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RESPONSABILIDADE POR VÍCIOS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO

 

 

Paulo Luiz Netto Lôbo é  Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Professor Doutor da Universidade Federal de Alagoas e dos cursos de Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Pernambuco. Diretor do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor.
postado  em: 17/02/2005
 

 

 

Resumo: 1. Mudanças sócio-econômicas e insuficiência do regime jurídico tradicional. 2. Elementos da responsabilidade por vício. 3. Relação de consumo. 4. Vício oculto e aparente. 5. Impropriedade do produto ou serviço viciados. 6. Diminuição de valor. 7. Desconformidade com as indicações anunciadas. 8. Responsabilidade e solidariedade passiva do fornecedor.


1. MUDANÇAS SÓCIO-ECONÔMICAS E INSUFICIÊNCIA DO REGIME JURÍDICO TRADICIONAL

Nas últimas década do século XX, cresceu no mundo inteiro a convicção de que a proteção do consumidor pelo controle difuso do mercado era uma falácia. O controle, mediante uma legislação protecionista que assegurasse ao consumidor um papel ativo na atividade econômica, passou a ser hegemônico. A Constituição de 1988 elevou a defesa do consumidor a princípio condicionante da ordem econômica.

Menos que um modismo, é a adequada resposta do direito ao fenômeno crescente da oligopolização e globalização da economia, que tornou o consumidor um figurante passivo e hipossuficiente, afetando a própria noção atual de cidadania.

Neste quadro, o advento do Código do Consumidor, de 1990, não foi surpreendente, ao remodelar profundamente o sistema de responsabilidade por vícios. O regime jurídico dos vícios redibitórios, sem embargo de permanecer válido para as relações negociais comuns, revelou-se insuficiente como resposta às demandas de relações de consumo. Em trabalho premonitório*, lembrou Orlando Gomes ser «manifesto que essas regras (arts. 1.101 e 1.105 do Código Civil), voltadas para contratos individuais e isolados que chegam ao acordo pelo êxito das tratativas, são totalmente inadequadas aos complexos fenômenos do consumo nos sistemas capitalistas dos dias de hoje, condensados juridicamente na contratação em massa». O modelo da legislação civil da responsabilidade por vícios da coisa está orientado para o valor de troca e não para o valor de uso ou consumo**, tratando igualmente relações desiguais, sem proteger a evidente vulnerabilidade e inferioridade jurídica do adquirente ou utente de bens de consumo.

As soluções alternativas, construídas pela jurisprudência dos tribunais, tampouco atendem ao princípio de proteção, porque ainda muito presas ao esquema contratual, de igualdade formal das partes, e ao princípio da autonomia da vontade. Daí uma forte tendência para buscar refúgio na responsabilidade objetiva.

Contudo, nem tanto ao mar nem tanto à terra. O regime da responsabilidade por vício adotado pelo Código de Defesa do Consumidor destravou as amarras que cerceavam os movimentos do tradicional instituto dos vícios redibitórios, flexibilizando os modos de exercitar as pretensões, admitindo o vício aparente e ampliando o alcance ao enlaçar os serviços prestados. Os princípios fundamentais de um e de outro são comuns, no entanto, tornando valiosa e fascinante a recepção da experiência antiga, desde os romanos, para que os esforços conjugados do antigo e do novo indiquem um regime jurídico apropriado às demandas de nosso tempo.
2. ELEMENTOS DA RESPONSABILIDADE POR VÍCIO

O Código do Consumidor incluiu uma seção (arts. 18 a 25) intitulada «Da responsabilidade por vício do produto e do serviço» em um capítulo mais amplo, destinado a tratar da «qualidade de produtos e serviços, da reparação e da prevenção dos danos». Houve uma clara opção para enquadrar a matéria no âmbito da responsabilidade civil, da qual seria espécie, ao lado da responsabilidade por fato do produto.

O novo instituto recepciona parcial ou totalmente os elementos essenciais dos vícios redibitórios, a saber:

a) contrato comutativo;
b) tradição da coisa (apenas para os vícios aparentes);
c) preexistência ou contemporaneidade do vício à entrega da coisa (ou do serviço);
d) gravidade do vício;
e) brevidade do tempo para o exercício da pretensão.

O vício pode ocorrer em qualquer contrato comutativo*** de consumo, e não apenas no contrato de compra e venda, como já previra o Código Civil. O contrato há de ser oriundo de relação de consumo (fornecedor versus consumidor), como pressuposto da incidência do modelo legal.

O momento da entrega da coisa (tradição) ou do serviço (conclusão) é imprescindível para cômputo dos prazos preclusivos, quando o vício for aparente. Mas também no caso do vício oculto, porque o dies a quo dele se desloca para o instante em que é revelado ou conhecido, normatizando-se o que a construção jurisprudencial já admitia.

A preexistência ou concomitância do vício, quando da entrega do objeto do contrato, não está explicitada no Código de Defesa do Consumidor (também o Código Civil não o faz), mas dele se infere, até porque é da natureza da garantia legal. O vício é oculto no momento da entrega; o que ocorre posteriormente é sua revelação. O vício é aparente também no momento da entrega, dela decorrendo o prazo para exercício das pretensões postas à disposição do comprador.

O grande passo que se deu, quanto à preexistência do vício, foi a transferência do ônus da prova do adquirente ou utente (consumidor) para o alienante ou prestador (fornecedor). Este princípio (art. 6º, VIII, do CDC) preside todas as relações de consumo. Cabe, pois, ao fornecedor comprovar que a coisa ou o serviço foram entregues sem vícios ocultos ou aparentes, e que tais defeitos são supervenientes e imputáveis exclusivamente ao consumidor, à culpa exclusiva deste. Este benefício busca sua etiologia no princípio da defesa do consumidor (art. 170, V, da Constituição); sem ele a garantia estaria praticamente inviabilizada, dada a natureza complexa, assimétrica e massificada da relação de consumo.

A gravidade do vício há-de estar caracterizada. O Código do Consumidor manteve os elementos tradicionais dos vícios redibitórios, ou seja, a impropriedade ao consumo (o Código Civil refere-se a uso) a que se destina o objeto da prestação (coisa ou serviço) ou a diminuição do valor. Outra importante hipótese, no entanto, foi acrescentada, conforme melhor exporemos adiante: a disparidade com as qualidades ou quantidades anunciadas (rótulo, embalagem, propaganda), prevista nos artigos 18, 19 e 20.

O Código do Consumidor manteve a brevidade dos prazos preclusivos, para exercício das pretensões à responsabilidade por vício: 30 dias para os bens e serviços de consumo não durável; 90 dias para os de consumo durável (art. 26). Os prazos são inexplicavelmente exíguos, menores que os previstos na legislação e códigos civis estrangeiros. Os problemas, enfrentados pela jurisprudência, persistirão, apesar do prazo interruptivo da reclamação ao fornecedor e da exigência de conhecimento para o vício oculto. Não se compreende porque se reduziu o prazo de seis para três meses, em relação aos imóveis (art. 178, § 5º, IV, do Código Civil), porque estes terminaram por ser incluídos nos bens de consumo durável, segundo a tipologia do CDC.

Estabelecidos os pontos de convergência com o instituto tradicional dos vícios redibitórios, passemos a analisar os demais elementos peculiares da responsabilidade por vício, nas relações de consumo, tomando-se por objeto de estudo o modelo do Código de Defesa do Consumidor****.

3. RELAÇÃO DE CONSUMO

A relação de consumo não é requisito; é um pressuposto para incidência do modelo legal da responsabilidade por vício. Na relação contratual comum continua incidente o regime dos vícios redibitórios. Portanto, além de pressuposto é linha divisória entre um regime jurídico e outro.

Dá-se a relação de consumo quando coisas ou serviços são fornecidos ao consumidor por quem exerce atividade econômico-jurídica permanente (fornecedor). Atividade é um complexo de atos teleologicamente orientados, tendo continuidade e duração dirigidos a um fim. A atividade deve sempre tender a um resultado, constituindo um comportamento orientado*****. Em sentido mais estrito, é a ocupação de uma pessoa, evocando movimento, a virtude de agir (vertu d'agir)******. A doutrina vem apontando para a transmudação do cerne da comercialidade do ato para a atividade*******.

É a atividade que qualifica o outorgante como fornecedor, para os fins legais, e converte a relação negocial em relação de consumo. Se o bem ou serviço foram entregues mediante ato que não se integra na atividade de quem entregou, a relação negocial é regida pelo direito comum, não se configurando o modelo de fornecedor previsto na lei (art. 3º do CDC).

Nas relações de consumo, a atividade obriga. Da mesma forma que a atividade obriga, mesmo inexistindo ilícito culposo, em face do dano (responsabilidade por fato do produto ou do serviço), ela obriga pela garantia de inexistência de vício (responsabilidade por vício do produto ou do serviço). A responsabilidade nasce não somente do exercício anormal do direito, mas também da liberdade e do exercício normal de sua atividade, quando provoca conseqüencias desvantajosas para outrem (o consumidor).

Ontologicamente, é difícil extrair das relações econômicas as figuras incontroversas de fornecedor e consumidor. Cabe à legislação de cada país defini-las, embora a doutrina se esforce em precisar um conteúdo conceptual uniforme.

Contudo, mesmo quando a legislação define a figura de consumidor, como fez o CDC brasileiro (art. 2º), a controvérsia persiste, repercutindo a velha lição dos antigos de que não deve a lei definir.

Para os objetivos deste estudo, não convém aprofundar a controvérsia entre minimalistas e maximalistas, mas impende lembrar que a definição do artigo 2º do CDC não esgota o conceito de consumidor adotado por esta lei brasileira. O artigo 17 do CDC equipara aos consumidores todas as vítimas do evento causador de dano oriundo de produto ou serviço objeto de relação de consumo (terceiros; bystanders). O artigo 29 do CDC equipara ao consumidor todas as pessoas «determináveis ou não» expostas às práticas comerciais, tornando para este fim irrelevante a distinção entre consumidor final e consumidor intermediário.

Por estra razão, é merecedora de aplauso a tendência da jurisprudência dos tribunais em aplicar o regime legal especializado a qualquer relação de consumo, designadamente quando exteriorizada em contrato de adesão. Como exemplo animador, cite-se decisão do Tribunal de Alçada de Minas Gerais (AP. 134.886-7)*******, em caso envolvendo compra e venda de duas máquinas de costura entre o fabricante e uma empresa de confecções, que apresentaram defeitos de funcionamento. Não sanado o vício no prazo de trinta dias, o fabricante foi condenado a devolver a quantia recebida mais perdas e danos, aplicando o tribunal o artigo 18, § 1º, do Código do Consumidor.

Seja qual for a dimensão que se adote para o consumidor, incluindo ou excluindo o consumidor intermediário, o direito há muito afastou-se da idéia de hipossuficiência. Objetivamente, na relação de consumo, ele é sempre a parte mais vulnerável, mesmo quando de fato economicamente mais forte. O Código do Consumidor brasileiro, no art. 4º, I, inclui entre os princípios de regência o «reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo». Vulnerabilidade não se confunde com hipossuficiência*********.

4. VÍCIO OCULTO E APARENTE

O sentido de vício oculto é o mesmo que a doutrina construiu desde o direito romano.

A novidade vem por conta do vício aparente que revoluciona o regime de responsabilidade por vício, distanciando-se do modelo tradicional dos vícios redibitórios. Com efeito, um dos elementos distintivos deste com outros modelos dogmáticos (erro, inadimplemento) sempre residiu no fato de ser o vício oculto a quem adquiriu a coisa. No sentido da lei brasileira, encaminha-se a legislação estrangeira sobre consumidor, como a lei espanhola de 19 de julho de 1984, cujo artigo 11 não exige que os vícios sejam ocultos.

Agora, mesmo que o vício seja aparente no momento da entrega do produto ou do serviço, cabe a responsabilidade do fornecedor. Muda apenas o termo inicial do prazo preclusivo para que o consumidor exerça sua pretensão contra o fornecedor: se aparente o vício, o do momento da entrega.

Como o ônus da prova é do fornecedor, a ele incumbe provar que:
a) o vício não existe e nunca existiu;
b) o vício não foi preexistente ou concomitante ao momento da entrega do produto ou do serviço;
c) o vício é imputável exclusivamente à culpa do consumidor.

A doutrina tradicional sempre entendeu que admitir o vício aparente seria chancelar a má fé ou o dolo do adquirente, ou a falta de seu dever de diligência comum, considerando-se o contrato como o campo da equipolência ou da paridade individual. Até mesmo nas legislações civis que admitem o vício aparente, como é o caso do Código Civil português, o vício conhecido do comprador no momento da conclusão do contrato exclui a garantia, porque presume ter aceitado a coisa defeituosa com conhecimento de causa.

Todavia, nas relações de consumo modernas, mercê de seu caráter impessoal, desigual e massificado, a inclusão do vício aparente é necessária para que se efetive o princípio de defesa do consumidor. Se assim não fosse, o consumidor estaria a mercê de intermináveis discussões judiciais acerca de seu desconhecimento do vício.

Em suma, o conhecimento do vício por parte do consumidor, no momento do recebimento do produto ou do serviço, não modifica a responsabilidade do fornecedor. No entanto, o consumidor terá de ser diligente quanto ao exercício da pretensão, porque o prazo preclusivo iniciou-se em seu desfavor.

5.IMPROPRIEDADE DO PRODUTO OU SERVIÇO VICIADOS

O Código de Defesa do Consumidor trata como sinônimos impropriedade e inadequação. No vocabulário comum, impróprio inclui o sentido de inadequado, e este o daquele (cf. verbetes do Dicionário Aurélio). O § 6º do artigo 18 inclui entre os produtos impróprios, ao uso ou consunmo, os que «se revelem inadequados ao fim a que se destinam».

Além da impropriedade genérica (inadequação ao fim a que se destina), o CDC prevê duas hipóteses especiais:

a) Quando os prazos de validade do produto estiverem vencidos. Esta é hipótese de vício aparente. Pouco importa que o produto continue são e regularmente consumível. Basta o vencimento do prazo de validade, porque presume a impropriedade. O prazo é fixado em lei ou regulamento, ou pelo próprio fornecedor.

b) Quando forem fornecidos produtos potencialmente perigosos ao consumo, embora não tenha havido dano, ainda. Havendo dano, incide cumulativamente a responsabilidade por fato do produto. Dá-se o perigo virtual quando o produto estiver deteriorado, alterado, adulterado, avariado, falsificado, corrompido, fraudado, nocivo à vida ou à saúde ou em desacordo com normas regulamentares. São situações que se enquadram no conceito amplo de dolo, mercê de seu forte componente intencional. A regra comum do Código Civil (art. 1.103) aplica-se com adaptação, ou seja, o fornecedor é responsável por vício e também por perdas e danos, além das sanções administrativas e penais acrescidas pelo CDC.

6. DIMINUIÇÃO DE VALOR

Não há necessidade que o vício diminua objetivamente o valor, embora seja intuitivo que sempre assim aconteça. Contempla o princípio constitucional de defesa do consumidor que não se veja obrigado a alegar a diminuição do valor do produto ou do serviço prestado.

A alegação de redução do valor é suficiente para caracterizar o vício, dispensando o recurso às demais hipóteses (impropriedade ou desconformidade).

A lei brasileira não define o que considera diminuição de valor. Não se exige que seja substancial ou de grande monta. Neste caso associam-se os elementos objetivos e subjetivos de aferição. De qualquer forma, há de ter expressão pecuniária.

Ingressam no valor de uma coisa ou de um serviço elementos variáveis, segundo as circunstâncias, a destinação e as pessoas envolvidas. Ocorre mesmo quando o vício seja inestimável ou flutuante por força de carga de afetividade do consumidor destinatário. As regras da experiência comum são suficientes para o convencimento do julgador da existência ou não de diminuição de valor.

Dentre as pretensões que o consumidor pode exercer, apenas uma interessa para a determinação da proporcionalidade da diminuição do valor. É quando resolve manter o produto ou o serviço viciado. Neste caso dá-se o abatimento proporcional do preço que lhe incumbe, de acordo com critérios admitidos pela doutrina e pela jurisprudência.

7. DESCONFORMIDADE COM AS INDICAÇÕES ANUNCIADAS

Esta hipótese de ocorrência de vício, prevista nos artigos 18 e 20 do CDC (sob a denominação de «disparidade»), não está prevista no sistema tradicional dos vícios redibitórios. Decorre da natureza peculiar da relação de consumo, oriunda de oferta ao público, sem embargo de localizarmos sua etiologia no princípio fundamental da boa fé.

Trata-se de boa fé objetiva, ou seja, quando o fornecedor provoca no consumidor a representação, fundada na confiança**********, de conformidade do produto ou do serviço com o modelo anunciado.

Confia-se no significado comum, usual, objetivo da conduta ou comportamento reconhecível no mundo social. A boa fé objetiva conduta honesta, leal, correta. É a boa fé de comportamento.

O produto ou serviço fornecidos ao público anunciam-se de vários modos que induzem ao consumo como oferta ao público, a saber, no recipiente, na embalagem ou na mensagem publicitária de qualquer natureza. O direito do consumidor considera qualquer anúncio ou mensagem publicitária integrante da oferta ao público e, como tal, vinculante ao fornecedor (a respeito, cf. o art. 30 do CDC). O que antes (a informação, a publicidade) era considerada apenas dolus bonus, sem vínculo obrigacional a quem dela se utilizava, passou a configurar a oferta por excelência na relação de consumo, prevalecendo até mesmo sobre o contrato formalmente celebrado.

O vício de desconformidade pode ter sido provocado por anúncio ou publicidade enganosa de prepostos ou representantes autônomos do fornecedor. Este é solidariamente responsável pelos atos daquele.

O consumidor adquire ou utiliza o produto ou o serviço atraído pelas indicações anunciadas, confiante que são verdadeiras.

A desconformidade ocorre quando o consumidor constata que as qualidades ou quantidades anunciadas não correspondem à realidade do produto entregue ou do serviço prestado.

No caso de serviços, o vício de desconformidade é relativo à sua qualidade, na forma do que dispõe o art. 20 do CDC. A desconformidade entre a quantidade dos serviços efetivamente prestados e a constante do anúncio ou da mensagem publicitária importará inadimplemento contratual, aplicando-se as regras comuns de inexecução das obrigações e a utilização, pelo consumidor, da exceção non rite adimpleti contractus (art. 1.092 do Código Civil, por extensão).

8. RESPONSABILIDADE E SOLIDARIEDADE PASSIVA DO FORNECEDOR

No sistema do Código de Defesa do Consumidor, prevalece a solidariedade passiva de todos os que participam da cadeia econômica de produção, circulação e distribuição dos produtos ou de prestação de serviços. São todos fornecedores solidários.

Assim, o consumidor pode exercer suas pretensões contra qualquer um deles, que por sua vez se valerá da regressividade contra os demais. No caso de produto, ou o comerciante, ou o produtor, ou o construtor, ou o importador, ou o distribuidor. No caso de serviço, o contratante, ou qualquer subcontratante. Este é o sentido dos artigos 18, 19 e 20 do CDC, ao contrário da responsabilidade por fato do produto, que exclui o comerciante (art. 14), salvo em casos excepcionais.

No sistema tradicional dos vícios redibitórios, a pretensão (e a ação edilícia correspondente) é exercida apenas contra a pessoa que entregou a coisa.

A solidariedade passiva de qualquer fornecer, integrante da cadeia econômica responsável pela colocação do produto ou do serviço no mercado, é ampla, porque alcança até mesmo os prepostos ou representantes autônomos.

O Código de Defesa do Consumidor abre uma única exceção à regra da livre escolha do fornecedor, que responderá pelo vício. É o caso de fornecimento de produtos in natura (art. 18, § 5º) quando não for possível a identificação do produtor: responsável será o fornecedor imediato, cessando a solidariedade passiva em face do consumidor. O fornecedor imediato, no entanto, não está impedido de exercer a pretensão de regresso contra o fornecedor originário.

As regras da solidariedade passiva são as mesmas dos artigos 904 a 915 do Código Civil, que se aplicam subsidiariamente. Como diz o artigo 896 do Código Civil, há solidariedade quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado à dívida toda.

É da natureza da responsabilidade solidária que a ação proposta pelo consumidor contra um dos fornecedores (por exemplo, o comerciante) não o inibe de acionar outro (por exemplo, o fabricante).



* Responsabilidade Civil do Fabricante, Revista de Direito Civil, 32:12-21, abr.jun. 1985

** Cf. Reich, cit. por João Calvão da Silva, Responsabilidade civil do produtor, cit. p.279. Calvão, ressaltando esta característica, diz que o caso típico hoje é o da negociação de coisas genéricas, de produtos fabricados em série, em cuja aquisição o adquirente se determina pelas características típicas (espécie e qualidade média) do gênero e não pelas qualidades que apresentam uti singule (p. 281). Em situações que tais, a ausência de vício entra no conteúdo da prestação.

*** V. nossas considerações a respeito, no Capítulo I desta obra.

**** Não é por acaso a repulsa do legislador do Código do Consumidor à locução vícios redibitórios. A insuficiência e quase inefetividade deste velho instituto, pelas razões que apontamos, induziram ao seu afastamento e à busca de caminhos que dele se desvinculassem. Preferimos entender que houve, mais que uma criação de algo novo, a metamorfose do antigo. A alteração do nome jurídico (de vício redibitório para vício de qualidade ou quantidade) não altera a natureza do instituto.

***** Cf. Paulo Luiz Neto Lôbo, Condições Gerais dos Contratos e Cláusulas Abusivas, São Paulo, 1991, p. 58.

****** Cf. Gérard-Jérôme Nana, La Reparation des Dommages Causes par les Vices d'Une Chose, cit. p. 320.

******* Cf. Luiz Gastão Paes de Barros Leães, A responsabilidade do fabricante pelo fato do produto, São Paulo, 1987, para quem a atividade é a prática reiterada de atos negociais, de modo organizado e unificado, por um mesmo sujeito, visando a uma finalidade econômica unitária e permanente (p. 23/14).

******** RT 694/170.

********* James Marins (Responsabilidade da empresa pelo fato do produto, São Paulo, 1993), embora admita um conceito flexível de consumidor, entende não ser possível tal extensão para o regime referente ao vício do produto, tratado nos arts. 18 e seguintes do Código do Consumidor, «que foi, de fato, valorado legislativamente como um minus em relação àquelas previsões legais que comportaram a exceção legal ao artigo 2º, cabendo apenas aos intermediários, nesta hipótese a possibilidade de se utilizarem dos dipositivos do Código Civil (arts. 1.101-1.106) e do Código Comercial (arts. 191 e ss) [indica como apoiando esta tese NERY JUNIOR, NÉLSON et alli. Código Brasileiro de Defesa do consumidor. Rio: Forense Universitária, 1991. p. 271] de acordo com a natureza civil ou comercial do negócio jurídico convolado, podendo, entretanto, lançar mão das normas do Código de Defesa do Consumidor referentes à proteção contratual e às práticas comerciais». Não comungamos desta interpretação restritiva, que a lei (o Código do Consumidor) não faz, especialmente em face do largo alcance do art. 29, que protege todo aquele que se encontre exposto às práticas comerciais, seja consumidor final ou intermediário. Nestas situações, a vulnerabilidade do adquirente ou utente é sempre presumida.

********* Para Menezes cordeiro (Da Boa Fé no Direito Civil, t. 2, Coimbra, 1984, p. 1.234) a confiança exprime a situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade ou de crença, a certas representações, passadas, presentes ou futuras, que tenha por efetivas. O princípio da confiança explicitaria o reconhecimento dessa situação e tutela.

 

 

Retirado de: http://www.brasilcon.org.br/exibir_artigos.asp?codigo=18 . Acesso em 05 de Abril de 2005.