece no inciso III, parágrafo único, de seu artigo 81 que são "interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum".

Os doutrinadores também apresentam suas definições e entre elas salientamos as seguintes:

Segundo Arruda Alvim (1995:371):

" Interesses ou direitos individuais homogêneos são aqueles cujos danos se ostentam com qualidade de ocorrência (=origem) igual, i. e., danos provocados por uma mesma causa ou em razão de origem comum, entendendo-se, por estas expressões, situações que são juridicamente iguais (quanto a terem origem comum e, pois, tendo em vista que o mesmo fato ou fatos causaram lesão), embora diferentes; na medida em que o fato ou fatos lesivos manifestaram-se como fatos diferenciados no plano empírico, tendo em vista a esfera pessoal de cada uma das vítimas ou sucessores".

Por seu turno encontramos a conceito de Sérgio Fernandes (1995:95/96) no sentido de que "Os direitos individuais homogêneos particularizam-se por serem singulares, próprios de cada pessoa (pois, divisíveis), decorrentes de fato comum, mas que por motivos de interesse social podem ser tutelados coletivamente, como meio de lograr maiores êxitos no aspecto da efetiva reparação patrimonial".

Já Teori Albino Zavascki, citado por Mancuso (1995:439), afirma que os direitos ou interesses individuais homogêneos "são divisíveis e individualizáveis e têm titularidade determinada. Constituem, portanto, direitos subjetivos na acepção tradicional, com identificabilidade do sujeito, determinação do objetivo e adequado elo de ligação entre eles. Decorrentes, ademais, de relações de consumo, têm, sem dúvida, natureza disponível. Sua homogeneidade com outros direitos da mesma natureza, determinada pela origem comum, dá ensejo à defesa de todos, de forma coletiva, mediante ação proposta, em regime de substituição processual, por um dos órgãos ou entidades para tanto legitimados concorrentemente no artigo 82. Tal legitimação recai, em primeiro lugar, no Ministério Público".

Por fim, referimo-nos a lição de Rodolfo de Camargo Mancuso (1991: 278-279) que afirma que "Tudo indica que os interesses individuais homogêneos não são coletivos em sua essência, nem no modo como são exercidos, mas apresentam certa uniformidade, pela circunstância que seus titulares se encontram em certas situações, que lhes confere coesão suficiente para destacá-los da massa de indivíduos isoladamente considerados"

4. A LEGITIMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FRENTE À TUTELA DOS INTERESSES OU DIREITOS INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS

4.1 - O papel do Ministério Público no Estado Democrático e de Direito

Tradicionalmente, o papel do Ministério Público sempre foi a persecução penal. Desde a sua instituição republicana, em 1890, coube ao Ministério Público velar pela execução da lei e promover a ação pública, sendo que sua atuação era marcadamente no processo penal onde exercia, e ainda exerce, o monopólio da ação penal pública.

Com relação ao processo civil, a atuação do Ministério Público estava restrita àquelas causas em que haviam interesses de incapazes ou eram de interesse público.

Esse panorama começou a sofrer alterações a partir de 1.985, quando a Lei n° 7.347 atribuiu ao Ministério Público a titularidade da ação de proteção ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.

Titularidade esta que era concorrente, pois estavam também legitimados para propor a ação civil pública a União, os Estados e Municípios, as autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista, fundações e certas associações, que preenchessem os requisitos legais.

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor, também foi entregue ao Ministério Público legitimação ativa para a defesa coletiva dos consumidores, no que tange aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Estas novas atribuições cíveis dirigidas ao Ministério Público têm sua razão de ser.

O Ministério Público é uma das poucas instituições estruturadas no País, sendo que em cada comarca brasileira existe pelo menos um Promotor de Justiça atuando tanto na área civil quanto na área penal. Além do mais a Instituição prima pela independência e pela separação da magistratura e do Poder Executivo.

Sem falar que a sua tradição de independência foi acentuada pela Constituição Federal de 1988, que atribuiu ao Ministério Público uma série de atributos, entre eles, a unidade, a indivisibilidade, a independência funcional, a autonomia administrativa e financeira e garantias institucionais, tais como a vitaliciedade, irredutibilidade dos vencimentos e inamovibilidade, que lhe evidenciam cada vez mais o papel de guardião da sociedade e da ordem jurídica.

O papel exercido pela Instituição é tão relevante que foi consagrado pelo artigo 127, da Constituição Federal que o Ministério Público é "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis".

Por seu turno, dispõe o artigo 129, III, da Constituição Federal de 1988, que constitui "função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos", bem como, segundo o inciso IX, exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade.

Embora a Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, promulgada pela LC 40, de 14.12.81, tivesse inaugurado legislativamente a expressão "ação civil pública" , esta somente foi instituída pela Lei n° 7.347/85, que em seus artigos 1°, II e 5°, concedeu ao Ministério Público a legitimidade, que já tinha sido atribuída pela Lei Orgânica, para propor ações de responsabilidade por danos causados ao consumidor, ao meio ambiente e ao patrimônio público e social, quando se tratasse de direitos difusos e coletivos, de natureza indivisível e, a partir da vigência do Código de Defesa do Consumidor, dos interesses ou direitos individuais homogêneos, inclusive.

4.2 Como vêem os Tribunais a legitimidade Ministerial

Se por um lado reconhecemos a importância da inclusão do interesse ou direito individual homogêneo no rol dos interesses ou direitos metaindividuais, por outro não podemos deixar de fazer uma constatação quanto à grande dificuldade que se enfrenta para o reconhecimento da legitimidade do Ministério Pública em aforar ações civis públicas na defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos dos consumidores, nos termos do artigo 82, I, do CDC.

Infelizmente, tem sido inúmeras as decisões proferidas pelo Poder Judiciário em que não se reconhece a legitimidade do Ministério Público para a defesa dos interesses individuais homogêneos por uma série de razões que discorreremos neste estudo, mas que no fundo são inconsistentes e apenas revelam a grande influência da carga individualista vigente no processo civil.

Os argumentos utilizados para o afastamento da legitimidade Ministerial no tocante à defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos, em que pese existir autorização expressa da lei, são no sentido de que tais interesses ou direitos não constam expressamente nos dispositivos constitucionais, ou de que o artigo 127 da Constituição Federal exige um plus, qual seja a "indisponibilidade", como qualificativo dos "interesses sociais e individuais", ou porque a isolada circunstância do número expressivo de sujeitos abrangidos num dado interesse individual homogêneo não seria motivo suficiente para imprimir a nota de "relevância social" à espécie, que pudesse exsurgir a legitimação do Parquet ou, ainda, porque as ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos impõem aos beneficiários da sentença condenatória um direito que talvez eles não queiram exercer.

Outro argumento contrário à legitimação do Ministério Público, que merece ser ressaltado, é o de que basta que os interesses ou direitos individuais homogêneos possam ser defendidos em juízo individualmente, ou que seja possível a cada indivíduo lesado dentro da coletividade, de per se, postular a reparação desse direito ou interesse, para que se afaste, ipso facto, o uso da ação civil pública manejada pelo Ministério Público.

Felizmente tais posicionamentos encontram resistência, existindo Tribunais que vem reconhecendo a legitimidade conferida ao Ministério Público para a propositura de ações para defesa de interesses e direitos individuais homogêneos.

A título de exemplo encontramos decisão que está ementada da seguinte forma: "ACÃO CIVIL PÚBLICA - Propositura pelo Ministério Público - Defesa dos direitos individuais homogêneos - Admissibilidade - inteligência dos arts. 81, III e 82 do CDC. À luz do art. 82 do CDC tem o Ministério Público legitimidade para intentar ação civil pública, em defesa dos interesses individuais homogêneos." (RT 707/125).

5. DA POSIÇÃO DOS AUTORES

5.1 Do Conceito de Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos

Da leitura dos conceitos trazidos de outros autores podemos extrair as seguintes características principais dos interesses ou direitos individuais homogêneos: a) cuidam de um tratamento coletivo para interesses ou direitos que podem perfeitamente ser defendidos por instrumentos previstos no processo civil tradicional; b) abrange uma série de indivíduos identificados ou identificáveis; c) o objeto é cindível, divisível, atribuível a cada um dos indivíduos; d) não existe relação jurídica base entre os interessados; e) os interessados estão unidos entre si pelo simples fato de seus interesses decorrerem de uma causa comum.

Logo, direitos ou interesses individuais homogêneos são aqueles interesses que decorrem de um fato comum, correspondente ao ato lesivo ao ordenamento jurídico, permitindo desde logo a determinação de quais membros da coletividade foram atingidos.

Quando se fala em homogeneidade, deve-se ter em mente que tais direitos ou interesses devem decorrer de uma origem comum, ou seja, devem ser homogêneos qualitativamente e apresentados com uniformidade, de maneira a viabilizar a defesa coletiva. Para ser homogêneo basta a uniformidade qualitativa. Dispensada está a uniformidade quantitativa, pois com relação aos aspectos pessoais diferenciados, próprios de cada situação concreta, de cada consumidor, estes poderão ser postulados pelos próprios interessados em uma fase posterior denominada habilitação e que ocorre na liquidação da sentença genérica proferida por ocasião da ação coletiva.

É mister salientar que "origem comum" não significa, necessariamente, uma unidade factual e temporal. O importante é que tais lesões decorram de um fato comum, embora a forma, o tempo, a localidade, a quantidade das lesões sejam diferentes em relação a cada indivíduo.

Assim, seriam passíveis de defesa pela via da ação civil pública, as vítimas de uma oferta de produto veiculada por vários órgãos da imprensa e em repetidos dias ou de um produto nocivo à saúde adquiridos por vários consumidores num largo espaço de tempo e em várias regiões, pois as lesões decorreriam de um fato comum e presente está a homogeneidade.

Podemos citar como exemplos de interesses individuais homogêneos a cobrança abusiva de mensalidades escolares; os prejuízos causados a integrantes de planos para aquisição de bens móveis (p. ex.: telefones) e imóveis(p. ex.: apartamentos) ou de planos de saúde, de seguro; os prejuízos causados aos poupadores que tiveram suas cadernetas de poupança bloqueadas.

Importante também lembrar que em momento algum a lei fez referência ao número de pessoas que seriam necessárias para a caracterização do direito ou interesse individual homogêneo.

Desta forma, não é de ser aceito o argumento de que o mesmo somente pode ser tutelado pelo Ministério Público quanto abranger um número considerável de interessados posto que havendo a homogeneidade dos direitos e interesses de duas pessoas já é o suficiente para a caracterização do mesmo e, sua correspondente tutela pelo Ministério Público.

O que não pode ocorrer é a tutela pelo Ministério Público de um direito puramente individual mas, sendo o direito ou interesse a ser tutelado individual de mais de uma pessoa e, havendo homogeneidade entre eles, a legitimação é inquestionável.

Merece destaque ainda a possibilidade de o Ministério Público, ou qualquer outro legitimado, promover a defesa geral de todos os consumidores que se encontram em uma situação de homogeneidade de seus direitos individuais, mesmo quando apenas parte deles procura o Ministério Público para obter a tutela coletiva.

Do contrário, a exigir-se o pedido de tutela de todos, ou mesmo de uma maioria, chegaríamos a inviabilização de tal tutela, seja pela acomodação natural de nosso povo, seja pela maior ou menor pressão que parcela dos titulares dos interesses ou direitos individuais homogêneos possa sofrer.

Dessa forma, entendemos legítima a intervenção Ministerial no aforamento da competente ação civil pública, por exemplo, em favor de integrantes de um condomínio em construção, com cinqüenta apartamentos, no caso de correção abusiva das prestações, desde que receba, ao menos, uma única reclamação e, a comprovação de que há outros indivíduos na mesma situação, frente a causa comum.

Assim, podemos afirmar que interesse ou direito individual homogêneo é todo aquele que, possuindo mais de um titular, identificado ou identificável e, embora possa ter seu objeto divisível e até mesmo disponível, protegível individualmente, sem uma relação jurídica base entre os consumidores, têm uma causa comum.

5.2- Dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos como Direitos Indisponíveis Quando se realiza um estudo das questões relativas aos interesses ou direitos individuais homogêneos, partindo-se do pressuposto da defesa coletiva do consumidor, não se pode perder de vista que tal defesa é uma garantia constitucional de todos nós.

Tanto é assim que a Constituição Federal, no Título II, Capítulo I, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, dentro dos Direitos e Garantias Fundamentais, no seu artigo 5º, XXXII determina que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e, posteriormente, quanto trata da Ordem Econômica e Financeira inclui entre os princípios gerais da atividade econômica a ser seguido, o da defesa do consumidor (art. 170, V, CF).

Tais dispositivos constitucionais já poderiam nos levar a conclusão de que, em sendo função do Estado, como garantia constitucional do indivíduo, a defesa do consumidor, tal defesa possui um caráter de indisponibilidade, eliminando assim toda e qualquer discussão acerca da legitimação ativa do Ministério Público para promover as ações coletivas que tutelam os interesses e direitos individuais homogêneos dos consumidores.

Isto porque não se pode imaginar a Constituição Federal tutelando interesses de importância relativa.

Além disto, a nível infraconstitucional, encontramos o disposto no artigo 1º, do Código de Defesa do consumidor, no qual é afirmado que a questão do consumo é de ordem pública e interesse social.

Desta forma, afasta-se a alegação de que o artigo 127, da Constituição Federal, exige um plus, qual seja, a "indisponibilidade" como qualificativo dos interesses sociais e individuais, até porque, tal requisito se encontrará, sempre, presente.

Mas, mesmo que assim não fosse, podemos afirmar que a lei não distinguiu, ao mencionar direitos individuais homogêneos, se disponíveis ou não, se passíveis ou não de individualização.

Entendemos, portanto, que, como a lei considera as normas de consumo de ordem pública e de interesse social (art. 1°, CDC), devendo o Ministério Público obrigatoriamente atuar como fiscal da lei nas ações em que não for parte (art. 92, CDC), sob pena de nulidade, a proteção do consumidor é indisponível, cabendo assim ao Ministério Público velar pelos direitos indisponíveis e via de conseqüência pelos direitos decorrentes das relações de consumo.

Assim, havendo homogeneidade nas lesões causadas a dois, cinco, dez, vinte, cem consumidores, o Ministério Público tem o poder-dever de aforar ação civil pública para apurar a responsabilidade civil pelos danos causados por fornecedores de produtos e serviços, visto ser a proteção do consumidor direito indisponível ex lege, embora seja "disponível" factualmente falando. A necessidade de proteção ao consumidor justifica-se não por uma deficiência dele em velar pelos seus direitos, mas por uma flagrante desigualdade, de natureza econômica entre os sujeitos das relações de consumo, que leva à imposição de uma das partes à outra.

Sobre a questão encontramos preciosa lição de Nelson Nery Júnior (1995:358 e 366) a qual, corroborando o entendimento exposto afirma que "O art. 82 do CDC confere legitimidade ao Ministério Público para ajuizar ações coletivas na defesa de direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores. Assim agindo, a lei infraconstitucional (CDC) agiu em conformidade com a Constituição Federal, porque a defesa do consumidor, além de garantia fundamental (artigo 5°, inciso XXXII, CF), é matéria considerada de interesse social pelo artigo 1°, do CDC.

"Como é função institucional do Ministério Público a defesa dos interesses sociais (art. 127, "caput", CF), essa atribuição dada pelo art. 82, do CDC, obedece ao disposto no art. 129, inciso IX, CF, pois a defesa coletiva do consumidor, no que tange a qualquer espécie de seus direitos (difusos, coletivos ou individuais homogêneos) é, "ex vi legis", de interesse social.

" [...]

"O argumento de que ao Ministério Público não é dada a defesa dos direitos individuais disponíveis não pode ser acolhida porque em desacordo com o sistema constitucional e do CDC, que dá tratamento de interesse social à defesa coletiva em juízo. O "Parquet" não pode, isto sim, agir na defesa de direito individual puro, por meio de ação individual. Caso o interesse seja homogêneo, sendo defendido coletivamente (CDC, art. 81, pár. único, III), essa defesa pode e deve ser feita pelo Ministério Público (CDC, art. 82, I, por autorização da CF, artigo 129, IX e 127, "caput")."

Outro não é o entendimento de Marcus Vinícius Rios Gonçalves (1993:63), que com clareza expõe:

"A norma fundamental acerca da participação do MP é o artigo 1°, que estabelece que as normas de proteção e defesa do consumidor são de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, XXXII, 170,V, da CF e art. 48 das Disposições Transitórias. As normas são de ordem pública e interesse social. Do confronto entre o art. 1°, "caput" e o art. 127, da CF, verifica-se que o

Ministério Público deverá intervir em todos os processos em que se discutam relações de consumo, e em que controvertam fornecedores e consumidores. A intervenção ministerial é obrigatória e sua ausência gera nulidade, ainda que não resulte prejuízo ao consumidor. Isto porque as normas são de ordem pública por sua natureza, e porque assim as considerou o legislador. Nesse aspecto, são aplicáveis subsidiariamente, por serem inteiramente compatíveis com o sistema, as normas dos arts. 84 e 246, do CPC.

"A proteção do consumidor constitui direito indisponível, e cabe ao Ministério Público velar pelos interesses indisponíveis. "Sob este enfoque, podemos afirmar que, em qualquer situação, é possível o aforamento de ação civil pública ou de qualquer outra ação capaz à adequada e efetiva tutela dos interesses individuais homogêneos (art. 83 CDC), para a tutela do consumidor, posto que se estará tutelando, em qualquer situação, um interesse social indisponível.

5.3 Dos Interesses ou Direitos Individuais Homogêneos em si

Mesmo que não admitíssemos a tese anterior, a da indisponibilidade de todo e qualquer interesse ou direito relativo a defesa do consumidor, não podemos perder de vista dois aspectos que são de fundamental importância para o reconhecimento da legitimidade do Ministério Público para a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos.

O primeiro, o de que a lei é clara ao conferir ao Ministério Público, dentre outros legitimados, a legitimação para a tutela dos direitos ou interesses individuais homogêneos e, conforme já o afirmamos, sem fazer qualquer restrição quanto a quantidade de titulares e a disponibilidade ou não do objeto a ser tutelado.

E depois, o fato de a Lei 7.347/85, bem como a Constituição Federal, não terem se referido aos direitos e interesses individuais homogêneos como tuteláveis pelo Ministério Público não é motivo para sua não tutela, até porque, por uma questão cronológica, vemos que ambas são anteriores ao Código de Defesa do Consumidor, estatuto legal que criou os mesmos.

Aliás, extremamente importante lembrar que parcela da doutrina contrária foi escrita quando a Lei 7.347/85 não possuía no seu artigo 1º, em razão de veto presidencial, o inciso IV, que confere legitimidade àqueles referidos no artigo 5º, para proceder a defesa de "qualquer outro interesse difuso ou coletivo", entendendo-se aí, obviamente os direitos e interesses individuais homogêneos.

De acordo com os ensinamentos apresentados pelo ilustre Promotor de Justiça e Mestre em Direito, Paulo de Tarso Brandão, em sua obra "AÇÃO CIVIL PÚBLICA" (1996:124-125), "o fato de não inserir o legislador, já na Lei n° 7.347/85, o interesse individual homogêneo, deu oportunidade a que parte da doutrina e expressiva parcela da jurisprudência viessem a negar legitimidade àquelas entidades arroladas na lei como co-legitimadas para a defesa de interesses difusos e coletivos, analisando esta circunstância como condição da ação, por entenderem que o pedido de tutela judicial recaia sobre direito individual.

"Isto determinou, como é comum no âmbito do direito, que mesmo após o advento do Código de Defesa do Consumidor, em casos típicos de defesa da relação de consumo, a doutrina e a jurisprudência continuassem a desconsiderar tal dispositivo legal".

Já nos referimos anteriormente que o nosso ordenamento jurídico processual é de índole estritamente individualista, herança do sistema romano-germânico por nós adotado. A tutela coletiva dos direitos individuais homogêneos é recente e foi instituída no sistema a partir do Código de Defesa do Consumidor, razão dos percalços encontrados na aplicação dos mesmos.

Talvez, por esta razão, aqueles não admitem a legitimidade do Ministério Público na tutela dos interesses e direitos individuais homogêneos utilizam-se do argumento de que, assim agindo, o Ministério Público estaria substituindo a vontade individual pela vontade do portador em juízo dos interesses metaindividuais, não podendo, de forma alguma, reconhecer direitos aos cidadãos contra a sua vontade.

Preciosa é a intervenção de Ada Pellegrini Grinover (1993:218-219) quanto a esta questão: "Esse argumento incorre, "data venia", em equívoco conceitual grave, confundindo o reconhecimento dos direitos com a sua fruição.

"O reconhecimento de direitos aos indivíduos deflui do sistema normativo - e, antes mesmo, do direito natural - sem que se leve em consideração a autonomia da vontade. O direito à vida, à saúde, à segurança, ao ambiente, à propriedade; os direitos dos consumidores, dos usuários dos serviços públicos etc., são assegurados pela Constituição e pelas leis, independentemente da vontade dos beneficiários. Somente quanto a sua efetiva fruição, é que depende ela da vontade e da iniciativa do titular.

"Ora, a tutela jurisdicional dos interesses (ou direitos) individuais homogêneos, no sistema brasileiro, obedeceu rigorosamente a essa distinção. A ação coletiva, ajuizada pelo órgão público ou pelos entes associativos, em nome próprio e no interesse alheio, leva simplesmente a uma sentença condenatória genérica, que reconhece a existência do dano e estipula o dever de indenizar.

"Cessa, aqui, a substituição processual dos entes legitimados à ação coletiva dos arts. 91-100 do CDC.

"A seguir, a liquidação e execução da sentença, pelas vítimas ou seus sucessores, será promovida diretamente por estes, ou pelos legitimados às ações coletivas, mas agora a título de representação.

"Dependerá, portanto, da vontade do beneficiário da sentença habilitar-se individualmente à liquidação, em processo de conhecimento em que cada qual, em contraditório pleno, deverá provar não apenas o "quantum debeatur", mas também o "an", relativamente aos danos pessoalmente sofridos e o nexo etiológico com o dano global reconhecido na sentença condenatória.

"Decorre daí que nada se impõe ao beneficiário da indenização. A sentença condenatória estabelece, apenas, o direito ao recebimento do ressarcimento decorrente da responsabilidade civil por parte das vítimas do ato lesivo. Reconhece o seu direito à indenização.

" Mas para a fruição do direito, será necessária a iniciativa do lesado que, diretamente ou por seus representantes, deverá habilitar-se na liquidação, provando ainda seu dano pessoal e o montante deste. Nada poderão fazer os entes legitimados, se não forem solicitados pela iniciativa de cada indivíduo pessoalmente prejudicado.

Como vimos, no processo para a tutela dos direitos individuais homogêneos a causa de pedir e o pedido a ser formulado pelos legitimados do art. 82, do CDC, deverá ser genérico, assim como a sentença condenatória.

Ajuizada a ação, expedir-se-á edital para conhecimento de terceiros, a fim de que os consumidores possam intervir no processo como litisconsortes.

No entanto, reforçando a posição de que a atuação do Ministério Público na defesa dos interesses individuais homogêneos não substitui a vontade das partes, tem-se que os consumidores que não quiserem intervir, abrindo mão de seu direito de indenização, poderão omitir-se, já que seu direito individual homogêneo é divisível e disponível.

Assim, não haverá um processo cognitivo que apure individualmente todos os danos. O que ocorrerá é uma apuração genérica na qual a defesa processual dos direitos individuais homogêneos é feita de forma indivisível, ocasionando, desta feita, uma sentença condenatória genérica que reconhece a existência do dano geral e a responsabilidade do réu pelos danos causados, não individualizando os consumidores lesados.

Em uma fase posterior, haverá a habilitação dos consumidores, das vítimas ou seus sucessores, a título individual, momento no qual procederão a liquidação de sentença (diretamente ou pelas entidades legitimadas), devendo, nessa oportunidade, serem provados a existência do dano individual, o nexo de causalidade com o dano genérico apontado na sentença e o montante deste dano. Para isto é preciso que seja expedido novo edital após o trânsito em julgado da sentença.

Como podemos perceber, nesta fase de liquidação de sentença já não se trata mais de direito individual homogêneo, mas sim de direito estritamente individual que será apurado não em um mero processo de liquidação nos moldes tradicionais, mas sim em um autêntico processo cognitivo.

Com relação à coisa julgada podemos afirmar que o sistema tradicional vigente no processo civil brasileiro foi profundamente alterado pelo Código de Defesa do Consumidor, em razão da necessidade de tutelar-se de outra forma os direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Estabeleceu-se o sistema da coisa julgada secundum eventum litis, ou seja, nas ações coletivas para a defesa de interesses ou direitos individuais homogêneos, a coisa julgada terá eficácia erga omnes, em benefício do consumidor, somente se houver procedência do pedido.

Na eventualidade de o pedido ser julgado improcedente, por insuficiência de provas, mesmo assim o consumidor poderá, individualmente propor ação ressarcitória com o mesmo objeto, pois não há como dizer que houve coisa julgada, pelo simples fato de que as partes da ação coletiva e da ação individual seriam distintas.

Além desta situação, temos que o artigo 104, do Código de Defesa do Consumidor, embora com redação imprecisa, determina não haver litispendência entre a ação coletiva e aquela aforada pelo titular, individualmente, se ele entender mais conveniente o aforamento desta.

Essas situações mais uma vez vêm corroborar a tese de que a ação civil pública proposta pelo Ministério em defesa dos interesses e direitos individuais homogêneos não afronta a vontade dos indivíduos lesados.

Mesmo porque, uma vez que coexistem interesses e direitos coletivos e individuais, seria temerário fosse prejudicado um direito individual pela propositura da ação coletiva, quando justamente se pretendeu dar maior proteção àquele.

5.4 - Da Legitimação Propriamente dita

Em que pese grande parte da doutrina e da jurisprudência de nossos Tribunais ainda não aceitarem com facilidade a legitimação do Ministério Público na defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos, por intermédio da ação civil pública, tem-se presenciado uma discussão doutrinária, entre aqueles que aceitam tal legitimação, acerca da natureza da participação processual dos co-legitimados. E o debate é no sentido de se saber se tal legitimidade seria ordinária ou extraordinária; se seria substituição processual ou representação.

Ter legitimação para a causa significa, ter "legitimidade para agir em juízo", também denominada legitimatio ad causam. Uma das condições da ação, juntamente com o interesse de agir e a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade de agir, é no dizer de Alfredo Buzaid, "a pertinência subjetiva da ação". Só pode propor determinada ação aquele que está autorizado a demandar sobre o objeto da demanda.

No processo, a legitimação ordinária é a regra e a extraordinária é a exceção. Legitimação ordinária ocorre quando alguém, em nome próprio postula em Juízo direito próprio. Já a legitimação extraordinária, também denominada de substituição processual, é a possibilidade que a lei concede à alguém de, em nome próprio, defender interesse ou direito alheio.

Segundo princípios de direito processual civil comum, a legitimação extraordinária pode ser autônoma e exclusiva ou autônoma e concorrente. É exclusiva quando aquele que seria o legitimado ordinário está impedido de assumir a ação como parte principal. Doutra forma, é concorrente, quando o titular da relação jurídica de direito material não está impedido de assumir a posição de parte processual. Nesses termos, tem-se que a legitimação extraordinária somente ocorre se for exclusiva.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 82, optou por uma legitimação concorrente e disjuntiva. Isto significa que cada um dos co-legitimados pode propor a ação coletiva, sem necessidade da autorização dos demais, sendo facultativo o eventual litisconsórcio entre eles.

Segundo Arruda Alvim, legitimação concorrente para o Código de Defesa do Consumidor significa que qualquer um dos co-legitimados ex lege pode agir processualmente, independentemente da atividade simultânea de outro legitimado.

Já no que concerne à legitimação do Ministério Público para as ações de proteção dos interesses e direitos individuais homogêneos, a doutrina fala em substituição processual.

Ora, falar que a legitimidade é concorrente, que no caso dos interesses e direitos individuais homogêneos ocorre a substituição processual e que admite-se o litisconsórcio, é ir de encontro ao que dispõe os antigos princípios clássicos do processo civil e conceitos tradicionais das espécies de legitimação, citados anteriormente.

Assim, percebe-se claramente que o Código de Defesa do Consumidor é fruto de um pensamento moderno do direito e informado por princípios clássicos do direito e a questão da legitimidade, por ter outra natureza, em nenhum momento pode ser confundida com a legitimidade processual estudada na esfera do direito intersubjetivo.

Em razão disso, temos que a nossa herança individualista prejudica e por conseqüência retarda a compreensão de um interesse coletivo, tendo em vista que existe uma tendência normal na interpretação dos institutos de seguir os padrões clássicos, quando as questões processuais relativas às relações de consumo deveriam ser vistas e analisadas sob a égide do próprio Código de Defesa do Consumidor.

Ciente do caráter estritamente individual presente no Processo Civil, o legislador ao editar o Código de Defesa do Consumidor não pôs em relevo a defesa individual dos direitos e interesses do consumidor. Compreende-se que assim seja, porque as ações civis envolvendo conflitos intersubjetivos já estão, naturalmente, reguladas em sede específica que é o CPC, ou mesmo em leis extravagantes. O que o Código de Defesa do Consumidor dá ênfase é à defesa coletiva, como aliás não deixa dúvida o parágrafo único do artigo 81.

Levou um certo tempo, mas o legislador aos poucos apercebeu-se que a proteção de determinados interesses e direitos estava se tornando inviável pela via do instituto do litisconsórcio, justamente diante da imensidão de pessoas a esses ligadas.

E não foi por outra razão que a recente Lei n° 8.952/94 alterou o artigo 46, parágrafo único, do CPC, permitindo ao juiz a limitação do número dos litisconsortes facultativos, quando muito numerosos (litisconsórcio multitudinário) de forma a comprometer a rápida solução do litígio ou dificultar a defesa.

E como o elemento caracterizador dos interesses individuais homogêneos é o fato de derivarem de uma "origem comum", eles podem apresentar-se muito numerosos, de sorte que sua veiculação através da ação coletiva acaba sendo o mais adequado.

Por isso, foi bastante válida a iniciativa do Código de Defesa do Consumidor de introduzir em nosso ordenamento jurídico um instrumento processual para tutelar coletivamente direitos individuais. Além da dificuldade prática do ajuizamento de milhares de ações individuais, por parte dos prejudicados, conforme já mencionamos, nem sempre a reparação patrimonial compensaria ao indivíduo, isoladamente, enfrentar os custos de uma contenda judicial.

Já afirmava Mauro Cappelletti, citado por Sérgio Ricardo de Arruda Fernandes (1995:94): O consumidor que compra um produto com pequeno defeito equivalente a um dólar, não pode se defender individualmente, eis que aí se trata de um interesse fragmentado, demasiado pequeno para que o cidadão, individualmente, defenda seu direito. Mas se todos os consumidores, em conjunto, decidirem atuar, serão milhares de dólares, e não apenas um, pois milhares, centenas de milhares ou milhões de consumidores estarão comprometidos. Além dos interesses individuais de cada consumidor, há interesses difusos e coletivos, a demandar tratamento mais eficaz e sobretudo rápido".

Embora muitos doutrinadores considerem ser a legitimação do Ministério Público na ação civil pública de natureza extraordinária, na forma de substituição processual, começa a firmar-se o entendimento doutrinário de que o poder-dever de defesa dos interesses de natureza coletiva (em sentido amplo) é de natureza ordinária, porque ela decorre da lei e não da titularidade do interesse deduzido em juízo.

Entendemos que deva prevalecer tal entendimento, uma vez que as pessoas que não estiverem legitimadas pela lei a exercitar o direito de ação decorrente da ação civil pública, não poderão assim proceder, nem mesmo extraordinariamente, pois a lei não prevê a hipótese de substituição processual. É nesse sentido que se afirma ser tal legitimidade de natureza ordinária, e não no sentido clássico do processo civil comum, o qual, insistimos, quando se tratar de direitos coletivos lato sensu, só deve ser utilizado subsidiariamente.

Quanto a esta questão socorremo-nos novamente na lição de Brandão (1996:118-119) que afirma:

"Em síntese, a legitimidade para buscar em Juízo a tutela dos interesses coletivos (abrangendo com tal expressão os interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos) decorre de lei. Assim, na esfera da Ação Civil Pública não opera o conceito ou a noção de legitimidade extraordinária, uma vez que as pessoas jurídicas ou as instituições, são legitimadas por força de disposição legal; e, nesse caso, a legitimação é sempre ordinária. Qualquer outra pessoa que não seja legitimada por força de lei não poderá exercitar o direito de ação decorrente da Ação Civil Pública, pois em nenhuma hipótese poderá haver a substituição processual, ou seja, a legitimação extraordinária.

"Assim, quando a Ação Civil Pública é proposta por um dos co-legitimados previstos pela lei [...], resta somente indagar se o interesse que a ação busca tutelar é difuso, coletivo ou individual homogêneo."

Já criticamos mais de uma vez a visão individualista que se pretende dar ao trato de assuntos coletivos.

No caso dos direitos ou interesses individuais homogêneos não se pode, a nosso ver, falar em legitimação extraordinária, uma vez que, conforme já dito, o Ministério Público, bem como os demais legitimados, agem em nome próprio, tutelando os interesses de indivíduos que não possuem legitimidade para tal defesa coletiva.

Ressaltamos, para evitar qualquer confusão conceitual que, tal legitimação ordinária diz respeito exclusivamente ao manejo da ação civil pública ou de outra ação de cunho coletivo onde os consumidores, individualmente, não possuem legitimidade para a mesma, sendo a legitimação apenas daqueles elencados no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor.

Porém, tanto o Ministério Público, como os demais legitimados, não possuem legitimidade alguma, sequer extraordinária, para promover a tutela em sede de ação individual, dos mesmos interesses ou direitos individuais homogêneos, a qual deve ser realizada, individualmente pelo próprio consumidor lesado.

Assim, temos o caso em que a legitimação para a tutela dos interesses ou direitos individuais homogêneos será ordinária para os elencados no artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, quando se tratar de tutela coletiva e, também de legitimação ordinária para a tutela individual dos mesmos direitos e interesses, desde que feita pelo próprio titular, individualmente.

Se assim não fosse, seria de se indagar: se o Ministério Público, bem como os demais co-legitimados, têm legitimação extraordinária, quem seria o legitimado ordinário para a tutela coletiva dos interesses individuais homogêneos se, conforme já visto, os consumidores individualmente não podem manejar a ação civil pública?

6. CONCLUSÕES

Por tudo o que foi exposto nos é possível chegar as seguintes conclusões:

a) O interesse ou direito individual homogêneo é todo aquele que, possuindo mais de um titular, identificado ou identificável e, embora possa ter seu objeto divisível e até mesmo disponível, protegível individualmente, sem uma relação jurídica base entre os interessados, tem uma causa comum.

b) Pode o Ministério Público, ou qualquer outro legitimado, promover a defesa geral de todos os consumidores que se encontram em uma situação de homogeneidade de seus direitos individuais, mesmo quando apenas parte deles procura o Ministério Público para obter a tutela coletiva.

c) As questões relativas a defesa do consumidor são de ordem pública e de interesse social.

Assim, tem o Ministério Público legitimidade para a tutela dos interesses ou direitos que ali se incluam.

d) Mesmo que não fossem as questões relativas aos direitos do consumidor de ordem pública, a lógica levaria a possibilidade do aforamento de ação civil pública, pelo Ministério Público, para a proteção dos interesses ou direitos individuais dos consumidores, até para evitar o aforamento de um grande número de ações semelhantes, ou até mesmo idênticas, as quais teriam tramitação lenta, pelo volume e, correriam o risco de receber soluções conflitantes para problemas que têm origem comum.

e) A legitimação do Ministério Público, bem como dos demais co-legitimados, para o aforamento da ação civil pública em defesa dos interesses ou direitos individuais homogêneos é ordinária.

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(*) Ex-coordenador das Promotorias de Defesa do Consumidor do Centro das Promotorias da Coletividade do Ministério Público de Santa Catarina.


Data: 08/11/2004

Fonte: Tycho Brahe Fernandes e Angela Silva Guimarães

 

 

*Promotor de Justiça **Advogada

 

 

Disponível em: http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2561 acesso em 12.09.05