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A Repetição do Indébito em Dobro no Caso de Cobrança Indevida de Dívida Oriunda de Relação de Consumo como Hipótese de Aplicação dos Punitive Damages no Direito Brasileiro.

 

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Luiz Cláudio Carvalho de Almeida é  Luiz Cláudio Carvalho de Almeida é Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro, Professor de Direito Comercial da Faculdade de Direito de Campos (RJ) e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito de Campos (RJ) – Área de concentração: relações privadas e Constituição

 

 

Resumo

Graça certa polêmica a respeito da correta interpretação do que se deve entender por motivo justificável apto a eximir o fornecedor da devolução em dobro de valor indevidamente cobrado do consumidor, nos exatos termos do que preceitua o art. 42 do Código de defesa do consumidor.
Em linhas gerais confrontam-se duas correntes a respeito do assunto: uma que entende ser aplicável à hipótese, por analogia, o verbete n° 159 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, que consagra o entendimento que a cobrança indevida feita de boa-fé não deve dar ensejo à repetição dobrada do indébito; e outra que entende aplicável a sanção independentemente da boa-fé do fornecedor, como medida inibitória de abusos.
Através do presente trabalho pretende-se demonstrar a correção da última corrente.
Calca-se o raciocínio desenvolvido na idéia de que o sistema de proteção do consumidor, da maneira como foi concebido, consagrou a análise objetiva das relações de consumo, através de parâmetros (standards) de conduta aferíveis de acordo com a legítima expectativa do consumidor.
As lesões a esses padrões geram necessariamente o dever de indenizar por parte do ofensor, sujeito que está à responsabilidade objetiva.
Coerente com tais critérios a repetição de indébito em dobro prevista pelo parágrafo único, do art. 42, do CDC representa hipótese legal de punitive damage (indenização com finalidade de sanção) em função da violação ao dever intransponível do fornecedor de agir de acordo com o parâmetro de qualidade.
O abandono de critérios subjetivos para aferição da aplicação da sanção civil privilegia o direito do consumidor e inibe práticas abusivas, conformando o mercado aos parâmetros de qualidade dele esperados.

1) A Apresentação do Tema
O presente trabalho se propõe a analisar a inteligência do art. 42, parágrafo único, da Lei n° 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor).
Como é de conhecimento geral, o referido dispositivo legal estabelece que no caso de cobrança indevida de dívida do consumidor este terá direito à repetição do indébito, em valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
A questão que se apresenta reporta-se à correta interpretação do que se deve entender por engano justificável apto a evitar a devolução dobrada do indébito.
Para tanto, buscar-se-á compilar a opinião doutrinária e a tendência jurisprudencial a respeito da aplicação do referido dispositivo legal, sempre se aplicando um viés crítico cujo objetivo é a construção de um arcabouço teórico coerente com os princípios vetores de toda a legislação consumerista.
Parte-se da premissa de que a repetição do indébito em dobro determinada pelo comando legal vem sendo mitigada pelo entendimento hoje predominante que possibilita a aplicação do verbete n° 159 da Súmula do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual a boa-fé do fornecedor impediria a repetição do indébito em dobro.
Procurar-se-á demonstrar que tal entendimento além de enfraquecer o sistema de proteção do consumidor, contraria as diretrizes teóricas que o norteiam.
Será prestigiada a idéia de que o parágrafo único do artigo em referência deve ser interpretado como uma espécie de sanção civil imposta ao fornecedor que independe da presença de boa-fé do mesmo e que se adequa ao que a doutrina internacional denomina de punitive damages.

2) A Posição da Doutrina sobre o Tema
No cenário pátrio a doutrina se divide em duas correntes básicas.
A primeira, que é prevalente do ponto de vista de aceitação na jurisprudência, entende que havendo a cobrança indevida por parte do fornecedor, este só deverá devolver o excesso em dobro se ficar demonstrada a má-fé.
Para os que defendem esta corrente, seria invocável a aplicação analógica do verbete n° 159 do Supremo Tribunal Federal, que estabelece que “cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil”.
O art. 1.531 do Código Civil revogado a que se refere o enunciado da Suprema Corte tratava de situação análoga prevendo a devolução em dobro contra aquele que demandasse por dívida já paga.
Apesar da revogação do Código Civil de 1916 a atualidade da discussão permanece, eis que o preceito então corporificado no art. 1.531, permanece vigente no texto do art. 940 do Codex em vigor.
Assim, se a cobrança indevida decorrer de um equívoco não atribuível à má fé do fornecedor, não se permitiria a exigência da restituição em dobro.
Com algumas variantes, se reúnem nessa corrente de pensamento os autores que entendem que para a imposição da sanção civil a que se refere o parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor, faz-se mister a caracterização de dolo ou culpa no agir do fornecedor, sem o que afigurar-se-ia possível a invocação da causa excludente de responsabilidade pela repetição do indébito dobrada.
Nesse sentido é o escólio de Arruda Alvim e Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin .
Noutro pólo situam-se aqueles que propugnam por uma interpretação mais objetiva do dispositivo legal em tela, entendendo que o engano justificável a que se refere à norma é tão-somente o fator externo à esfera de controle do fornecedor.
Ou seja, ainda que ausente a má fé ou culpa do fornecedor, a repetição de indébito será devida se o mesmo não lograr demonstrar que a falha decorreu de fato totalmente alheio à sua ação.
Sob tal enfoque, apenas o caso fortuito e a força maior seriam justificativas idôneas a eximir o responsável pela cobrança indevida da devolução do excesso em dobro.
Esse é o ponto de vista defendido por Cláudia Lima Marques .
De agora em diante, será utilizada a expressão concepção subjetiva para denominar a primeira corrente e a expressão concepção objetiva para denominar a segunda forma de pensamento.

3) O Cenário Jurisprudencial
Na aplicação da norma no cotidiano dos Tribunais há uma marcante prevalência da concepção subjetiva.
É fácil intuir que a razão de ser de tal prevalência seja um certo receio de se chancelar o enriquecimento sem causa do consumidor.
Tal preocupação extrai-se, inclusive, do pensamento de alguns autores de nomeada, como por exemplo, da seguinte passagem da obra de Arruda Alvim, segundo o qual uma interpretação que alargasse a aplicação do parágrafo único do art. 42 do CDC “poderia levar a que o consumidor inescrupuloso dela se tentasse beneficiar, nada alegando se fosse indevidamente cobrado, ainda que tivesse consciência de ser a cobrança indevida, com o escopo de vir a receber em dobro, aquilo que pagasse indevidamente e, pois, vindo a enriquecer sem causa, o que, evidentemente, não se pode admitir” .
Conforme se enfatizará mais adiante tal preocupação decorre muito mais de óbices de natureza psicológica do que jurídica.
Porém, tal preocupação tem se entranhado nos acórdãos proferidos de tal forma que o dispositivo ora analisado, em termos de eficácia social, encontra-se bastante mitigado.
A título de exemplo, transcreve-se a ementa de acórdão oriundo do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, no qual se reconheceu o direito à repetição do indébito em dobro no caso de cobrança indevida, mas com base na concepção subjetiva, verbis:
CEDAE. COBRANÇA DE TARIFA DO ESGOTO. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. INOCORRÊNCIA. COBRANÇA INDEVIDA. MÁ-FÉ. ART. 42, PAR. ÚNICO, CDC.
Tarifa de Esgoto. Tratamento Próprio. Cedae.
Essa tarifa somente é devida se as águias, após o tratamento, forem lançadas no sistema público de esgotamento.
Sendo o condomínio autor da ação dotado de fossa séptica, dotada de filtro anaeróbico, ligada no sistema de coleta de águas pluviais, mantido pela Prefeitura do Município, que deságua nos cursos d’água existentes na vizinhança, e que não integram aquele sistema, nem está subordinado à CEDAE, mas sim à SERLA, é indevida a cobrança, por parte da CEDAE, de tarifa de esgoto.
Inaplicáveis as normas relativas à prescrição contidas no art. 1°, c, da Lei n° 9.494, de 10 de setembro de 1997, e no art. 27 do Código de Defesa do Consumidor, pois eles somente se referem às ações decorrentes de danos provocados por empresas prestadoras de serviços públicos, ou pelos produtos ou serviços por elas fornecidos, enquanto aqui se cuida de ação de repetição de indébito.
Aplicação da norma do art. 42, par. único, do Código de Defesa do Consumidor, diante da evidente má-fé da apelante, que insiste em cobrar por serviços que sabe que não presta e jamais prestou, inexistindo qualquer texto legal que ampare, ao menos por aparência, sua pretensão.
Sentença mantida.
(Apelação cível n° 23.333/2001; 15ª Câmara Cível; Rel. Des. Sérgio Lúcio de Oliveira Cruz; Data do julgamento: 06 de fevereiro de 2002, publicado na íntegra na Revista de Direito n° 54. Rio de Janeiro: Tribunal de Justiça. 2003, p. 160/163).
Da leitura da ementa permite-se extrair que a caracterização da má fé do fornecedor foi elevada a requisito essencial ao deferimento do pedido de devolução do indébito em dobro.
Por uma questão de conveniência será evitada a transcrição de outras ementas, utilizando-se a ementa reproduzida acima como paradigma do pensamento predominante na jurisprudência pátria.
Sem embargo de tal opção metodológica, cumpre se fazer o registro de que também o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou sobre o tema negando a devolução em dobro ao argumento de que cobrança baseava-se em questão controvertida a respeito da forma de cálculo dos juros devidos, oriundo que era de contrato celebrado com instituição financeira (Resp 505734/MA) .
Apenas para fins de se enfatizar a polêmica acerca da questão ora debatida Rizzato Nunes chega a asseverar que se há resistência judicial acerca do valor que o consumidor entende como o devido, só por isso, a restituição deverá ser em dobro .
Perceptível a discrepância entre a posição defendida pelo autor citado e o entendimento que foi consagrado no acórdão do Superior Tribunal de Justiça.
Contudo, invariavelmente, com um ou outro nuance, a concepção subjetiva tem norteado a atuação dos magistrados na aplicação do parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor.

4) Da Incompatibilidade da Concepção Subjetiva do Parágrafo Único do Art. 42 do CDC com o Sistema de Proteção do Consumidor
No que tange à responsabilidade civil do fornecedor o sistema de proteção do consumidor procurou calcar-se na chamada teoria da qualidade, a qual, segundo Antônio Herman de Vasconcellos e Benjamin, se trata “de uma releitura das garantias tradicionais sob o prisma da produção, comercialização e consumo em massa. Busca-se com ela dar, pelo menos no plano teórico, unicidade de fundamento à responsabilidade civil do fornecedor em relação aos consumidores. Nada mais de discussões estéreis - e prejudiciais à proteção do consumidor - entre responsabilidade contratual e extracontratual. Tudo passa a ser mera decorrência de um dever de qualidade e quantidade” .
Portanto, o dever de indenizar, em matéria de direito do consumidor, advém de violação ao do dever de oferecimento de produtos e serviços no mercado de consumo em consonância com as legítimas expectativas do consumidor, de onde se extrai os parâmetros de qualidade, juntamente com as normas técnicas que regem a fabricação e comercialização dos produtos e prestação de serviços.
Não é por outro motivo que o legislador adotou a responsabilidade objetiva como regra no direito do consumidor.
Tal concepção retrata um processo de objetivação da relação de consumo, que não só melhor se adequa à realidade das relações de massa como facilita a defesa do direito do consumidor em juízo.
Também merece referência o princípio da boa fé objetiva que ilumina todo o sistema de proteção do consumidor, o qual traduz um dever de conduta de acordo com as legítimas expectativas do consumidor .
A cobrança indevida feita pelo fornecedor não deixa de ser uma violação ao dever de atendimento à teoria de qualidade.
A relação de consumo, na verdade, se traduz num verdadeiro processo que se inicia com a oferta e se desdobra em tantas fases quantas forem as etapas a serem cumpridas antes, durante e após o cumprimento do contrato, mas que se relacionem ao atendimento das legítimas expectativas do consumidor.
Assim, a relação contratual consumerista norteia-se, do ponto de vista do fornecedor, pelo cumprimento dos chamados deveres anexos, os quais delineiam os parâmetros de qualidade no fornecimento de produtos e prestação de serviços no mercado de consumo.
Segundo Cláudia Lima Marques tais deveres “tratam-se de verdadeiras obrigações (obrigações acessórias, como os denominam os franceses), a indicar que a relação contratual obriga não somente ao cumprimento da obrigação principal (a prestação), mas também ao cumprimento das várias obrigações acessórias ou dos deveres anexos aquele tipo de contrato” .
Tais deveres se desdobram em obrigações pré-contratuais (respeito ao princípio da veracidade e da não abusividade na publicidade, por exemplo), contratuais (abstenção de utilização de cláusulas abusivas, v.g.) e pós-contratuais (oferecimento de peças de reposição por tempo razoável).
Sob outro enfoque tais deveres podem também ser classificados em deveres de informação, cooperação e cuidado.
Não há porque se enclausular a cobrança de dívidas em um sistema diferenciado de avaliação da responsabilidade do fornecedor.
Na medida em que o consumidor é instado a pagar quantia indevida e o faz, caracterizada está a violação ao princípio da boa-fé objetiva, na medida em que violado o standard de qualidade que determina a correção dos cálculos apresentados na cobrança.
Poder-se-ia afirmar que obedece a teoria da qualidade o fornecedor que insere na conta de telefone pulsos não utilizados pelo consumidor?
A que título for a inserção indevida, violou-s, na melhor das hipóteses o dever de cuidado, o que em hipóteses com a do exemplo, torna acentuada a lesão do consumidor, na medida em que não dispõe de meios sequer para questionar o valor da conta apresentada.
Nesse contexto, a utilização da boa fé subjetiva como parâmetro de interpretação do que seria motivo justificável a ensejar a não aplicação da sanção civil de repetição dobrada do indébito consubstancia verdadeira quebra do sistema de proteção do consumidor.

5) A Sanção Prevista no Parágrafo Único do Art. 42 do Código de Defesa do Consumidor Vista como Espécie de Punitive Damages
Compreender-se-á a expressão alienígena punitives damages como a indenização fixada como o intuito de punir o agente da conduta causadora do dano cujo ressarcimento é autorizado pela lei em favor da vítima.
Em tradução livre a expressão significaria “danos punitivos”, sendo perceptível uma falha semântica eis que na verdade não se trata de “danos” mas sim de uma indenização com o propósito de sancionar o infrator.
No direito internacional, sobretudo o norte-americano, a utilização de tal instituto tem sido muito criticada em função da desproporção entre o dano e a indenização ao final fixada .
Quanto ao direito brasileiro, sem embargo da polêmica existente sobre o assunto, a regra estabelecida pelo Código Civil em vigor não prevê a utilização dos punitive damages para fins de fixação do valor da indenização.
O art. 944 do Codex estabelece que a indenização será medida pela extensão do dano, pode ser reduzida (e não ampliada) se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano.
No sistema do Código Civil a indenização tem o nítido objetivo de recompor o patrimônio da vítima .
Em relação ao Código de Defesa do Consumidor, mister se faz consignar que, a priori, houve a intenção do legislador em consagrar como regra geral a possibilidade de utilização dos punitive damages em seu art. 16, que acabou vetado .
Porém o veto não pode ser interpretado como o banimento completo da idéia de utilização da indenização civil com efeito de pena.
Doutrina e jurisprudência são pródigas em entendimentos os mais diversos a respeito da fixação do quantum indenizatório em matéria de danos morais.
Nessa seara é que se digladiam várias correntes ora contra ora a favor da utilização da indenização como verdadeira sanção civil.
Não se pretende presentemente a análise aprofundada de tais correntes, mormente para que não se desvirtue o tema proposto.
Portanto, partir-se-á de algumas premissas para o prosseguimento do raciocínio.
Em primeiro lugar, até mesmo em função da proliferação de acórdãos nesse sentido, entender-se-á que o direito pátrio não proíbe de forma peremptória a utilização da indenização civil com a finalidade de pena.
Todavia, para que tal utilização possa ser feita há que haver previsão legal expressa nesse sentido.
Caso contrário, estar-se-ia violando o princípio basilar da legalidade (nulla poena sine lege) .
Fixadas ditas premissas, é possível vislumbrar no dispositivo legal do parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor verdadeira hipótese de punitive damages autorizada previamente em lei.
Note-se que dentro do sistema de proteção ao consumidor foi consagrada como regra a responsabilidade objetiva do fornecedor, conforme anteriormente explicitado.
Desse modo, a expressão engano justificável deve ser interpretada como fator que exclua o nexo de causalidade entre a conduta do fornecedor e o dano causado, o que, invariavelmente só será demonstrado no caso fortuito, na força maior e no fato do príncipe.
Não há razão que justifique se excepcionar o sistema de proteção ao consumidor no que tange aos critérios de aferição da responsabilidade civil do fornecedor pelos danos causados ao consumidor.
Há no dispositivo legal em comento um nítido intuito de emprestara à devolução em dobro uma função pedagógica e de desestímulo ao fornecedor.
A idéia de que a condenação indiscriminada à repetição dobrada do indébito consubstanciaria enriquecimento sem causa do consumidor parte de uma idéia equivocada de causa da obrigação.
O dever de pagar tem como causa a violação da própria lei (art. 42, parágrafo único, do CDC) e não a regra geral .
Respaldando a norma existe o interesse social em se coibir a cobrança indevida, sendo apenas uma opção do legislador que tal sanção se reverta em favor do próprio consumidor.
Mas o pseudolucro do consumidor é irrelevante frente ao benefício social trazido pela aplicação da norma em comento.
Para se ilustrar a hipótese, pense no seguinte exemplo: imagine uma grande empresa que não dispõe de recursos para pagar o 13° salário de seus funcionários. Desesperada, por determinação da diretoria, ela insere uma tarifa inexistente nos boletos bancários que são enviados aos seus clientes que, sem perceber a diferença até por se tratar de acréscimo irrisório, efetuam o pagamento.
Veja que, se determinada a devolução simples, a artimanha terá valido a pena e será estimulada para os anos seguintes, vez que na pior das hipóteses representará para o fornecedor um empréstimo compulsório a juros baixos.
Isso se todos os consumidores pleitearem a devolução do indébito, pedido este que, se não for deduzido em juízo através de uma ação coletiva, não impedirá sequer o enriquecimento ilícito do fornecedor em função do desestímulo natural ao litígio causado pelo diminuto prejuízo patrimonial individual.
Poder-se-ia objetar o exemplo ao argumento de que na hipótese apresentada há flagrante má-fé do fornecedor, o que consagraria a concepção subjetiva.
Porém, a mesma situação poderia ocorrer se a cobrança indevida fosse decorrente de um erro de cálculo do setor de contabilidade da empresa.
Do mesmo modo, ainda que ausente a má-fé, teríamos aberto uma linha de crédito com juros facilitados financiada involuntariamente pelo consumidor.
Afinal o CDC visa a proteger qual parte da relação de consumo?
O que se pretende asseverar que mesmo em situações em que não se possa imputar culpa ao fornecedor o dano acontece.
Negar a indenização nesses casos seria imputar ao consumidor o ônus de suportar os danos decorrentes do equívoco, o que não se coaduno com os princípios vetores do Código de Defesa do Consumidor, dentre os quais se destacam os princípios da vulnerabilidade e o da confiança.
Deve se levar em conta, ainda, que ao se adotar o entendimento de que a devolução em dobro só deve ser chancelada nas situações em que estiver presente a má-fé do fornecedor, a prova do dolo em juízo será extremamente difícil ao consumidor.
E mesmo quando invertido o ônus da prova, o fornecedor poderá com facilidade demonstrar algum equívoco técnico para justificar sua conduta, podendo muitas vezes apresentar-se a um acordo amigável consistente na devolução simples dos valores indevidamente cobrados, o que caso homologado, já terá servido ao fornecedor como fator de enriquecimento sem causa.
Como bem assevera Cláudia Lima Marques “estes pequenos erros de cobrança só podem ser combatidos com maior eficiência e só haverá a maior diligência e perícia exigida dos fornecedores pelo CDC, se a jurisprudência entender o art. 42 como uma sanção exemplar (exemplary damages), que – certo – beneficia um, mas que leva a mudança da prática de mercado”.
A festejada autora gaúcha lembra, com muita propriedade que eventuais distorções podem ser corrigidas com a aplicação do art. 51, inciso I, do CDC, que permite a limitação da indenização quando se tratar de consumidor pessoa jurídica.

6) Conclusão
Ante tudo o que foi exposto, permite-se concluir que a repetição do indébito em dobro prevista pelo art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor consubstancia verdadeira sanção civil imposta ao fornecedor que efetua cobrança indevida e recebe tais valores ilicitamente.
A justificativa admitida pela lei para eximir o fornecedor de tal sanção deve referir-se a fato que exclua o nexo de causalidade entre sua conduta e o dano suportado pelo consumidor, sendo irrelevante a análise da presença de boa-fé subjetiva por parte do fornecedor, sem embargo da presença de investigação a esse respeito na maioria dos acórdãos proferidos na jurisprudência pátria.
A irrelevância da presença de dolo ou culpa para se concluir pelo dever de indenizar prende-se à constatação de que o sistema de proteção do consumidor é todo baseado em critérios objetivos de aferição de atendimento à chamada teoria da qualidade.
Assim sendo, a sanção em dela tem função pedagógica e inibidora de condutas lesivas ao consumidor, tendo em vista em maior grau o interesse social no controle das imperfeições do mercado do que propriamente o interesse particular do consumidor individualmente considerado.
Permite-se, assim, vislumbrar no dispositivo legal em comento hipótese de aplicação dos chamados punitive damages (indenizações com finalidade punitiva) no Brasil.

Referências Bibliográficas

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Retirado de: http://www.brasilcon.org.br/exibir_artigos.asp?codigo=15. Acesso em 05 de Abril de 2005.