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Questões
polêmicas sobre sistema de consórcio.
Cabimento do Código de Defesa do Consumidor e devolução imediata de
valores pagos por consorciado desistente
Rodrigo de Paula Souza
advogado
em Campinas (SP), sócio do escritório De Paula & Nadruz Advogados e
Consultores, pós-graduado em Discurso e Argumentação pela UNICAMP
1 - Introdução
Já
há algumas décadas, uma significativa parte da população brasileira interessada
em adquirir bens vem optando pela compra através do chamado sistema de
consórcio.
Apesar
de se tratar de um meio de aquisição de bens amplamente conhecido, não é demais
se definir aqui o termo com a finalidade de delimitar o assunto em comento:
Segundo definição dada pelo Ministério da Fazenda (Portaria 190 de 27.10.89),
trata-se o consórcio da "união de diversas pessoas físicas ou
jurídicas, com o objetivo de formar poupança, mediante esforço comum, com a
finalidade exclusiva de adquirir bens móveis duráveis, por meio de
autofinanciamento".
O
nascimento do consórcio deu-se na década de 60, e desde então não parou de
crescer. Dados do Banco Central demonstram que em 2004 o número de
participantes ativos em consórcios chegou a 3,4 milhões, um aumento
significativo levando-se em consideração que no ano 2000 esse total era de 2,8
milhões.
De
fato, trata-se de uma excelente opção para quem quer escapar das exorbitantes
taxas de juros praticadas no Brasil. Um estudo realizado pela Federação das
Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) com base em dados do Banco Central e
do Banco Mundial concluiu que, de um grupo de 43 países analisados, o Brasil
ficou com uma nada honrosa 2ª colocação no ranking dos maiores juros de curto
prazo do mundo, motivo de sobra para quem quer adquirir um bem optar pelo
consórcio.
O
elevado número de pessoas interessadas em adquirir bens através de consórcio
chamou a atenção de empresas dos mais variados ramos, que decidiram passar a
administrar consórcios de seus produtos e de produtos de terceiros. Dentre
estas administradoras, surgiram numerosos casos de má-administração e abusos
contra direitos dos consorciados, sendo que estes muitas vezes são prejudicados
e não sabem como buscar seus direitos.
Este
artigo pretende, de maneira breve, apresentar duas das principais polêmicas que
surgem na relação administradora/consorciado, quais sejam: o cabimento da
utilização do Código de Defesa do Consumidor neste relacionamento e a devolução
dos valores pagos pelos chamados consorciados desistentes.
2 - Breve síntese da legislação
existente no que tange ao sistema de consórcio
A
primeira aparição do sistema de consórcio na legislação pátria deu-se nos dos
artigos 7º e 8º da Lei 5.768/71, que determinaram que as "operações
conhecidas como consórcio dependerão de prévia autorização do Ministério da
Fazenda".
Posteriormente,
a própria Constituição de 1988 definiu, em seu artigo 22, inciso XX, que "compete
privativamente à União legislar sobre sistemas de consórcios".
Assim,
em decorrência da disposição constitucional, o artigo 33 da Lei nº 8.177/91
dispôs que "a partir de 1° de maio de 1991, são transferidas ao Banco
Central do Brasil as atribuições previstas nos arts. 7° e 8° da Lei n° 5.768,
de 20 de dezembro de 1971, no que se refere às operações conhecidas como
consórcio (...)".
Desde
então, o Banco Central do Brasil vem normatizando a instituição do consórcio
através de seguidas Circulares, sendo que dentre estas certamente a mais
abrangente é a de nº 2.766/97, que "dispõe sobre a constituição e o
funcionamento de grupos de consórcio".
Encontra-se
em trâmite no Congresso Nacional projeto de lei para regulamentar
definitivamente o sistema de consórcios. Trata-se de um projeto de autoria do
senador Aelton Freitas e seu trâmite se iniciou no ano de 2003. Porém, até que
a lei entre em vigor, as disposições contidas na legislação supra citada
continuam sendo as válidas para regulamentar os consórcios.
3 - Da aplicação do Código de Defesa
do Consumidor na relação entre a administradora e o consorciado
Pela
sua própria concepção, o consórcio aparenta ter um caráter que o exclui das
relações de consumo. De fato, à primeira vista todos os consorciados são iguais
entre si, não havendo portanto a hipossuficiência que caracteriza as relações
de consumo.
Todavia,
o que se vê nos dias de hoje é a existência de várias administradoras de
consórcio extremamente poderosas, que utilizam todos os meios de comunicação –
do jornal à televisão – para apresentar e divulgar suas opções de consórcio.
Assim,
muitas vezes as pessoas são envolvidas nas teias da publicidade e da
propaganda, acabando por optar pelo consórcio para a compra do bem que é seu
objeto de desejo. Ao ingressar no sistema de consórcio, o potencial consorciado
possui somente duas opções: assinar ou não o contrato de adesão apresentado
pela administradora. Desta feita, não há qualquer espaço para negociação ou
para o afastamento de cláusulas abusivas. Há uma total ascendência da
administradora sobre o interessado em utilizar o sistema de consórcio. Ora,
dados estes fatos conclui-se que a relação consorciado/administradora é,
obviamente, uma relação de consumo. Trata-se, no mínimo, de uma prestação de
serviço que se adequa à definição de relação de consumo apresentada no Código
de Defesa do Consumidor.
A
Jurisprudência pátria tem tido o mesmo entendimento, como podemos ver no trecho
do Acórdão da apelação cível de nº 10.918-4/2 (TJ-SP. Relator Desembargador
Roberto Stucchi):
"Por
outra banda, sendo contrato de adesão, a interpretação deve ser favorável ao
consorciado, pois que não tem possibilidade de discutir as cláusulas
contratuais. Assim incidente o Código de Defesa do Consumidor."
Quanto
ao questionamento sobre se o contrato assinado pelo consorciado é um contrato
de adesão, e, ainda, quanto ao poder das administradoras de consórcio, assim
dispôs o Acórdão da apelação cível de nº 024.042-4/1 (TJ-SP. Relator Antônio
Mansur):
"A
par disso, o contrato é de adesão, inexistindo portanto, a indispensável
manifestação livre do aderente e a equivalência e a reciprocidade de direitos e
obrigações, afastada assim, a bilateralidade, requisito basilar das demais
manifestações contratuais (...).
A
alegação de que o inadimplemento do apelado acarretou onerosidade e prejuízos
ao grupo consorcial não tem o condão de produzir os efeitos pretendidos pela
apelante, pois as contribuições percentuais de todos os consorciados aumentam e
diminuem, de acordo com as necessidades do momento, mas sempre de forma a
manter o valor equivalente a de um bem a ser adquirido.
Por
outro lado, nunca é demais lembrar que a desistência ou a exclusão de um
consorciado dificilmente deixa lacuna ou defasagem no grupo consorcial, pois,
de imediato ou em poucos dias, é preenchido o lugar antes ocupado por aquele,
pela eficaz máquina propagandística e de comunicação das administradoras de
consórcios."
A
título de encerramento da questão, a decisão do Recurso Especial de nº 595.964
(Superior Tribunal de Justiça) assim dispôs:
"Nos
contratos de consórcio para compra de bem imóvel, a relação entre a consorciada
e a administradora configura relação de consumo."
4 - Da devolução dos valores pagos
pelo consorciado desistente
Esclarecida
a adequação do Código de Defesa do Consumidor na relação
administradora/consorciado, é hora de verificar como se deve proceder a
devolução dos valores pagos pelo consorciado desistente.
Como
já dito, são numerosos os casos em que consorciados acabam por desistir da sua
compra. Estes consorciados costumam agir de duas maneiras: ou informam a
administradora do consórcio da desistência ou simplesmente deixam de pagar as
prestações. No primeiro caso costuma-se dizer que se trata de um consorciado
desistente, já no segundo normalmente o consorciado acaba por ser excluído nos
termos do contrato de adesão celebrado.
Para
os casos de exclusão, a já citada Circular do Banco Central de nº 2.766/97
assim dispõe:
"Artigo
21: Dentro de sessenta dias da contemplação de todos os consorciados dos
respectivos grupos e da colocação dos créditos à disposição, a administradora,
observada a seguinte ordem, deverá comunicar:
(...)
II
– aos excluídos, que estão à disposição os valores relativos à devolução das
quantias por eles pagas;"
Verifica-se,
portanto, que o Banco Central determinou que os valores devidos aos
consorciados excluídos somente serão entregues após a contemplação de todo o
grupo.
De
fato, esta determinação deu base para que as administradoras de consórcio se
neguem a devolver os valores pagos aos consorciados desistentes antes do
encerramento do grupo, ou seja, antes que todos os demais consorciados sejam
contemplados.
Realmente,
é de se compreender que, em tese, a desistência de um dos consorciados traga
prejuízo para o grupo, posto que a falta do pagamento por parte de qualquer um
dos consorciados tornaria inviável a entrega do bem aos contemplados.
Porém,
o que se vê na prática é algo completamente diferente. Os grandes grupos
financeiros que tomaram a dianteira na administração de consórcios conseguem,
através do já citado esquema de publicidade e propaganda, apresentar o
consórcio como um grande negócio a um enorme número de pessoas, atraindo cada
vez mais interessados.
Assim,
é evidente que, dentre os milhares de interessados, estas administradoras não
possuem a menor dificuldade para "encaixar" novos consorciados no
lugar dos consorciados desistentes. Como se verifica na prática, a substituição
de consorciados é comum e rotineira.
O
procedimento de substituição de consorciados, aliado ao fato tratar-se a
relação entre a administradora e o consorciado de uma relação de consumo, torna
incompreensível a retenção dos valores pagos pelo consorciado desistente por
parte da administradora.
Ora,
com a substituição do consorciado desistente é certo que a devolução dos
valores pagos por este não traz prejuízo aos demais consorciados do grupo e
muito menos à administradora.
Este
não é um entendimento isolado, como se depreende da decisão do Ilustre
Desembargador José Francisco Pellegrini, da 19ª Câmara Cível do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, afirmando que a transferência de cotas por parte
da administradora "é da índole do empreendimento, de modo que a
desistência de um cotista, por si, não compromete o funcionamento do grupo nem
lhe cause prejuízo, ao menos necessariamente". Cumpre afirmar que a
decisão do Ilustre Desembargador determinou a devolução dos valores pagos por
consorciado desistente imediatamente.
Outras
decisões reforçam o cabimento da devolução dos valores pagos por consorciado
desistente antes do término das atividades do grupo, como se verifica a seguir:
"Havendo
o desistente pago, assiste-lhe a devolução integral em pecúnia, subtraídas a
taxa de administração e o prêmio securitário, como disposto majoritariamente. Em
nada resultam prejudicados os demais integrantes do grupo, visto inexistirem
dados objetivos apontando perda financeira com a restituição em correspondência
ao ‘quantum’ efetivo das parcelas saldadas. E nem há que falar em pré-fixação
de dano. Prejuízo não se presume (na espécie, sequer se convencionou) e,
destarte, precisa ser comprovado, caso contrário, estará permitindo o
enriquecimento indevido. Dou turno, cumpre lembrar ser sempre viável o ingresso,
em substituição de outro consorciado, o que, aliás, é próprio da sistemática
desse tipo de negócio." (TJ-SP. Embargos Infringentes nº 021.991-4/1-01. Relator Desembargador
Marcus Andrade.)
Ainda,
há de se considerar que, sendo a relação entre administradora e consorciado uma
relação de consumo, deve-se sempre respeitar os ditames do Código de Defesa do
Consumidor. Assim sendo, disposições contratuais abusivas são nulas de pleno
direito e, portanto, não é válida a cláusula que determina a devolução de
valores pagos por consorciado desistente apenas após o término do consórcio. Tal
entendimento também é acatado pelos tribunais pátrios, como se verifica no já
citado julgamento da apelação de nº 10.918-4/2 que tramitou no Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo e teve como relator o Desembargador Roberto
Stucchi:
"A
cláusula que determina sejam restituídas as parcelas pagas somente após 30 dias
do encerramento do grupo consorcial é evidentemente uma cláusula leonina.(...)
Por
outra banda, sendo contrato de adesão, a interpretação deve ser favorável ao
consorciado, pois que não tem possibilidade de discutir cláusulas contratuais. Assim,
incidente o Código de Defesa do Consumidor.
Dessa
forma, se a apelante recebeu as parcelas, deve restituí-las; nenhum prejuízo
lhe advém, uma vez que o consorciado não receberá o bem, não devendo, portanto,
aguardar o encerramento do grupo."
Por
fim, tendo sido apresentadas as fundamentações que demonstram o descabimento da
devolução de valores pagos pelo consorciado desistente somente apõe o término
do consórcio, não se pode deixar de apresentar o que dispõe o artigo 53 do
Código de Defesa do Consumidor:
"Art.
53. Nos contratos de compra e venda de móveis e imóveis mediante pagamento em
prestações, bem como nas alienações fiduciárias em garantia, consideram-se
nulas de pleno direito as cláusulas que estabeleçam a perda total das
prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear
a resolução do contrato e a retomada do produto alienado.
(...)
§
2º Nos contratos do sistema de consórcio de produtos duráveis, a compensação ou
a restituição das parcelas quitadas, na forma deste artigo, terá descontada,
além da vantagem econômica auferida com a fruição, os prejuízos que o
desistente ou inadimplente causar ao grupo."
As
administradoras de condomínio reiteradamente apresentam o parágrafo 2º do
artigo supra citado como justificativa para deixar de devolver os valores pagos
pelo consorciado desistente. Todavia, a devida interpretação do caput somada à
do parágrafo em referência traz outra conclusão.
A
disposição contida no artigo 53 do CDC é clara: são nulas cláusulas contratuais
que estipulem a perda das prestações pagas nos casos de compra parcelada de
bens. Por sua vez, o parágrafo segundo reitera a determinação da devolução para
os casos de consorciado desistente, sendo que nestes casos devem ser
descontados eventuais prejuízos que este causar ao grupo.
Ora,
como já dito, se houve a substituição do consorciado desistente não há que se
falar em prejuízo para o grupo, e, não havendo prejuízo para o grupo, não há
que se falar em retenção dos valores pagos pelo consorciado desistente. Assim,
em casos como este qualquer retenção por parte da administradora é abusiva.
5 - Conclusões
Dado
o poder das administradoras de consórcio, a metodologia "agressiva"
por elas utilizada na captação de novos consorciados e o caráter de contrato de
adesão que os consórcios possuem, é inegável que a relação entre os
consorciados e as administradoras devem ser regidas pelo Código de Defesa do
Consumidor.
Já
quanto à devolução de valores pagos por consorciado desistente, o Poder
Judiciário – apesar de algumas exceções – tem tido a devida diligência de
analisar cada caso, afastando a presunção de prejuízo alegada pelas
administradoras para justificar a não devolução dos valores. Somente com a
análise dos demonstrativos é que se pode determinar se a desistência de
consorciado trouxe ou não prejuízo para o grupo. Se não trouxe, a retenção dos
valores é ilegal, devendo ser afastada.