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Salário Mínimo Estadual?
Arion
Sayão Romita*
Sumário: 1 - República federativa; 2 - Repartição de competências; 3 - Salário mínimo e piso salarial; 4 -
Inconstitucionalidade de piso salarial estadual?
1.
República federativa
O Brasil é uma república federativa
(Constituição, art. 1º).
A teoria geral do Estado distingue entre formas
de governo e formas de Estado.
Quanto às formas de governo, os Estados se
classificam em monarquias ou repúblicas, parlamentaristas ou presidencialistas.
Quanto às formas de Estado, este pode ser
simples ou composto. Os Estados simples são os unitários. Os Estados compostos
são a união pessoal, a união real, a confederação e a federação.
Deixando de lado formas de Estado hoje
inexistentes, pode dizer-se que os Estados são unitários ou federais.
Estados unitários são, por exemplo, Portugal,
Itália, França. Entre os Estados federais podem ser citados, na Europa, a
Suíça, a Áustria e a Alemanha. O nome oficial não influi: a Confederação
Helvética (isto é, a Suíça) é uma federação.
No continente americano, os Estados Unidos
constituem a federação típica. As treze colônias inglesas da América
proclamaram sua independência no século XVIII e constituíram inicialmente uma
confederação, logo transformada em federação.
No Brasil, a federação é uma produção
artificial. Ao contrário dos Estados Unidos, Estado federal formado
espontaneamente da união de entidades autônomas (as antigas colônias), o Brasil
se tornou uma federação por imitação do modelo norte-americano.
O Império Brasileiro era um Estado unitário. As
províncias não eram autônomas. Ao proclamar-se a República, por influência de
Rui Barbosa, a Constituição de 1891 declarou ser o Brasil um Estado federal. A
memória da organização unitária, contudo, persistiu e persiste até hoje.
Ao longo de sua história, o Brasil oscila entre
o predomínio da descentralização própria da organização federativa e a
concentração peculiar ao Estado unitário. Mesmo que conserve nominalmente a
característica de federação, o poder se concentra na União, como se se tratasse
de um Estado unitário. Simbólico é o episódio ocorrido durante o Estado Novo de
Getúlio Vargas, quando, em cerimônia realizada na Praia do Russel, no Rio de
Janeiro, foram incineradas as bandeiras dos Estados, sendo proibida a execução
dos respectivos hinos. A oscilação entre o primado da concentração unitária e a
descentralização própria da federação é uma constante na história do Brasil.
No continente americano, além do Brasil, são
federações, por exemplo, o México, a Venezuela, a Argentina, sempre por
influência dos Estados Unidos.
O Estado unitário se caracteriza pelo
reconhecimento de uma única fonte de elaboração legislativa. A federação
reconhece duas esferas de elaboração e validade do direito positivo. No Estado
unitário, as leis emanam unicamente do governo central, ao passo que, na
federação, coexistem normas legais produzidas pelo governo central, com
eficácia em todo o território nacional, e leis editadas pelos Estados-membros
(ou províncias), cuja validade se esgota na área do respectivo território.
2.
Repartição de competências
O pressuposto da autonomia das entidades
federadas, para que possam exercer sua atividade normativa, é a repartição de competências.
O fulcro da organização do Estado federal reside na distribuição constitucional
de poderes entre a União, os Estados-membros e os Municípios.
A natureza e as características históricas da
federação determinam os limites da repartição dos poderes entre o governo
central e os entes federativos. A maior concentração de poderes no governo
central gera uma competência mais acentuada da União (como no Brasil), ao passo
que, se os Estados-membros desfrutam autonomia mais dilatada (como nos Estados Unidos),
a respectiva área de competência se amplia.
O princípio que rege a distribuição de
competência é o da predominância do interesse. Sempre que predominar o
interesse geral, nacional, a competência será da União, enquanto assistirão aos
Estados os assuntos de preponderante interesse regional, cabendo aos Municípios
as questões de interesse local.
As técnicas de repartição de competências, que
distribuem os poderes enumerados e os remanescentes entre a União e os Estados,
eram basicamente três: 1ª – enumeração dos poderes da União, ficando para os
Estados os poderes remanescentes; 2ª – enumeração dos poderes reservados aos
Estados, sendo os remanescentes atribuídos à União; 3ª – enumeração das
competências das entidades federativas, relacionando-se os poderes da União e
os dos Estados.
A evolução histórica do regime federativo e o
aumento das funções do Estado contemporâneo determinaram o surgimento de novas
técnicas de repartição de competências.
O Brasil adota no presente, mercê do disposto
na Constituição de 1988, um sistema complexo: além da enumeração dos poderes da
União (arts. 21 e 22) e de poderes remanescentes para os Estados (art. 25, §
1º) e poderes definidos para os Municípios (art. 30), a Constituição prevê
possibilidades de competência comum (art. 23), de delegação (art. 22, parágrafo
único), de competência suplementar dos Estados (art. 24, §§ 2º e 3º),
competência da União para estabelecer normas gerais no âmbito da legislação
concorrente (art. 24, § 1º).
Há casos de competência exclusiva e de
competência privativa da União. Enquanto, no primeiro caso, a competência não
pode ser delegada (art. 21), no segundo ela é suscetível de delegação (art. 22,
parágrafo único). O caput do art. 22 relaciona as matérias em que à União
compete privativamente legislar, mas o parágrafo único dispõe que lei
complementar poderá autorizar os Estados a legislar sobre questões específicas
das matérias relacionadas no referido artigo.
Como se vê, as competências podem ser
classificadas de acordo com vários critérios (forma, conteúdo, extensão e
origem). No particular, interessa-nos agora apenas a classificação quanto à
extensão: a competência pode ser exclusiva; comum; cumulativa ou paralela;
concorrente ou suplementar.
Caso típico de competência privativa é o
regulado pelo art. 22, que prevê a competência privativa da União para legislar
(entre outros) sobre direito do trabalho, enquanto o parágrafo único do mesmo
preceito faculta à lei complementar autorizar os Estados a legislar sobre
questões específicas do direito do trabalho, por exemplo, sobre piso salarial.
3.
Salário mínimo e piso salarial
Seria inconstitucional a lei complementar que
autorizasse os Estados a legislar sobre salário mínimo, porque de acordo com a
regra do art. 7º, inciso IV, ele é "nacionalmente unificado", isto é,
deve existir apenas um salário mínimo em todo o território nacional. Não teria
sentido autorizar os Estados a fixar níveis mínimos de salário, de sorte que
daí resultassem salários mínimos diversificados.
O salário mínimo foi instituído no Brasil pela
Lei nº 185, de 14 de janeiro de 1936, mas os níveis salariais mínimos foram
fixados pela primeira vez pelo Decreto-lei nº 2.162, de 1º de maio de 1940.
Esses níveis eram bastante variados, de acordo com as diferentes regiões (isto
é, os Estados), oscilando entre o menor, de 120 mil réis (Maranhão e Piauí), e
o máximo, de 240 mil réis (Distrito Federal, hoje município do Rio de Janeiro,
então Capital da República).
O salário mínimo era fixado, portanto, de
acordo com diversas regiões. Neste sentido, dispunha o art. 76 da Consolidação
das Leis do Trabalho, mediante preceito que inspirou o art. 157, I, da
Constituição de 1946, que também alude a "regiões" (condições de cada
região). A referência a "regiões" foi mantida pelas subseqüentes
constituições, mas a Carta vigente, de 1988, determinou fosse o salário mínimo
"nacionalmente unificado". No curso do tempo, as revisões do salário
mínimo foram reduzindo o número de regiões, até que, pelo Decreto-lei nº 2.351,
de 7 de agosto de 1987 (instituiu o "piso nacional de salários"), foi
fixado valor único para o salário mínimo em todo o Brasil. A Constituição de
1988 apenas consagrou a tendência que já se fixara na legislação ordinária.
Note-se, porém, que os níveis salariais eram
diferentes em cada unidade da Federação, mas os Estados não interferiam na
respectiva fixação. Os valores eram determinados por decreto do Presidente da
República. Diversidade nos valores, mas centralização na fonte de declaração
dos referidos valores – eis o lema que durante quase cinco decênios norteou a
legislação do salário mínimo no Brasil.
Verificou-se no Brasil, em tema de valores do
salário mínimo, uma evolução em três etapas: 1ª – diferentes níveis de salário
mínimo de acordo com as regiões; 2ª – progressiva redução do número de regiões;
3ª – salário mínimo único em todo o território nacional.
Infrutífera seria, em conseqüência, qualquer
tentativa dos legisladores estaduais que redundasse em níveis diversificados
para o salário mínimo. Tal lei estadual padeceria do vício de
inconstitucionalidade, porquanto o salário mínimo, nos termos do já citado
inciso IV do art. 7º da Constituição da República, é nacionalmente unificado.
Igual raciocínio se aplicaria ao piso salarial?
O art. 7º da Constituição inclui entre os
direitos dos trabalhadores (inciso V) "piso salarial proporcional à
extensão e à complexidade do trabalho".
Ao contrário do que sucede relativamente ao
salário mínimo, que é objeto de definição por lei, nenhum texto legislativo
brasileiro conceitua "piso salarial". A expressão foi consagrada pela
prática de negociação coletiva, figurando no texto de convenções e acordos
coletivos de trabalho. Incluída na "pauta de reivindicações" de
dissídios coletivos suscitados pelos sindicatos de trabalhadores, acabou por
ser adotada também pelos tribunais do trabalho, que a empregavam nas sentenças
normativas. A expressão foi incluída em prejulgados e instruções normativas do
Tribunal Superior do Trabalho, daí passando diretamente para o texto da
Constituição da República.
Na verdade, a expressão "piso
salarial" se opõe a "teto", aludindo a primeira a um limite
inferior e, a outra, a um valor máximo. A referida expressão (piso salarial)
não tem significado técnico e jamais foi definida de modo satisfatório, por lei
ou mesmo na doutrina.
Várias expressões são empregadas para designar
níveis inferiores de salário: salário mínimo, mínimo profissional, salário
profissional, piso salarial, salário normativo. Com exceção da primeira,
nenhuma delas é empregada com rigor científico. A expressão "salário
mínimo", sim, é consagrada internacionalmente, utilizada em textos da
Organização Internacional do Trabalho e goza de tradição nos meios doutrinários
trabalhistas. As demais, porém, não designam conceitos precisos: pelo
contrário, seu significado varia de acordo com o contexto em que são
utilizadas.
Inexiste consenso entre os autores que comentam
a Constituição quanto ao significado da expressão "piso salarial",
consagrada pelo inciso V do art. 7º, já mencionado. Para alguns, trata-se de
cláusula inserta em convenções coletivas e decisões normativas pela qual é
vedada a admissão de novos trabalhadores com salário inferior ao nível
decorrente do reajustamento concedido (na verdade, não seria "a
cláusula", mas o nível salarial por ela fixado). Este entendimento se
aplicaria com mais propriedade ao "salário normativo", como tal
conceituado pelas sentenças normativas proferidas pelos tribunais do trabalho
no julgamento dos dissídios coletivos. Segundo outros autores, tratar-se-ia do
salário normativo próprio de uma categoria profissional, confundindo-se com o
salário mínimo de uma categoria ou atividade. Há quem sustente que se trata de
mera modalidade de salário mínimo.
Em março do ano 2000, quando se iniciaram os
debates em torno da majoração do salário mínimo (que era de 136 reais por mês),
algumas correntes de opinião sustentavam que ele deveria passar a equivaler
pelo menos a cem dólares norte-americanos, o que produziria o resultado de 180
reais por mês. Lideranças políticas de prestígio nacional advogavam a fixação
de valores ainda mais altos, enquanto setores governamentais da área econômica
e previdenciária defendiam o mínimo de 150 reais. Prevaleceu o valor de 151
reais por mês, em vigência a partir de 3 de abril de 2000 (Medida Provisória nº
2.019, de 23 de março de 2000, mais tarde convertida na Lei nº 9.971, de 18 de
maio de 2000).
No curso desses debates, surgiu a idéia de se
retornar ao antigo regime de mínimos regionais: os Estados que entendessem
plausível um valor do salário mínimo mais elevado que o de 151 reais por mês
deveriam tomar essa iniciativa. Haveria, contudo, o óbice constitucional: a
Constituição veda a adoção de salários mínimos locais ou regionais.
Verificou-se então que o parágrafo único do art. 22 da Constituição prevê a possibilidade
de se delegar aos Estados, mediante lei complementar, a tarefa de legislar
sobre questões específicas de direito do trabalho, vale dizer, poderiam os
Estados legislar não sobre salário mínimo, mas sobre piso salarial.
4.
Inconstitucionalidade de piso salarial estadual?
Nunca houve, na doutrina trabalhista, dúvida
quanto à fixação de piso salarial ou de salário profissional por meio de lei. O
Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional a fixação de piso salarial
ou de salário profissional por sentença normativa proferida pelos tribunais do
trabalho, exatamente sob o fundamento de que se tratava de matéria submetida ao
princípio da reserva legal: só mediante lei poderiam ser definidos tais
institutos, o que levou o Tribunal Superior do Trabalho, em certa ocasião, a
adotar o salário dito normativo, com o que obteve os sufrágios favoráveis do
Supremo Tribunal.
Viável, portanto, seria a fixação de piso
salarial por meio de lei, mas em princípio por lei federal. Para que os Estados
legislassem a respeito deste assunto, deveriam ser previamente autorizados por
lei complementar.
Com este objetivo, o Poder Executivo remeteu ao
Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar nº 113, de 2000, pelo qual
ficam os Estados e o Distrito Federal autorizados a instituir o piso salarial a
que se refere o art. 7º, inciso V, da Constituição, por aplicação do disposto
no seu art. 22, parágrafo único. Buscava-se alcançar a possibilidade de fixação
de piso regional diferenciado, admitindo-se, pela primeira vez, a participação
local na definição de níveis salariais inferiores, o que resulta no
fortalecimento do federalismo. Na verdade, do ponto de vista político, a
instituição do piso salarial descentralizado constitui um avanço na democracia
participativa, pois este processo deverá estimular os trabalhadores a se
articular para a melhoria salarial das diferentes categorias profissionais.
O projeto de lei em apreço teve rápida
tramitação no Congresso e, sancionado pelo Presidente da República,
transformou-se na Lei Complementar nº 103, de 14 de julho de 2000 (publicada no
DOU de 17 de julho).
O art. 1º dessa lei autoriza os Estados e o
Distrito Federal a instituir, mediante lei de iniciativa do Poder Executivo, o
piso salarial de que trata o art. 7º, inciso V, da Constituição, para os
empregados que não tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou
acordo coletivo de trabalho. Esta autorização não poderá ser exercida no
segundo semestre do ano em que se realizarem eleições para os cargos de
governador e deputado estadual nem em relação à remuneração dos servidores
públicos municipais (§ 1º). Por outro lado, o referido piso salarial poderá ser
estendido aos empregados domésticos (§ 2º).
Será inconstitucional a lei complementar em
questão? Não parece. A Lei Complementar nº 103 insere-se perfeitamente na
previsão do art. 22, parágrafo único, da Constituição. De acordo com a previsão
constitucional, a lei complementar simplesmente autoriza os Estados a legislar
sobre questão específica de direito do trabalho, qual seja o piso salarial de
que trata o inciso V do art. 7º. Portanto, não há autorização para legislar
sobre salário mínimo (previsto pelo inciso IV). Caso a autorização visasse ao
salário mínimo, a inconstitucionalidade seria flagrante. Mas o vício não está
presente, quando se trata de legislar sobre piso salarial, que pode ser
diversificado, tal como previsto pela Lei Complementar nº 103.
Cabe indagar se será inconstitucional a lei
estadual que fixar piso salarial (válido apenas no território do Estado que
tomar essa iniciativa). Aqui, terá cabimento o debate em torno do significado
da expressão "piso salarial". Se ela se aplicar exclusivamente ao
mínimo de cada categoria, não é de se esperar que uma lei genérica defina o
mínimo em sentido amplo para todos os trabalhadores do Estado. É certo que a
lei complementar autoriza legislação estadual válida para os empregados que não
tenham piso salarial definido em lei federal, convenção ou acordo coletivo de
trabalho, e, assim, pode prevalecer o entendimento de que o piso salarial
definido na lei estadual é aplicável às diferentes categorias profissionais,
pouco importando que seja definido um só nível para todas elas.
No fundo, a decisão de argüir a
inconstitucionalidade da lei estadual que fixar piso salarial se resolverá no
plano político. Não é de se esperar que algum dos legitimados a que se refere o
art. 103 da Constituição tenha interesse político na propositura da ação direta
de inconstitucionalidade. Qual seria o resultado do acolhimento do pedido? A
redução dos salários dos trabalhadores e servidores – objetivo que não seduz...
Uma afirmação parece fora de dúvida: se
inconstitucionalidade houver, ela residiria não na lei complementar, mas na lei
estadual que, em cada caso, fixar piso salarial local ou regional.
*Da Academia Nacional de Direito do
Trabalho
Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_20/artigos/art-airon.htm
acesso em 12.09.05