® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Paulo
Valério Dal Pai Moraes*
1- Introdução; 2- Realidade de direito material e realidade de direito
processual; 3- Conceito de indivisibilidade; 4- Negativa de vigência ao artigo
4º do CDC; 5- Negativa de vigência ao artigo 93 do CDC; 6- Diferenças entre
Ação Civil Pública e Ação Coletiva de Consumo; 7- Negativa de vigência aos
artigos referentes à coisa julgada, no CDC; 8- A existência de dissídio
jurisprudencial; 9- Conclusões.
1- INTRODUÇÃO:
A Lei nº 9.494/97 tentou instituir uma
nova sistemática na questão relativa à coisa julgada nas ações civis públicas,
tendo disciplinado que o artigo 16 da Lei nº 7.347/85 passaria a ter nova
redação, no sentido de que os efeitos "erga omnes" estariam restritos
à competência territorial do órgão prolator da decisão.
Reza o artigo 16, na redação dada
pela Lei 9.494/97:
"A sentença civil fará coisa
julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator,
exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas,
hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico
fundamento, valendo-se de nova prova". (grifo nosso)
Inicialmente, devem ser buscadas as
origens do dispositivo, identificando-se que a Lei 9.494/97 decorreu de
interesse direto do Poder Executivo Federal, que estava sendo constantemente
restringido nas suas políticas gerenciais, especificamente no trato dos
problemas salariais dos funcionários públicos e no que tange ao processo de
privatizações.
De fato, várias decisões, em sede de
juízo de verossimilhança, foram concedidas pelo Poder Judiciário contra atos
administrativos do Poder Executivo Federal, obrigando a serem efetuados
pagamentos imediatos a servidores públicos ou, até mesmo, suspendendo leilões,
sob pena de sanções, inclusive de responsabilidade criminal, além de multas.
Em decorrência disso, foi exarada a
medida provisória 1.570/97 sobre o assunto, a qual se converteu na Lei nº
9.494/97, cujo texto se encontra "sub judice" no Supremo Tribunal
Federal, eis que foi intentada ação de inconstitucionalidade e, recentemente,
proposta pelo Presidente da República e pelas Mesas da Câmara dos Deputados e
do Senado Federal ação de constitucionalidade, a qual tem o número 4.
A lei não terá, por uma série de
motivos, qualquer relevância prática, os quais passamos a declinar:
2- REALIDADE DE DIREITO MATERIAL E
REALIDADE DE DIREITO PROCESSUAL (mundos completamente distintos):
O primeiro argumento que importa,
diz respeito ao fato de que deve ser feita a distinção entre ação de direito
material e ação de direito processual.
Com efeito, ação de direito material
é, ao contrário de uma mera tentativa, uma ação idônea para a realização de
determinada atividade no âmbito do direito material, capaz de realizar de
maneira cogente aquilo que o infrator não tenha desejado fazer voluntariamente.
Por isso, a correta definição de
jurisdição é também fundamental para o entendimento do ora comentado, pois
somente com o reconhecimento da atividade substitutiva do estado-juiz é que se
torna possível apreender o significado real da ação de direito material.
Tolhido que foi o homem que vive em
sociedade relativamente à possibilidade de realizar privadamente ações
tendentes à efetivação da defesa dos seus direitos subjetivos, necessitará
sempre da tutela estatal para tanto, oportunidade em que o Juiz objetivará
fazer, em substituição, exatamente aquilo que o lesado faria, caso possuísse
tal possibilidade.
Obviamente falamos em tese, haja
vista que existe um grande número de variáveis que influem em um julgamento
final. Assim, dificuldades de provar determinados elementos técnicos, provas
testemunhais falsas, dificuldades financeiras das partes, carências técnicas
dos profissionais envolvidos nos litígios e muitos outros fatores podem fazer
com que o conhecimento dos fatos controvertidos não seja feito da maneira
desejável, resultando em algum desvio em relação ao que deveria ocorrer, em
termos ideais de justiça, caso fosse possível uma atividade privada, direta,
imediata e proporcional do lesado, no sentido de proteger seu direito
subjetivo.
É preciso salientar, na forma do que
aponta o Professor Ovídio A. Baptista da Silva, que "ter direito é ter, em
última análise, a faculdade de gozá-lo".
Em assim sendo, somente podemos
dizer que possuímos o direito de ação quando temos todo o poder, o domínio de
efetivá-lo. Ou seja, para gozar plenamente do direito de ação, não basta uma
mera tentativa ou uma exortação ao infrator do direito subjetivo para que faça
algo, sendo necessário, isto sim, a ampla imposição de determinada alteração da
realidade a ele, sendo irrelevante a sua vontade.
A ação de direito material,
portanto, em rápidas palavras, é o exercício cogente do direito inato do ser
humano de proteger seus direitos subjetivos, que se orienta contra um eventual
opositor, com vistas à manutenção ou consecução de determinado bem-da-vida, que
poderá ser alcançado até mesmo em uma ação predominantemente declaratória.
A partir da revolução industrial,
com a massificação da produção, e, conseqüentemente, das lesões ao mercado de
consumo, a concepção de defesa judicial "duelística", baseada no
individualismo e no conceito de direitos subjetivos, tornou-se insuficiente,
estimulando, assim, novas idéias tendentes a abarcar em apenas uma ação inúmeros
sujeitos lesados. Surgem, desta forma, os interesses transindividuais, cujas
origens, segundo Márcio Flávio Mafra Leal, estariam já no direito medieval ou
no direito inglês do século XVII.
Na atualidade, os entes coletivos
passam a atuar como substitutos processuais, representando inúmeros lesados e
recebendo toda a "herança" dos direitos que foram lesados ou estão na
iminência de ser lesados no mundo material, ou seja, toda a necessidade de ação
que os substituídos materialmente possuem de obrigar o futuro demandado a
fazer, deixar de fazer ou pagar alguma coisa. Em suma, os substituídos devem
obter, por intermédio da jurisdição, exatamente aquelas "ações
materiais" imprescindíveis para a concretização da justiça e satisfação
dos direitos transubjetivos, que assumiram esta condição por fatores reais e
não meramente conceituais.
Ação processual, por sua vez,
corresponde ao exercício do direito público subjetivo à tutela jurisdicional,
de caráter abstrato e dirigido contra o Estado.
O titular deste direito subjetivo
age contra o Estado, posto que ele é o devedor por excelência da obrigação de
fornecer ordem e segurança, por intermédio do cumprimento das atividades
jurisdicionais precípuas, as quais tendem a realizar a paz social, dirimindo
eventuais conflitos, sejam eles reais ou meramente imaginários.
De fato, grande número de demandas
postas ao poder judiciário não possuem qualquer fundamento fático, devendo o
Estado, mesmo assim, prover o pedido de tutela jurídica, nem que seja para
certificar a inexistência dos direitos subjetivos materiais que o demandante
alegava ou imaginava existirem.
Em assim fazendo, fica evidenciado,
então, que a ação processual é abstrata, no sentido de que independe da real
existência de amparo concreto em circunstâncias fáticas ou jurídicas, bastando
o mero "agir" processual, ou seja, o mero exercício de pretensão
processual frente ao Poder Judiciário, para que se concretize a ação
processual.
O agir do interessado contra o
Estado será constante ao longo da demanda, podendo ser identificado
simultaneamente a esta atitude também um agir contra o demandado ou réu.
Com efeito, entendemos que a ação
processual também é orientada diretamente contra o obrigado, existindo uma
série de atos processuais concretos orientados em oposição a ele, obrigando-o a
exercer defesa.
Veja-se, também, que se a ação é o
exercício de um direito preexistente, e que todos indistintamente possuem o
direito à jurisdição, não há como negar que o demandado, quando exerce este
direito à jurisdição, também aciona o Estado, buscando o cumprimento da
obrigação de fornecer, em substituição, a resolução de algum conflito.
Seja através da reconvenção, que
ninguém nega que seria legítima ação, seja por intermédio de um agravo de
instrumento ou uma apelação, o demandado age objetivando algum provimento
estatal que lhe beneficie frente ao autor da demanda, sendo uma atividade
positiva e de ataque ao autor, o qual, nestas circunstâncias, deverá reagir,
apresentando réplicas, contra-razões ou realizando qualquer conduta tendente a
impedir que a "ação" do réu predomine em relação a sua.
O importante, realmente, é
identificar a existência da realidade de direito material e a realidade de
direito processual, a fim de que melhor possam ser compreendidos os fenômenos
jurídicos, bem como para que o trabalho forense, que tende à obtenção de
utilidade, possa ser desenvolvido da maneira mais profícua possível.
Postos estes conceitos, podemos
dizer que as conceituações existentes no artigo 81 do CDC, quais sejam as de
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, não dizem respeito ao
âmbito do direito processual, mas material, definição esta importantíssima.
De fato, os interesses acima citados
possuem natureza fática imutável por qualquer tipo de determinação legal que
venha a tentar o estabelecimento de novas regras processuais, ou seja, o
direito material não pode ser desarticulado por aspectos instrumentais
(processuais), pois, na forma já vista, são mundos completamente apartados.
Assim, jamais uma regra instrumental
terá o condão de dispor, por exemplo, que os efeitos de uma publicidade
enganosa veiculada por televisão ou rádio não engloba interesses difusos, pois
isto é uma realidade em si mesma, independentemente de qualquer ficção que
tenha o objetivo de dispor em contrário.
O mesmo se diga de uma sentença de
divórcio. Ela será exarada em uma determinada jurisdição, mas os efeitos
positivo e negativo da coisa julgada se espraiarão por todo o território do
país, em que pese existirem no sentido regras de competência territorial
(processuais) restritivas.
Desta forma, se os interesses são
difusos, coletivos ou individuais homogêneos, eventual decisão que conceda a
ação de direito material veiculada na ação processual para a defesa daqueles
somente poderá ter como limite o espectro de abrangência das lesões
perpetradas, bem como a localização dos sujeitos que se enquadrem naquelas
realidades jurídicas (juridicizadas pelo reconhecimento de que são realidades
fáticas que merecem a proteção da norma legal).
Exemplo claro está nos já referidos
contratos de adesão, que são oferecidos nacionalmente por grandes empresas. Se
forem consideradas nulas determinadas cláusulas abusivas destes
"pactos", em ação coletiva de consumo, a eficácia deverá ser
"erga omnes" e limitada às pessoas lesadas e ao campo de existência
de lesões, potenciais ou efetivas, na forma já vista.
No mesmo sentido é o comentário de
Márcio Mafra, quando escreve que "...não se deve deixar de atribuir razão
a Grinover, na passagem transcrita, quando chama atenção para a
transindividualidade (ou indivisibilidade) do direito material e suas
conseqüências em termos de eficácia objetiva e subjetiva do que é determinado
em sentença (o seu comando), pois o cumprimento ou implementação de um direito
difuso inexoravelmente aproveitará de maneira uniforme ao grupo ou à comunidade
a quem esse direito já atribuído, mesmo que não participe do processo...".
Continuando (fl. 44 da obra), "...quando um juiz determina a interrupção
de uma publicidade enganosa, da emissão de um poluente ou a recuperação de um
área histórica, a decisão que atender ao direito material formará uma coisa
julgada que beneficiará toda a comunidade, sem que a norma processual
necessariamente diga que esta coisa julgada tenha de ser "erga
omnes".
Como resultado, o regime da coisa
julgada nas ações que envolvem interesses difusos é completamente inócuo, pois
a extensão do julgado será comandada pelo direito material, cuja realidade em
si é suficiente para o delineamento dos limites subjetivos e objetivos da
"res iudicata".
Por isso, não há como limitar a
eficácia de uma sentença da forma tentada pela Lei 9494/97. O processo é
instrumento a serviço do direito material, jamais podendo atropelá-lo.
3- O CONCEITO DE INDIVISIBILIDADE:
Confirmando o acima dito, Arruda
Alvim, Thereza Alvim, Eduardo Arruda Alvim e James Marins assim abordam o
assunto:
"O sistema do Código de
Proteção e Defesa do Consumidor considera, opera e trabalha, especialmente, com
o bem jurídico dos interesses e direitos difusos, tanto no plano material,
quanto no plano processual. A partir das regras constantes no plano do direito
material e da possibilidade de serem infringidas, caracterizam-se os ilícitos
(ou lesões), os quais podem atingir a coletividade, i. e., pessoas
indeterminadas; e, no plano processual, foram previstas as defesas coletivas,
inibidoras, impeditória, ou mesmo reparatórias de lesões materiais, se
consumadas...
A atomização dos interesses e
direito difusos, espalhados e desagregados em relação a inumeráveis titulares
dispersos, configura e se traduz, no plano do direito processual, pela
impotência dos lesados para o agir individual, até porque torna a respectiva
defesa extremamente difícil, dispendiosa e na verdade, quando se realiza
exclusivamente através da tutela individual, inviável em termos práticos."
Ada Pellegrini Grinover ensina:
"...a própria indivisibilidade do objeto estenderá necessariamente os
efeitos favoráveis da sentença a todos que se encontrarem na mesma situação em
relação à parte contrária..."
Também sobre o tema são os
comentários de José Menezes Vigliar:
"...se o interesse é
essencialmente indivisível e o da modalidade difuso: como limitar os efeitos da
coisa julgada a determinado território? Ainda: quando o dano for de proporção
tal (como por exemplo o chamado dano regional, ou seja, aquele que atinge mais
de uma comarca ou até mais de um Estado-membro) que vá além dos limites de uma
determinada comarca (foro, já que é a isso que a medida deve estar se
referindo), como se aplicaria o preceito?"
Ou seja, se o dano é de âmbito
nacional, por exemplo, uma publicidade enganosa, um contrato bancário de
adesão, um remédio falso produzido em todo o Brasil, a indivisibilidade dos
interesses difusos ou coletivos "stricto sensu" que emergem destas situações
FÁTICAS, REAIS, CONCRETAS, MATERIAIS, necessariamente fará com que eventual
sentença de procedência ABRANJA EXATAMENTE A MESMA EXTENSÃO DO OBJETO LITIGIOSO
EXAMINADO PELO PODER JUDICIÁRIO.
A Lei nº 9494/97 busca impedir esta
abrangência óbvia, trazendo como conseqüência o que segue:
a- busca limitar a utilidade do
Poder Judiciário, pois intenta, por intermédio de um argumento falacioso,
restringir por regra de competência (processual - ficção jurídica) a realidade
das coisas, como se o direito processual pudesse evitar as ocorrência do mundo
material;
b- concretiza evidente negativa de
vigência a lei federal, dado que, por obra do artigo 117 do CDC, toda a parte
processual do CDC se aplica à Lei nº 7347/85 (ressalte-se este argumento, pois
a Lei nº 9494 somente alterou a Lei da Ação Civil Pública e não as regras do
CDC).
A negativa de vigência acontece
porque não respeitado o conceito de indivisibilidade, o qual determina que a
resolução do problema de um dos lesados, por intermédio da ação coletiva,
acarretará automaticamente a resolução do problema de todos os lesados.
Falando em termos mais práticos,
declarada a cláusula 5 de um contrato de adesão de banco nula, beneficiará não
somente o consumidor que representou ao Ministério Público para que este intentasse
a ação necessária, mas automaticamente a todos os que eventualmente também
tenham sido ou venham (art. 29 do CDC - expostos as práticas abusivas) a ser
maculados pela mesma ilegalidade.
O mesmo ocorre em uma publicidade
enganosa ou com remédios que causam danos à saúde ou perigo de morte. Acolhida
a sentença coletiva iniciada por representação de consumidor (não que isto seja
necessário, apenas se usa o exemplo para facilitar a compreensão),
automaticamente, todos os lesados, em qualquer parte do Brasil, devem ser
beneficiados, sob pena de o requisito da indivisibilidade ser completamente
inócuo.
De fato, como algo indivisível
poderia ser dividido por uma regra que diz que a sentença se restringirá
"à competência territorial do órgão prolator"?
Pois se a coisa julgada das supra
referidas sentenças se limitasse à competência territorial do órgão prolator e
tal competência se restringe a um Estado da Federação, obviamente estaria sendo
dividido, por regra de processo (ficção, criação jurídica), o que é indivisível
no mundo da realidade, da matéria.
Como resultado, acolhido que fosse o
argumento, um contrato em que foram reconhecidas pelo Poder Judiciário gaúcho
como existentes inúmeras ilegalidades, abusividades de pleno direito, oferecido
em todo o Brasil, seria considerado nulo somente no Rio Grande do Sul, em que
pese ter sido declarada a nulidade em ação coletiva.
Como resultado, também, os
jurisdicionados, a sociedade indagariam: "O Banco pode abusar, ofender,
macular o mercado de consumo de forma massificada, mas o Poder Judiciário,
agindo nos termos da lei e com todo o respaldo de poder concedido
constitucionalmente (princípio da jurisdição única) não pode restringir também
em massa os abusos?
Em outra situação: O Poder
Judiciário gaúcho, em ação coletiva, define que determinado remédio causa a
morte de pessoas e determina a retirada do produto do mercado. A ordem de
exclusão do remédio do mercado tenta ser executada no Paraná, em Goiás, em
todos os demais Estado e não se concretiza porque será dito que a Lei nº
9494/97 limitou a eficácia da coisa julgada "erga omnes" ao Estado do
Rio Grande do Sul. Desta forma, enquanto não é intentada a mesma ação já
proposta neste Estado em todos os demais, simplesmente pessoas desavisadas
continuam a morrer.
Este não é um argumento
teratológico, é um exemplo de realidades que acontecem diariamente.
Por isso, preferir uma interpretação
formal e afastada da realidade, com a devida vênia, é desrespeitar o princípio
maior da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Em situações ambientais as questões
fáticas evidenciam ainda mais o descabimento do que pretende a Lei nº 9494/97.
Figuremos a situação em que uma
determinada indústria com filiais em vários estados se utilize de insumo tóxico
que causa danos de monta ao meio ambiente e à vida das pessoas. Trânsita em
julgado no Rio Grande do Sul decisão que determine à empresa que suste a
utilização do insumo, é possível conceber que os efeitos da coisa julgada se
limitem ao nosso Estado e que os danos ao meio ambiente e à saúde das pessoas
residentes em outros Estados continuem a sofrer os prejuízos já identificados.
Estes exemplos demonstram que as
alterações introduzidos no sistema jurídico e constantes no CDC,
especificamente no artigo 81 (tipos de interesses coletivos) e 103 (coisa
julgada nas ações coletivas), precisam ser de uma vez por todas implementadas,
sob pena de o sistema estimular o descrédito em relação a ele junto aos
jurisdicionados, ocorrências estas que a história demonstra serem muito fáceis
de acontecer, e que de fato acontecem, quando as criações normativas humanas
não possuem unidade, coerência e adequação axiológica aos anseios dos
destinatários.
Assim, a Lei nº 9.494/97 preconiza a
negativa de vigência ao artigo 81, parágrafo único, incisos I e II, do CDC, nas
situações em que incorretamente são estendidos os efeitos das novas disposições
do alterado artigo 16 da Lei nº 7.347/85, pois, como se demonstrará, a Lei nº
9.494 não se aplica ao Código de Defesa do Consumidor.
4- NEGATIVA DE VIGÊNCIAS AO ARTIGO 4º
DO CDC:
Caso a Lei nº 9.494/97 fosse
aplicável ao CDC, a restrição dos efeitos "erga omnes" de uma
sentença coletiva infringiria os mais importantes dispositivos da Lei
Consumerista, dificultando a defesa dos consumidores coletivamente
considerados, maculando os princípios da vulnerabilidade do consumidor e da
repressão eficiente aos abusos praticados ao mercado de consumo, além de
afrontar os direitos básicos do consumidor constantes no artigo 6º do CDC.
Conforme ensinou Eros Roberto Grau,
os princípios acima citados são o alicerce do microssistema consumerista, pelo
que a infração a eles se constitui em flagrante lesão ao sistema jurídico como
um todo, configurando, assim, evidente aplicação incorreta da norma legal que
concretizar a infração.
A Lei nº 9.494/97, sem dúvida, fere
estes princípios, pois intenta criar uma limitação à ampla, rápida e eficaz
defesa dos consumidores vulneráveis, haja vista que busca fazer com que várias
ações com o mesmo objeto e interesses lesados sejam propostas em juízos diversos,
quando apenas uma seria necessária.
Em assim o fazendo, diminuiria o
poder de barganha, a força dos consumidores coletivamente considerados, os
quais poderiam contribuir para harmonizar (equilibrar) o mercado de consumo,
pois os agentes econômicos, sabedores de que com o ingresso de apenas uma ação
judicial eventuais abusos massificados seriam prontamente neutralizados,
prefeririam dialogar diretamente com os consumidores, seja individual, seja
coletivamente, alcançando-se, assim, a auto-regulação sem a intervenção do
Estado.
Aliás, relembre-se a fabulosa
palestra proferida pelo Doutor Paulo Salvador Frontini (na época diretor de um
grande banco com abrangência nacional) no Congresso do Consumidor ocorrido no
Banco Central em março de 1994 (a fita foi degravada judicialmente em processo
que impugnava a existência de várias cláusulas abusivas existentes em contratos
de banco oferecidos massificadamente em todo o Brasil), quando afirmou que a
maioria dos contratos bancários contém inúmeras abusividades, mas que elas não
são retiradas dos formulários, porque os dirigentes fazem um cômputo dos
prejuízos que auferem com a perda de poucas ações individuais que impugnam
algumas disposições ilegais e comparam com os ganhos que auferem com os
resultados decorrentes das cláusulas abusivas (muito superiores às perdas),
concluindo, obviamente, pela manutenção das mesmas.
Esta incrível realidade ainda não
foi integralmente compreendida por alguns Tribunais brasileiros, o que somente
contribui para que não seja concretizado um dos principais objetivos do
direito, que é a PREVENÇÃO, bem como para que os foros continuem a ser
entulhados por discussões sobre cláusulas, que poderiam ter sido evitadas.
Por último, estaria sendo ferido o
princípio da repressão eficiente aos abusos no mercado de consumo, na medida em
que, por mera ficção, criação processual, óbvio formalismo, estariam sendo
exigidas inúmeras demandas iguais, quando elas são completamente
desnecessárias.
Desta forma, estariam sendo
desrespeitados e sendo negada vigência ao artigo 4º, inciso I (reconhecimento
da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo), inciso III
(harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo) e
inciso VI (coibição e repressão eficientes de todos os abusos praticados no
mercado de consumo).
Também estaria sendo negada vigência
ao artigo 4º, inciso II (ação governamental no sentido de proteger efetivamente
o consumidor) e o inciso VII (racionalização e melhoria dos serviços públicos),
já que o serviço público de prestação da jurisdição não estaria tendo a
abrangência que a lei lhe determina.
5- NEGATIVA DE VIGÊNCIA AO ARTIGO 93
DO CDC:
A Lei nº 9.494/97 dispôs que os
efeitos da decisão ficarão restritos à competência territorial do órgão
prolator.
Ora, conforme ensina Ada Pellegrini
Grinover "... a competência territorial nas ações coletivas é regulada
expressamente pelo art. 93 do CDC...E a regra expressa da lex specialis é no
sentido da competência da Capital do Estado ou do Distrito Federal nas causas
em que o dano ou perigo de dano for de âmbito regional ou nacional...Assim,
afirmar que a coisa julgada se restringe aos `limites da competência do órgão
prolator¿ nada mais indica do que a necessidade de buscar a especificação dos
limites legais da competência, ou seja, os parâmetros do art. 93 do CDC, que
regula a competência territorial nacional e regional para os processos
coletivos."
Por isso, as regras de competência
continuam as mesmas, nada tendo sido alterado. Aliás, o fato de ser
estabelecida a competência no foro da Capital do Estado ou do Distrito Federal
para os danos de âmbito nacional ou regional, em nada interferia nos efeitos da
coisa julgada "erga omnes", sendo e continuando a ser evidentemente
compatíveis as regras do artigo 93 com as do artigo 103 do CDC.
Neste particular, deve ser
evidenciada uma interpretação óbvia, qual seja: por que existiria a previsão no
artigo 93 das situações de dano local, regional e nacional se, ao final, e
neste último caso, a resolução dos danos de âmbito NACIONAL SE LIMITARIAM EM
TERMOS DE COISA JULGADA AO ESTADO?
Esta é a demonstração de que uma
coisa é o direito processual e outra o direito material.
Esta é a demonstração de que uma
coisa é a competência e outra, bastantes diferente, a eficácia da coisa
julgada. São institutos que não podem ser confundidos.
As regras de competência, segundo
Athos Gusmão Carneiro servem para "...encontrar critérios a fim de que as
causas sejam adequadamente distribuídas aos juízes, de conformidade não só com
o superior interesse de uma melhor aplicação da Justiça, como, também, buscando
na medida do possível atender ao interesse particular, à comodidade das partes
litigantes."
Especificamente tratando do tema,
escreve o mesmo autor as seguintes lições:
"Conforme dispõe o art. 2º da
Lei n. 7.347, as ações civis públicas devem ser propostas `no foro do local
onde ocorrer o dano¿, competência dita `funcional¿, o que se justifica, como
acentua Hely Lopes Meirelles (Mandado de Segurança, Ação Popular e Ação Civil
Pública, 11.ed., p. 120), pela facilidade de obtenção da prova testemunhal e de
realização das convenientes perícias.
Em se tratando de danos ocorridos em
escala nacional ou regional, o foro competente será o da capital do Estado,
aplicando-se as regras do Código de Processo Civil aos casos de competência
concorrentes (aplicação analógica do art. 93 da Lei n. 8.078 - Código de
Proteção ao Consumidor)".
A transcrição supra, aliás, foi
reproduzida em petição do Ministério Público Federal (Dr. André de Carvalho
Ramos - Procurador da República) juntada ao processo nº 97.0047171-3, que
tramita na 18ª Vara Cível de São Paulo, referente a ação coletiva que impugna
conduta da TELESP relativamente a obstáculos impostos aos consumidores para a
livre transferência dos direitos de uso à linha telefônica.
Nas palavras do referido Procurador
da República, "...seria totalmente descabido considerar que em caso de
dano nacional, sendo a ação civil pública promovida no Distrito Federal, os
efeitos da decisão seriam RESTRITOS AO PRÓPRIO DISTRITO FEDERAL, como se dano
local fosse. Tal interpretação desconsideraria a divisão entre dano local e
dano nacional...".
No mesmo trabalho é citado José
Frederico Marques:
"Razões de ordem prática
obrigam o Estado a distribuir o poder jurisdicional, entre vários juízes e
tribunais, visto não ser possível que um só órgão judiciário conheça de todos
os litígios e decida de todas as causas... Cada juiz ou tribunal exerce suas
funções dentro dos limites impostos pela divisão do trabalho jurisdicional, derivando
daí o instituto da competência."
Também relevantes são os comentários
de Rodolfo de Camargo Mancuso , buscando esclarecer a diferença entre a
competência e os efeitos das sentenças nas ações coletivas:
"É preciso sempre ter presente
que a coisa julgada material não é efeito de um julgado (como o são a ordem, a
condenação, a declaração, a desconstituição), e sim, como demonstrado por
Liebman, uma qualidade que num determinado momento cronológico, se agrega
àqueles efeitos, tornando-os imutáveis. Essa imutabilidade, que num momento
cronológico anterior já se formara `para dentro¿ do processo, assim introjetada
perante as próprias partes, ante o esgotamento dos prazos recursais (=
preclusão máxima, coisa julgada formal), passa a ter potencializada sua eficácia,
na medida em que esta se projetar também em face dos terceiros (dito efeito
erga omnes), até como condição para a plena realização prática do bem de vida
assegurado no comando jurisdicional, dado o entrelaçamento das relações
interpessoais na sociedade civil.
De sorte que a questão de saber
quais as pessoas atingidas por essa `autoridade da coisa julgada¿ deve ser
tratada sob a rubrica dos limites subjetivos desse instituto processual dito
`coisa julgada¿ e não, nos parece, sob a óptica de categorias outras, como a
jurisdição, a competência, a organização judiciária. Aqueles limites...no
âmbito das ações de tipo coletivo - justamente porque aí se lida com
indeterminação de sujeitos e com indivisibilidade do objeto - o critério deve
ser outro, porque impende atentar para a projeção social do próprio interesse
metaindividual. Tudo assim reflui para que a resposta judiciária, no âmbito da
jurisdição coletiva, desde que promanada de juiz competente, deve ter eficácia
até onde se revele a incidência do interesse objetivado, e por modo a se
estender a todos os sujeitos concernentes, e isso, mesmo em face do caráter
unitário desse tipo de interesse, a exigir uniformidade do pronunciamento
judicial.
Por exemplo, se o pedido numa ação
civil pública em curso perante juiz competente (Lei 7.347/85, art. 2º, c/c CDC,
art. 93) é que se interdite a fabricação de medicamento tido como nocivo à
saúde humana, a resposta judiciária (inclusive como liminar) não pode, a nosso
ver, sofrer condicionamento geográfico, seja porque não caberia falar numa
`saúde paulista¿, distinta de uma `saúde gaúcha¿, seja porque, de outro modo,
se teria que admitir a virtualidade de ação coletiva concomitante, em outra
sede, ao risco da prolação de julgados porventura contraditórios, gerando caos
e perplexidade. Ou, ainda, suponha-se uma ação civil pública ambiental onde se
pede a interdição do uso de mercúrio no garimpo de ouro, atividade realizada ao
longo de um rio que atravessa vários Estados: como a decisão judicial que
acolhe a ação poderia ser realmente eficaz, se os seus efeitos práticos
ficassem circunscritos em termos dos limites territoriais do Juízo prolator da
decisão?( Nem por outro motivo, aliás, o art. 93 do CDC distingue entre `dano
nacional, regional e local¿...)".
Ora, o que ocorre se o litigante é
um ente coletivo?. Se é, por exemplo, o Ministério Público, na busca de defesa
do interesse público e da relevância social, não haveria como ser aplicada uma
regra que viesse a tornar incômoda e dificultosa sua atuação, pois seria afrontosa
ao interesse de "...uma melhor aplicação da Justiça" (citação do
Prof. Athos Gusmão Carneiro).
Seria igualmente afrontoso à
aplicação da justiça não considerar que o trânsito em julgado de uma ação
coletiva, julgada por vários juízes e desembargadores, não pudesse espraiar
seus efeitos para todos aqueles que eventualmente tenham sido lesados pela
mesma "origem comum" (seja ela decorrente de uma circunstância fática
- interesses difusos ¿ ou de uma relação jurídica base - interesses coletivos
"stricto sensu").
Por isso, evidentemente que a Lei nº
9494, quanto objetivou alterar o artigo 16 da Lei nº 7347/85, na interpretação,
data venia, incorreta que eventualmente é feita, feriria frontalmente o artigo
93 do Código de Defesa do Consumidor.
Não se olvide que o artigo 93 do CDC
alterou as regras de competência para o processo individualista (duelístico) do
Código de Processo Civil quando a questão "sub judice" diga respeito
à relação de consumo e a danos de massa.
6-DAS DIFERENÇAS ENTRE AÇÃO CIVIL PÚBLICA
E AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO:
Tudo o que até aqui foi dito
considerou uma interpretação incorreta, em nosso entender, de que a Lei nº
9494/97 se aplicaria ao Código de Defesa do Consumidor.
Em realidade, a Lei nº 9.494/97 foi
orientada apenas para as ações civis públicas, não atingindo, portanto, as
ações coletivas a que se refere a Lei Consumerista.
Várias evidências reforçam este
entendimento, todas de ordem prática e voltadas para a utilidade do sistema:
a- O artigo 90 do CDC é assim
escrito:
"Aplicam-se às ações previstas
neste Título as normas do Código de Processo Civil e da Lei nº 7347, de 24 de
julho de l985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não
contrariar suas disposições." (grifo nosso).
Interpretando esta chamada norma de
intercâmbio das duas leis, fácil é a conclusão de que não se aplica toda a Lei
da Ação Civil Pública ao CDC, MAS SOMENTE AQUELAS PREVISÕES QUE NÃO
CONTRARIAREM AS DISPOSIÇÕES DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A LEI É CLARA NO
SENTIDO.
Ora, se não se pode utilizar a ação
civil pública integralmente para a defesa dos interesses consumeristas, como
conseqüência, impossível dizer que eventual ação de consumo seja ação civil
pública.
Na verdade, no Código de Defesa do
Consumidor existem AÇÕES COLETIVAS, as quais possuem regras próprias, somente a
elas pertencentes, que, eventualmente recebem o acréscimo, o auxílio, a
complementação das AÇÕES CIVIS PÚBLICAS, quando isto não venha a contrariar as
disposições consumeristas.
Aliás, a mesma regra existe na outra
norma de intercâmbio do CDC, constante em seu art. 17. Transcreva-se:
"Acrescente-se à Lei nº 7347,
de 24 de julho de l985, o seguinte dispositivo, renumerando-se os seguintes:
Art. 21. Aplicam-se à defesa dos
direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os
dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do
Consumidor".
O TÍTULO III - DA DEFESA DO
CONSUMIDOR EM JUÍZO - (assim está escrito nos Códigos), corresponde exatamente
à parte processual do CDC, indo do artigo 81 até o artigo 104.
Verifica-se no dispositivo a mesma
exceção: "...no que for cabível...".
Assim, somente se aplicam as
disposições do CDC à Lei da Ação Civil Pública naquilo que for cabível.
Como resultado, as disposições das
Ações Coletivas do CDC também podem complementar, auxiliar, acrescer às Ações
Civil Públicas regras de processo que sejam compatíveis.
Diante disso, seria aceitável dizer,
"contrario sensu", que as AÇÕES CIVIS PÚBLICAS são as mesmas AÇÕES
COLETIVAS DE CONSUMO?
Seria o mesmo, "data
venia", que dizer que AÇÃO POPULAR e AÇÃO CIVIL PÚBLICA são a mesma ação,
somente porque alguns dispositivos da primeira embasaram a criação da segunda.
Portanto, para nós a resposta à
pergunta supra é óbvia, somente podendo ser negativa.
Por isso que o artigo 16 da Lei nº
7347 (Lei da Ação Civil Pública), alterado pela Lei nº 9494/97, não se aplica
ao Código de Defesa do Consumidor.
Primeiro porque a Lei nº 9494/97
nenhuma referência fez ao Código do Consumidor.
Segundo porque as disposições do
artigo 16 alterado, quando incorretamente interpretadas, CONTRARIAM AS
DISPOSIÇÕES CONSUMERISTAS, não podendo, portanto, ser aplicadas, por expressa
determinação do artigo 90.
Aplicar o artigo 16 da Lei nº 7347,
desta forma, nega vigência ao artigo 90 do CDC e ao próprio artigo 117 do mesmo
Código.
b- Uma série de outros elementos comprovam as diferenças entre as ações civis
públicas e as ações coletivas de consumo.
Veja-se que a denominação do
Capítulo II, do Título III, do CDC é "Das ações coletivas para a defesa de
interesses individuais homogêneos".
No artigo 87 também é vista a mesma
denominação:
"Nas ações coletivas de que
trata este Código..."
O mesmo se vê no artigo 103 do CDC,
que trata da coisa julgada:
"Nas ações coletivas de que
trata este Código, a sentença fará coisa julgada..."
Para solidificar estes conceitos,
cita-se Carlos Maximiliano, o qual apresenta algumas regras importantes de
aplicação do direito:
"Odiosa restringenda,
favorabilia amplianda: restrinja-se o odioso; amplie-se o favorável;
Commodissimum est, id accipi, quo
res de qua agitur, magis valeat quam pereat: prefira-se a inteligência dos
textos que torne viável o seu objetivo, em vez da que os reduza à inutilidade;
Verba cum effectu sunt accipienda; as
leis não contém palavras inúteis;"
Restrinja-se o "odioso",
que seria obrigar a que indivíduos lesados por remédios letais continuem a
estar submissos a esta situação.
Restrinja-se o "odioso",
que seria permitir que um contrato de massa bancário, que lesa todo um país,
somente tenham suas abusividades reprimidas no Estado a que pertence o Tribunal
prolator, criador da coisa julgada "erga omnes".
Restrinja-se o "odioso",
que seria autorizar que uma publicidade televisiva nacional - existia uma que
induzia crianças a furtar, outra em que um biscoito era atirado em um
precipício e um rapaz se atirava para salvar o biscoito (soube-se que crianças
teriam sofrido conseqüências letais tentando fazer a mesma coisa) -, que
eventualmente tenha o Poder Judiciário determinado a sua retirada da mídia, se
limitasse somente ao Estado a que pertence o Tribunal, enquanto os graves
reflexos da publicidade continuam a ocorrer nos outros Estados.
Deve ser preferida, igualmente, a
exegese que torne os textos legais viáveis e úteis, como ensina Carlos
Maximiliano, pois não existe qualquer utilidade em não estender a eficácia de
uma sentença coletiva à toda a extensão do dano.
Também não existe qualquer utilidade
em obrigar o Ministério Público, as associações, etc, a propor a mesma ação
coletiva que já foi ajuizada e que, após longos anos de trâmite, chegou ao seu
final com um resultado positivo para a sociedade.
Por último, se a lei contém uma ação
que se chama de "civil pública" e outra chamada "ação
coletiva", necessário que se faça uma interpretação que as distinga, a fim
de que sejam respeitadas as regras de aplicação do direito e os próprios
fundamentos da lei do consumidor, cujo maior mérito foi, justamente, reconhecer
o necessário tratamento coletivo para a coibição das agressões massificadas do
mercado de consumo, não sendo admissíveis, portanto, operações de interpretação
que impeçam tais objetivos.
Assim, se a lei distinguiu, foi por
motivos de necessidade, cabendo ao intérprete obedecer a esta realidade
dogmático-jurídica, sob pena de ser desvirtuada a natureza das normas, o que
ocorreria caso fosse realizada uma operação hermenêutica que tornasse a
denominação do CDC sobre "ação coletiva" inútil.
Sem dúvida, então, que a restrição
tentada pela Lei nº 9.494/97, por não ser adequada às situações veiculadas no
Código do Consumidor, deve ficar limitada às ações que objetivem pagamentos de
salários ou vantagens do funcionalismo, pois este foi o motivo original, sendo
este o processo hermenêutico mais correto.
c- A diferença entre ação civil
pública e as ações coletiva do CDC também se evidencia pela existência de
disposições processuais que não estão no título III (parte processual do CDC -
arts. 81 até 104) e que, portanto, não se aplicariam, de "lege lata",
à Lei da Ação Civil Pública, dado que o artigo 117 transcrito remete para a Lei
nº 7347 apenas o Título III.
Com efeito, no artigo 6º, inciso
VIII, do CDC é dito o que segue:
"Art. 6º- São direitos básicos
do consumidor:
VIII- a facilitação da defesa de
seus direitos, com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil,
quanto, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele
hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência";
Esta é a regra "ope
judice" de inversão do ônus da prova, existente no CDC.
Também nos artigo 12, parágrafo 3º,
e 14, parágrafo 3º, ambos do CDC, constam regras distintivas:
"O fabricante, o construtor, o
produtor ou importador só não será responsabilizado quando provar..."
"O fornecedor de serviços só
não será responsabilizado quanto provar..."
Estas duas das regras de inversão do
ônus da prova "ope legis", portanto obrigatórias e não sujeitas à
discricionariedade do juiz como no caso anterior, que somente existem, de
"lege lata", para as ações coletivas de consumo.
Outra regra de inversão do ônus da
prova "ope legis" está no artigo 38 do CDC:
"O ônus da prova da veracidade
e correção da informação ou comunicação publicitária cabe a quem as
patrocina."
Tais regras não existem na Lei nº
7.347, pelo que não é possível, também por estes argumentos, dizer que AÇÃO
CIVIL PÚBLICA é a mesma coisa que AÇÃO COLETIVA DE CONSUMO, quando muitas são
as diferenças.
d- Por fim, o "nomen
juris" da ação civil pública é criticado na doutrina, pois não se
identifica um motivo coerente para tal designação.
Seria civil público por causa do
objeto tutelado? Teria este nome por causa da legitimação do Ministério
Público? O nome teria sido utilizado para diferenciar da ação penal pública?
Mas outros entes também podem ser autores e, neste caso, porque chamar de
pública a ação?
Tudo isto fez com que o legislador
passasse a adotar denominações específicas para ações específicas, o que ocorre
no Código de Defesa do Consumidor, que possui as ações coletivas de consumo
para a defesa dos interesses envolvidos nas relações jurídicas de consumo.
A doutrina acolhe esta evidente
distinção, apenas a título de ilustração sendo citada passagem em que Rodolfo
de Camargo Mancuso assim se manifesta:
"Na ação civil pública, na ação
popular e nas ações fundadas no Código de Defesa do Consumidor...".
Todos estes aspectos, portanto,
esclarecem que regras de direito processual e regras de direito material
distintas não podem ser tratadas igualmente.
7- DA NEGATIVA DE VIGÊNCIA DOS
ARTIGOS REFERENTES À COISA JULGADA E AS CONSEQÜENTES INCONSTITUCIONALIDADES DA
LEI Nº 9.494/97:
a- Verifica-se, ainda, que a Lei nº
9.494/97 fere frontalmente os fundamentos da coisa julgada.
Em abordagem por nós realizada,
afirmamos que o fundamento político da coisa julgada reside precisamente no
fato de que "...as relações interpessoais, muitas vezes dividindo,
permutando, criando ou simplesmente realizando a circulação dos bens-da-vida,
necessitam de relativa estabilidade e segurança, tudo com vistas à continuidade
de desenvolvimento. Assim, não haveria progresso econômico e social, caso as
contendas surgidas nas atividades antes mencionadas não fossem definitivamente
solucionadas, ficando pacificado o convívio coletivo."
No Código de Defesa do Consumidor, a
coisa julgada está no artigo 103, o qual é assim escrito:
"Nas ações coletivas de que
trata este Código, a sentença fará coisa julgada:
I- erga omnes...na hipótese do
inciso I do parágrafo único do art. 81;
II-ultra partes...quando se tratar
da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art. 81;
III-erga omnes, na hipótese do
inciso III do parágrafo único do art. 81."
Os incisos se referem aos interesses
difusos, coletivos "stricto sensu" e individuais homogêneos.
A questão da negativa de vigência do
artigo 103, Lei Federal, é abordada com perfeição por Ada Pellegrini Grinover,
pelo que se transcreve:
"De início, os Tribunais não
perceberam o verdadeiro alcance da coisa julgada erga omnes , limitando os
efeitos da sentença e das liminares segundo critérios de competência. Logo
afirmamos não fazer sentido, por exemplo, que ações em defesa dos interesses
individuais homogêneos dos pensionistas e aposentados da Previdência Social ao
recebimento da diferença de 147% fossem ajuizadas nas capitais dos diversos
Estados, a pretexto dos limites territoriais dos diversos órgãos da Justiça
Federal. O problema não é de competência: o juiz federal, competente para
processar e julgar a causa, emite um provimento (cautelar ou definitivo) que
tem eficácia erga omnes, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do
Brasil. Ou a demanda é coletiva, ou não é; ou a coisa julgada é erga omnes ou
não o é. E se o pedido for efetivamente coletivo, haverá uma clara relação de
litispendência entre as várias ações ajuizadas nos diversos Estados da
Federação.
Por isso sustentamos que a limitação
operada por certos julgados afronta o art. 103 CDC e despreza a orientação
fornecida pelo art. 91, II, por onde se vê que a causa que verse sobre a
reparação de danos de âmbito nacional ou regional deve ser proposta no foro da
Capital do Estado ou no Distrito Federal, servindo, evidentemente, a decisão
para todo o território nacional."
É evidente, então, a afronta ao
artigo 103 do CDC, sendo por mais este argumento passível a eventual interposição
de Recurso Especial.
Todavia, o que mais impressiona é
confundir o instituto processual da "competência" com o da
"eficácia erga omnes da coisa julgada".
A competência, na forma já dita,
serve apenas para dividir racionalmente a diversidade de causas, conforme
ensina Athos Gusmão Carneiro, nada tendo a ver com as eficácias ou os efeitos
das sentenças.
Sobre eficácias e efeitos das
sentenças, não pode ser omitida a precisa lição de Ovídio A. Baptista da Silva:
"Levando em conta o que acaba
de ser visto, cremos chegado o momento de estabelecer uma distinção
fundamental, nem sempre levada em conta pelos processualistas, entre eficácias
e efeitos da sentença. A primeira categoria - das eficácias - faz parte do
`conteúdo¿ da sentença, como virtualidade operativa capaz da produção de
efeitos , ao passo que estes, quer se produzam no mundo jurídico, quer no mundo
dos fatos, hão de ter-se como atualizações, no sentido aristotélico, das
eficácias. Estas fazem parte do `conteúdo¿ da sentença, assim como se diz que
este ou aquele medicamento possui tais ou quais virtudes (ou eficácias)
curativas. Evidentemente não se podem confundir a virtude curativa com o efeito
produzido pelo medicamento sobre o organismo enfermo. A eficácia ainda não é o
efeito o medicamento. Assim também numa ação de mandada de segurança, por
exemplo, haverá sempre como componente de seu `conteúdo¿, a refletir-se na
sentença de procedência, o verbo correspondente à ordem para que se expeça o
mandado; e, num momento posterior, a expedição e o cumprimento do mandado. O
efeito representado, no caso da sentença em mandado de segurança, pela efetiva
expedição e cumprimento do mandado, é resultado que está foro do `conteúdo¿ da
sentença; e que poderá, até mesmo, jamais se tornar efetivo, sem que o ato
jurisdicional perca qualquer de suas eficácias."
Trazendo o exemplo esclarecedor dado
pelo Mestre Ovídio Baptista para a situação analisada, a eficácia "erga
omnes" é o remédio que o juiz concede à sociedade para a cura da doença
que são as ilegalidades, as abusividades, etc.
Seria aceitável que a
"receita" dada, o "remédio" fornecido, somente surtisse
efeitos na cidade ou no Estado em que o médico reside?
Como seria possível restringir por
qualquer forma uma eficácia curativa que é da própria natureza do remédio, ou
seja, é real, material, concreta?
Será que se o "paciente"
saísse do Estado levando consigo o remédio, ao atravessar para o Estado de
Santa Catarina o remédio automaticamente perderia sua eficácia curativa?
Em uma situação jurídica mais fácil
de ser visualizada: será que a sentença do juiz de Porto Alegre que dissolveu o
vínculo matrimonial (divórcio) vale somente para o Rio Grande do Sul?
Ora, a competência do juiz
relaciona-se com a Comarca de Porto Alegre porque o casal aqui reside.
Entretanto, as virtualidade do conteúdo sentencial, as eficácias do provimento
definitivo necessariamente se espraiarão para todo o Brasil, pois nada tem a
ver com a competência do magistrado.
Aliás, o mesmo exemplo é dado por
Nelson Nery Jr. e Rosa Nery Júnior:
"A MedProv1570/97 3º, que
modificou a redação da LACP 16, para impor limitação territorial aos limites
subjetivos da coisa julgada, não tem nenhuma eficácia e não pode ser aplicada
às ações coletivas. Confundiram-se os limites subjetivos da coisa julgada erga
omnes , isto é, quem são as pessoas atingidas pela autoridade da coisa julgada,
com jurisdição e competência, que nada têm a ver com o tema. Pessoa divorciada
em São Paulo é divorciada no Rio de Janeiro. Não se trata de discutir se os limites
territoriais do juiz de São Paulo podem ou não ultrapassar seu território,
atingindo o Rio de Janeiro, mas quem são as pessoas atingidas pela sentença
paulista. O equívoco da Med Prov 1570/97 demonstra que quem a redigiu não tem
noção, mínima que seja, do sistema processual das ações coletivas."
Caso fosse entendido de forma
diversa e teriam de ser propostas ações de divórcio em cada um dos Estados da
Federação para que a nova condição de solteiros do casal pudesse ser
reconhecida e respeitada.
Podemos transpor o exemplo da
sentença desconstitutiva negativa do divórcio, que dissolve um "contrato
de casamento", para a situação, por exemplo, dos "contratos de
massa".
Quando o juiz declara nula uma
cláusula de um contrato bancário e determina a sua exclusão do formulário, não
está desconstituindo um vínculo contratual como o fizera o juiz do divórcio?
Sem dúvida que sim. Por isso que tal decisão, quando adotada em nível coletivo,
deve ser respeitada "erga omnes", por todos, em todo o Brasil, não
existindo motivo para que situações iguais sejam tratadas de maneira diferente.
Também sobre o exemplo comentam
Nelson Nery Júnior e Rosa Nery Júnior:
"Por exemplo, a condenação de
empresa de convênio médico (Amil, Golden Cross etc...), em obrigação de retirar
de seus contratos cláusula considerada abusiva (CDC 51), atinge a empresa como
um todo, bem como todos os seus associados, estejam onde estiverem dentro do
território nacional. Não é relevante indagar-se qual a justiça que proferiu a
sentença, se federal ou estadual, para que se dê o efeito extensivo da coisa
julgada. A questão não é de jurisdição nem de competência, mas de limites
subjetivos da coisa julgada, dentro da especificidade do resultado da ação
coletiva, que não pode ter a mesma solução dada pelo processo civil ortodoxo às
lides intersubjetivas. Na mesma senda, se coloca Antonio Gidi: `Se através de
uma ação coletiva uma publicidade for considerada enganosa (violação de um
direito difuso) por um juiz de direito em Florianópolis, este deve condenar a
empresa a retirá-la do ar em todo o território nacional¿."
Em realidade, o problema está na
consideração dos efeitos da coisa julgada, quais sejam o efeito negativo e o
efeito positivo. João de Castro Neves assim leciona:
"Toda a eficácia do caso julgado...pode
traduzir-se em duas ordens de efeitos: pode impedir a colocação no futuro da
questão decidida ou pode impor a adopção no futuro da solução que a
decidiu."
Desta forma, se uma determinada
relação jurídica de massa foi julgada e transitou tal decisão, deve ser
obedecida por todos os jurisdicionados, ou seja, ERGA OMNES.
Entender de maneira diversa é criar
uma verdadeira impossibilidade jurídica e fática, pois não é possível aceitar a
existência de algo que é para todos (erga omnes) e, ao mesmo tempo, só para
alguns. Isto corresponde a incontestável paradoxo!
Com a devida "venia", a
confusão entre competência e eficácia da sentença leva à negativa de vigência
do artigo 103 do CDC.
b- As inconstitucionalidades que
decorrem da incorreta interpretação principiam pela exigência da Lei nº
9.494/97 de que sejam propostas tantas ações iguais quantas sejam as divisões
da competência, ferindo, assim, o princípio da inafastabilidade da jurisdição,
consubstanciado no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, no qual é dito que
"...a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito...".
De fato, dando a entender que
deveriam ser intentadas várias ações com o mesmo objeto e os mesmos interesses
lesados em juízos com competência distinta, muitas lesões ou ameaças de lesões
seriam perpetradas, tendo em vista que são inúmeras e variadas as dificuldades
de demandar, seja por carência de poder econômico, por falta de informação,
pela incrível diferença entre as condições gerais de litigar entre o litigante
habitual e o eventual, pela inexistência de associações que congreguem
consumidores, pela ausência de promotorias e varas específicas nas comarcas e
sequer nas grandes capitais, tudo isto a ressaltar que, em realidade, e não
meramente em forma, estaria sendo negada a legítima prestação jurisdicional e
estaria sendo negada, também, vigência ao artigo 6º, incisos VI ("efetiva
prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e
difusos") VII(" o acesso aos órgãos judiciários...com vistas à
prevenção ou reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos
ou difusos...") e VIII ("facilitação da defesa dos seus
direitos...").
Inconstitucionalidade de várias
ordens igualmente se configurariam, dado que estaria sendo ofendida a coisa
julgada em sua própria essência, que é a pacificação do convívio e a garantia
de segurança e estabilidade das relação inter-humanas.
Também decorreria o desrespeito ao
artigo 170 da Constituição Federal, o qual prevê como princípios da ordem
econômica o que segue:
"III- a função social da
propriedade;
............................................
V- a defesa do consumidor;"
Assim, desconsiderar a sentença
"erga omnes" de uma ação coletiva de consumo, não a estendendo para
todos os lugares e para todos aqueles que tenham sido lesados pela mesma
circunstância fática (interesse difuso) ou relação jurídica base (interesso
coletivo "stricto sensu") é, sem dúvida, não efetivar a defesa do
consumidor e, simultaneamente, permitir que os proprietários dos meios de
produção de serviços e produtos não exerçam seus direitos dominiais pautados
pela função social que possuem.
Na forma já dita, nenhuma função
social possui um remédio letal que permanece no mercado de consumo. Nenhuma
função é desempenhada por um contrato de adesão de massa bancário, ou de plano
de saúde, ou de incorporação, ou imobiliário que esteja eivado de nulidades e
ilegalidades, assim como nenhuma função social é cumprida por uma publicidade
abusiva que possa ser capaz de causar até a morte, ou a geração de desvios de
conduta em crianças.
Destarte, qualquer determinação
instrumental (processual) que venha a infringir os objetivos do instituto
jurídico da coisa julgada, quais sejam a segurança, a definitividade e a
obtenção de harmonia no convívio social é afrontosa ao sistema jurídico como um
todo, devendo ser repudiada por injusta, reconhecido como injusto tudo aquilo
que fere os princípios maiores do ordenamento jurídico.
c- Também é inconstitucional a Lei
nº 9494, na parte em que tenta alterar a coisa julgada "erga omnes",
posto que a confirmação do interesse veiculado nesta Lei ofende o artigo 127 da
Constituição Federal.
Com efeito, o Ministério Público não
terá condições de cumprir suas funções constitucionais, quais sejam a defesa da
ordem jurídica (diga-se do sistema jurídico como um todo, com unidade,
coerência e adequação axiológica), do regime democrático e dos interesses
sociais, caso seja mantida tamanha ofensa ao princípio da efetividade
processual.
d- O artigo 5º, inciso XXXII, da CF
igualmente é ofendido, pois a criação de uma "coisa julgada `erga omnes¿
relativa" não obedeceria ao mandamento maior de que o "Estado
promoverá...a defesa do consumidor";
e- Igualmente o artigo 5º, inciso
XXXV, da CF, na forma já apontada, seria ofendido, pois a restrição da coisa
julgada "erga omnes" aos Estados excluiria da abrangência da decisão
judicial todo o restante do país, constituindo-se tal situação em evidente
exclusão da apreciação do Poder Judiciário lesões ou ameaças de lesão
massificadas.
Isto é evidente, pois teriam de ser
proposta, para cada lesão de massa, a mesma ação coletiva em cada uma das
Capitais Brasileiras, devendo ser considerado não só o absurdo de tal
ocorrência, como as naturais dificuldades de acesso aos órgãos de defesa
coletiva, a falta de aparato Estatal para que fossem veiculadas temporaneamente
as demandas e tudo mais que normalmente acontece no mundo real e não meramente
formal ou teórico;
f- o artigo 5º, inciso XXXVI, da CF
é ofendido, pois a odiosa restrição desrespeita a determinação da Lei Maior, no
sentido de que "... a lei não prejudicará ... a coisa julgada";
8- DA EXISTÊNCIA DE DISSÍDIO
JURISPRUDENCIAL:
O Primeiro Grupo Cível do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na data de 18 de junho de l999,
julgou ação coletiva de consumo em que foram acolhidos os argumentos da Lei nº
9.494, posto que ela teria alterado o artigo 16 da Lei nº 7.347/85, pelo que
não foram consideradas as questões lançadas neste trabalho.
A jurisprudência de outros
tribunais, todavia, não adotou a mesma tese, sendo uma das decisões divergentes
a consubstanciada no Ac. da 2ª Câmara Cível do TJSC, o Ag. In. 10.335 - Rel.
Des. Gaspar Rubik - julgado em 02.04.1996, cuja ementa é a que segue:
"O comando do art. 93 do CDC
foi aprioristicamente dirigido apenas às ações coletivas para a defesa de
interesses individuais homogêneos. A simbiose legal promovida pela conjugação
do art. 90 daquele codex com o art. 21 da LACP, entretanto, autoriza que tal
regra de competência abranja também as ações coletivas para a defesa de
interesses e direitos difusos e coletivos ( art. 81, I e II, do CDC).
Sendo o dano ao direito do
consumidor de âmbito nacional - como é o caso do de propaganda enganosa,
veiculada em todo o país -, é competente para a respectiva ação coletiva, a
exemplo do caso dos danos regionais, o foro da Capital do Estado ou o do
Distrito Federal (art. 93, II, do CDC), eis que a referência do legislador a
este ente deve-se apenas a mero apego ao rigor técnico, tendo em vista sua
natureza de Estado-membro anômalo.
..............................................................
O processo não é um fim em si mesmo.
É, ao revés, um meio para a promoção da justiça: facilita-a, desembaraça-a,
democratiza-a. E só imbuído por estes conceitos é que pode o exegeta
interpretar a norma processual, sem o que estará em flagrante choque com a
`mens¿ do direito material, do qual é ela veículo concretizador."
Na mesma linha é a decisão da Juíza
Anna Maria Pimentel, do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, exarada no
processo nº 9603064677-6, fundamentos que são transcritos:
"Acontece que o local onde
ocorreu ou deva ocorrer o dano, pode ultrapassar os limites de uma Seção
Judiciária da Justiça Federal, como na hipótese em discussão, alcançando
interesses em todo o território nacional.
Nesse caso, a solução decorre da
integração da sistemática entre a Lei da Ação Civil Pública e o Código de
Defesa do Consumidor (art. 21 daquela, introduzido pelo art. 117 deste),
aplicando-se à espécie, a norma do artigo 93, inciso II do CDC.
Assim, na possibilidade de dano de
âmbito nacional, ou mesmo regional (pois a lei não faz distinção restritiva) a
competência é de uma das Varas Federais da Capital de qualquer Estado-Membro ou
do Distrito Federal, em cuja Seção Judiciária o resultado danoso configurou-se
ou possa vir a configurar-se, aplicando as regras do diploma processual
relativas aos casos de competência concorrente, critério que permite extensiva
e efetiva defesa dos interesses/direitos coletivos.
Convém destacar que os efeitos que
uma decisão ou sentença venham a produzir em todo território nacional,
previstos e desejados pela nova ordem constitucional, não se confundem com a
fatia de competência (jurisdição) do juízo que a proferiu, também haurida da
Lei Fundamental.
Além de ampliar o acesso à
propositura de valioso instrumento de tutela de interesses, essa construção
interpretativa conforma-se com a almejada uniformidade de decisões sobre ações
conexas, isonomia entre as Seções Judiciárias dos Estados e Distrito Federal,
bem como dos respectivos Tribunais Regionais Federais..."
Igualmente sobre o tema foi a
decisão do Juiz Newton de Lucca, no agravo de instrumento nº 98.03.017990-0,
julgado em 3.04.1998:
"Não há dúvida que, em certos
casos, tal restrição aos limites objetivos da coisa julgada em ação civil
pública traduz-se em flagrante retrocesso, especialmente quando se tem em mente
que esse tipo de processo é essencial à manutenção da Democracia e do
Estado-de- direito. Por outro lado, ele tem o condão de evitar que decisões
conflitantes surjam ao redor desse país continental, inviabilizando políticas
públicas relevantes, tomadas no centro do poder.
..............................................................
É preciso ter em mente que o
interesse em jogo é indivisível, difuso, não sendo possível limitar os efeitos
da coisa julgada a determinado território.
Perceba-se que a portaria impugnada
foi editada por autoridade com competência nacional, e sua área de ação também
pretende ser nacional. Por sua vez, o autor da demanda é o Ministério Público
Federal, que é uma entidade una, cuja área de atuação, por sua vez, também
abrange todo o território nacional.
Assim, não me parece atender aos
encômios da boa jurisdição exigir-se a propositura de tantas ações civis
públicas quantas forem as subsidiárias da TELEBRÁS."
Na reclamação nº 602-6 procedente de
São Paulo, julgada pelo Supremo Tribunal Federal em 03 de setembro de l997
(Relator Ministro Ilmar Galvão, reclamante Banco Mercantil de São Paulo e
reclamado Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo), esta foi a
decisão:
"O Banco Mercantil de São Paulo
S/A ajuizou a presente reclamação alegando que na Ação Civil Pública nº
580.262-2, que lhe moveu o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor - IDEC,
o Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, pela sua 11ª Câmara, declarou
a inconstitucionalidade, em relação a alguns aspectos da Lei nº 7730/89, com
efeito erga omnes, para todo o território nacional, ampliando, assim, a
competência da Justiça local e dando-lhe a possibilidade de fixar normas para
todo o Brasil em matéria de inconstitucionalidade de lei.
...............................................................
Afastadas que sejam as mencionadas
exceções processuais - matéria cuja exame não tem aqui cabimento - inevitável é
reconhecer que a eficácia da sentença, no caso, haverá de atingir pessoas
domiciliadas fora de jurisdição do órgão julgador, o que não poderá causar
espécie, se o Poder Judiciário, entre nós, é nacional ou local. Essa
propriedade, obviamente, não seria exclusiva da ação civil pública, existindo,
ao revés, outros remédios processuais, como o mandado de segurança coletivo,
que pode reunir interessados domiciliados em unidades diversas da federação e
também fundar-se em alegação de inconstitucionalidade de ato normativo, sem que
essa última circunstância possa inibir o seu processamento e julgamento em
Juízo de primeiro grau que, entre nós, também exerce controle constitucional
das leis."
Colhidos todos estes precedentes e
considerados os aspectos abordados, resulta que a Lei nº 9.494/97 é inócua para
o efeito de causar alteração do direito positivo existente, principalmente no
que diz respeito ao Código de Defesa do Consumidor, pelo que se espera que,
brevemente, a jurisprudência possa consagrar tal entendimento, pois é o mais
consentâneo com a busca da justiça material e não meramente formal.
9-CONCLUSÕES:
a) As regras que falam dos
interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos tratam de questões de
direito material. Assim, a coisa julgada que emanar de demandas que envolvam
estes interesses terá a mesma natureza e abrangência objetiva e subjetiva:
b) O direito processual serve para
auxiliar, instrumentalizar o direito material, não tendo o condão de limitá-lo,
sob pena de eventual tentativa de limitação não possuir qualquer respaldo real,
fático, material, mas meramente formal e tendencioso;
c) O Código de Defesa do Consumidor
contém apenas AÇÕES COLETIVAS DE CONSUMOS, não tratando de ações civis
públicas;
d) A Lei nº 9.494/97 não se aplica
ao Código de Defesa do Consumidor, posto que este é lei especial, prevalecendo
suas regras, princípios e valores, especialmente porque a Lei nº 7.347/85
somente se aplica ao CDC, nos termos do artigo 90 deste, "...naquilo que
não contrariar suas disposições";
e) A menção da Lei nº 9.494/97, de
que a coisa julgada estará limitada à competência do órgão prolator da decisão,
é inócua, dado que a competência estipulada pelo artigo 93 do CDC justamente é ditada
pela natureza local, regional ou nacional do dano, acolhida que foi a teoria do
resultado na lei consumerista;
f) A Lei nº 9.494/97 não faz
qualquer referência a eventuais alterações do Código de Defesa do Consumidor,
pelo que não é possível a aceitação de uma interpretação extensiva, quando ela
venha a dificultar a defesa dos vulneráveis e da sociedade como um todo;
g) As regras de competência nada tem
a ver com o instituto da eficácia "erga omnes" da coisa julgada,
sendo coisas completamente distintas;
h) É impossível a existência de uma
coisa julgada "erga omnes relativa", pois o que é para todos não pode
beneficiar somente a alguns;
i) A interpretação que limita a
eficácia "erga omnes" nega vigência a uma série de dispositivos da
Lei Consumerista, autorizando, assim, a interposição de recurso especial;
j) A interpretação que limita a
eficácia "erga omnes" fere vários dispositivos constitucionais,
autorizando, assim, a interposição de recurso extraordinário;
l) A interpretação que limita a eficácia
"erga omnes" nega a prestação jurisdicional, consideradas as
dificuldades de litigar que os indivíduos, e até mesmo os entes coletivos, em
realidade possuem, pelo que é estimuladora do conflito social e do
abarrotamento dos foros com inúmeras ações individuais decorrentes da mesma
origem comum;
m) A interpretação que limita a
eficácia "erga omnes" traz o descrédito ao sistema jurídico, pois não
está afinada com a necessária coerência e unidade das regras e princípios que o
integram, além de não ser axiologicamente adequada aos anseios da comunidade,
que deseja, para as agressões de massa, repressão na mesma medida.
Paulo Valério Dal Pai Moraes
Bibliografia:
ARRUDA ALVIM, Arruda, Thereza Alvim,
Eduardo Arruda Alvim e James Marins-Código do Consumidor Comentado, ed. Revista
dos Tribunais, São Paulo, 1995;
BONATTO, Cláudio, Orci Paulino
Bretanha Leal e Sílvia Cappelli - Livro de Teses do 9º Congresso Nacional do
Ministério Público, Tomo II, Salvador, setembro de l992;
CARNEIRO, Athos Gusmão - Jurisdição
e Competência, ed. Saraiva, São Paulo, 1982;
DA SILVA, Ovídio Araújo Baptista
- Sentença e Coisa Julgada, Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2ª edição, Porto Alegre;
- Curso de Processo Civil, volume 1,
Sérgio Antonio Fabris Editor, 2ª edição, Porto Alegre, 1991;
FABRÍCIO, Adroaldo Furtado - Revista
Direito do Consumidor, volume 7, ed. Revista do Tribunais, São Paulo, 1993;
GRAU, Eros Roberto - Revista Direito
do Consumidor nº 5, ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1993;
GRINOVER, Ada Pellegrini
- Código de Defesa do Consumidor
Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Editora Forense Universitária, 3ª
edição, São Paulo;
- Código de Defesa do Consumidor
Comentado pelos Autores do Anteprojeto, Editora Forense Universitária, 5ª
edição, São Paulo;
LEAL, Márcio Flávio Mafra - Ações
Coletivas: História, Teoria e Prática, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto
Alegre, 1998;
MANCUSO, Rodolfo de Camargo - Ação
Civil Pública, ed. Revista dos Tribunais, 5ª edição, São Paulo;
MARQUES, José Frederico -
Instituições de Direito Processual Civil, volume 1, Rio de Janeiro, ed.
Forense, 3ª edição, 1966;
MAXIMILIANO, Carlos - Hermenêutica e
Aplicação do Direito, 7ª edição, Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro;
MORAES, Paulo Valério Dal Pai -
Conteúdo Interno da Sentença - eficácia e coisa julgada, ed. Livraria do
Advogado, Porto Alegre, 1997;
NERY JÚNIOR, Nelson e Rosa - Código
de Processo Civil Comentado, ed. Revista dos Tribunais, 3ª edição, São Paulo;
NEVES, João de Castro - Limites
Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, Coleção Jurídica Portuguesa, São
Paulo, Ática;
RAMOS, André de Carvalho - Revista
dos Tribunais, volume 755, setembro de l998;
VIGLIAR, José Menezes - Ação Civil
Pública, São Paulo, Atlas, 1997;
Curso de Processo Civil, volume 1,
Editor Sergio Antonio Fabris, 2ª edição, Porto Alegre, 1991, p. 64.
Ações Coletivas: História, Teoria e
Prática, Sérgio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1998, pp. 22 e 27.
"Stephen Yeazell, na obra referida, sobre a genealogia e o desenvolvimento
histórico dos processos coletivos, localiza as primeiras ações do gênero na
Inglaterra medieval ( século XII)...A maioria da doutrina, entretanto, prefere
localizar os antecedentes da moderna ação coletiva no século XVII como uma
variante do bill of peace. O bill era uma autorização para processamento
coletivo de uma ação individual e era concedida quando o autor requeria que o
provimento englobasse os direitos de todos que estivessem envolvidos no
litígio, tratando a questão de maneira uniforme, evitando a multiplicação de
processos...O ser humano medieval estava indissociavelmente ligado à comunidade
ou corporação a que pertencia, sendo fácil visualizar essa categoria como uma
entidade homogênea e unitária ( de certa forma, um indivíduo), fazendo-se
representar tacitamente por alguns de seus membros...Não havia, portanto,
discussão acerca da representatividade do autor da ação coletiva, por não se
discernir indivíduo de comunidade como se concebe hoje."
Ob. cit., p. 44 e 93.
Código do Consumidor Comentado, 2ª
edição, Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 366.
CDC Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, Editora Forense Universitária, 3ª edição, 1993, p. 585.
Ação Civil Pública, São Paulo,
Atlas, 1997, p. 106.
Revista Direito do Consumidor,
Volume 5, Editora RT, pp. 183 e seguintes.
Código Brasileiro de Defesa do
Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto, editora Forense
Universitária, 5º edição, Rio de Janeiro, p. 724.
Jurisdição e Competência, Editora
Saraiva, 1982, p. 43.
Instituições de Direito Processual
Civil, vol. 1. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 3ª ed. 1966.
Ação Civil Pública, 5ª edição,
editora Revista dos Tribunais, São Paulo, pp. 206 e seguintes.
Hermenêutica e Aplicação do Direito,
sétima edição, Livraria Freitas Bastos S.A., Rio de Janeiro, pp. 307 a 309, 310
e 311 a 312.
Existe artigo dos Colegas Cláudio
Bonatto, Sílvia Cappelli e Orci Paulino Bretanha Leal sobre a inversão do ônus
da prova em matéria ambiental "in" Livro de Teses do 9º Congresso
Nacional do Ministério Público, Tomo II, p. 389, Salvador, setembro de l992.
Ação Civil Pública, 5ª edição,
editora Revista dos Tribunais, 1997, p. 253.
Paulo Valério Dal Pai Moraes,
Conteúdo Interno da Sentença, editora Livraria do Advogado, 1º edição, p. 23.
CDC Comentado pelos Autores do
Anteprojeto, Editora Forense Universitária, 5ª edição, Rio de Janeiro, pp. 718
e 719.
Sentença e Coisa Julgada, Sergio
Antonio Fabris Editor, 2ª edição, Porto Alegre, pp. 214 e 215.
Código de Processo Civil Comentado,
3ª edição, editora Revista dos Tribunais, pp. 1157 e 1158.
Apud Rodolfo Mancuso, ob. cit., p.
208.
Limites Objectivos do Caso Julgado
em Processo Civil, Coleção Jurídica Portuguesa, São Paulo, Ática, pp. 38 e 39.
Ver Adroaldo Furtado Fabrício,
Revista Direito do Consumidor nº 7, editora RT, p. 30.
Revista Direito do Consumidor,
volume 20, editora RT, outubro/dezembro de l996, São Paulo, pp. 191, 192 e 195.
Apud André de Carvalho Ramos,
"A abrangência nacional de decisões judiciais em ações coletivas: o caso
da Lei 9494/97", Revista do Tribunais, 755, setembro de l998, p. 118.
Apud André de Carvalho Ramos, ob.
cit., p. 119.
Ob. cit., André de Carvalho Ramos,
p. 116.
Data: 08/11/2004
Fonte: Paulo Valério Dal Pai Moraes
*Coordenador da Promotoria de Defesa
do Consumidor de Porto Alegre, Especialista em Direito Processual Civil pela
PUC/RS, Mestre em Direito do Estado pela PUC/RS, Professor da Escola do
Ministério Público/RS, da Escola Superior da Magistratura/RS e da Escola de
Polícia Civil.
Disponível em:
http://portalmpsc.mp.sc.gov.br/site/portal/portal_detalhe.asp?campo=2557 acesso
no dia 12.09.05