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A Defesa do consumidor e os contratos
bancários de crédito
José Gustavo Souza Miranda advogado no Estado
do Rio Grande do Sul.
SUMÁRIO - Introdução - 1. A defesa
do consumidor no ordenamento jurídico brasileiro: 1.1. O Código Civil de 1916;
1.2. O "Código de Defesa do Consumidor" como microssistema: 1.2.1. Alguns
conceitos no Código de Defesa do Consumidor - 2. Os limites de incidência do
"Código de Defesa do Consumidor" em relação aos contratos bancários:
2.1. Os financiamentos destinados ao consumo: 2.1.1. Crédito direto ao
consumidor; 2.1.2. Contrato de abertura de crédito em conta-corrente; 2.1.3. Cartão
de crédito - 2.2. Os Financiamentos destinados à produção de bens/serviços:
2.2.1. Crédito comercial e industrial; 2.2.2. Crédito rural; 2.2.3. Leasing;
2.2.4. Algumas considerações sobre o artigo 29 do Código de Defesa do
Consumidor - Teses selecionadas para votação no Congresso.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 deu o
primeiro passo no sentido de uma proteção mais concreta do consumidor no
Brasil, prevendo, entre os Direitos e Garantias Fundamentais, a defesa do
consumidor (artigo 5º, XXXII). Mais adiante, no artigo 170, V, a defesa do
consumidor também foi incluída entre os princípios básicos da ordem econômica. E
assim, em virtude do que ficou programado pelo constituinte (artigo 48 do Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias - ADCT), surgiu a Lei nº 8.078, de
11.09.90, para dar regramento específico às relações de consumo. Entre os
contratos atingidos pelo fenômeno da massificação estão os contratos bancários
que são, talvez, o seu melhor exemplo. O tema do presente estudo é a situação
dos mútuos e demais contratos bancários que envolvem alguma forma de prestação
de crédito, a partir da criação do Código de Defesa do Consumidor.
Sobre esses contratos incidem normas
do Direito Civil, Comercial, Administrativo, Penal e outras. Normas de caráter
geral e normas específicas. Normas de hierarquia diversa, indo desde a
Constituição até resoluções e portarias de órgãos públicos. Como se dá, então,
a incidência do Código de Defesa do Consumidor sobre esse tipo de contrato? A
doutrina não é unânime. Há quem diga que somente os contratos que envolvem
serviços bancários foram afetados pelo novo Código. Outros, ao contrário,
afirmam que todas as normas específicas que até 1990 regiam esses contratos
foram revogadas pela nova lei, a qual passou a incidir, inclusive, sobre os mútuos
e demais financiamentos concedidos pelas instituições financeiras. Esse é o
tema; esse é o desafio. Antes de enfrentá-lo, porém, precisamos compreender
melhor o processo histórico que resultou no surgimento de leis especiais, entre
as quais estão as leis protetivas do consumidor.
O grande marco do Direito moderno é
o Código Civil francês, de 1804. Antes do Code Civil, não se sabe de nenhum
outro "Código" com as suas características. Podemos dizer que o
código surge como um diploma legal onde se procura incluir todas as normas
jurídicas aplicáveis a um determinado ramo das relações jurídicas. Assim, temos
o Code Civil como um "sistema de Direito Privado"; um sistema
hermético, no qual não se admite outra fonte que não seja a própria lei; um
Código completo e auto-referente, onde não há lacunas a serem completadas(1). A
liberdade é vista como liberdade natural, e só a vontade do homem livre a pode
restringir. Logo, a lei, concebida como expressão da vontade livre, assume
papel importantíssimo no panorama jurídico, e tal doutrina acaba por se
reproduzir, também, no Direito contratual.
A partir do Code Civil, o Direito
reconhece no indivíduo capacidade para não apenas escolher um tipo contratual,
mas, principalmente, para definir o conteúdo do contrato. O foco de
investigação deslocou-se dos tipos contratuais para "o contrato". Subsistem
os tipos, todavia, surge uma "Teoria Geral do Contrato" e princípios
gerais, entre os quais está o princípio da autonomia da vontade, que passa a
ocupar posição de destaque nesse ramo do Direito. Sendo o contrato a
consubstanciação de um relacionamento entre indivíduos dotados de vontade
livre, ele passa a ser visto como lei entre as partes. O Direito contratual,
portanto, limita-se a proteger a sacralidade(2) do pacto e corrigir defeitos
derivados, tão-somente, dos vícios de vontade. Na abóbada dessa construção,
temos o nosso tão conhecido pacta sunt servanda.
No século XIX, do ponto de vista
ideológico, praticamente não se vê nenhuma oposição ao liberalismo. O século
XX, ao contrário, é marcado pela explosão de ideologias que com ele passam a
dividir espaço. A democracia cristã, o socialismo, o comunismo; ideologias mais
conservadoras, reacionárias, e movimentos de vanguarda, exigindo mudanças
estruturais. De qualquer forma, os postulados liberais aplicados aos contratos
e ao Direito obrigacional como um todo não se adaptam, nem mesmo ao novo modelo
econômico capitalista, pois o volume de transações torna inviável a negociação
particularizada. As políticas empresariais e o forte poderio econômico dos
monopólios acabam por forçar uma imposição de cláusulas, segundo interesses
muito bem definidos, previamente, por apenas uma das partes. O indivíduo (que
ainda é considerado como detentor de uma vontade livre) vê-se impelido a vincular-se
a esse contrato ou pelas necessidades normais do cotidiano, ou pela força de
convencimento das novas técnicas de marketing, independente de estar exercendo,
ou não, a sua "vontade autônoma".
Em outros casos, principalmente em
relação aos serviços públicos, a contratação era obrigatória. Como se falar,
então, em autonomia da vontade? Tais indagações revelam uma verdadeira
"crise da teoria contratual clássica". O mito do código sem lacunas,
que consegue reger todas as relações jurídicas, passa a ser objeto de muitas
críticas. No Direito contratual, as críticas são dirigidas ao voluntarismo
previsto no código, que não atende mais a todas as formas de
"contrato". Pouco a pouco, na própria França e em outros países,
alguns juristas dão início a uma série de questionamentos sobre a validade do
modelo contratual consagrado pelo Code Civil. Dentre eles, salienta-se a figura
de Raymond Saleilles, do qual herdamos a expressão contrats d'adhesion
(contratos de adesão). Bem no início do século XX (1909), o jurista francês
publica uma obra na qual ele questiona a validade dos postulados oitocentistas,
frente a uma gama extraordinária de novas modalidades contratuais. Para
Saleilles, não se pode falar em vontade autônoma quando a liberdade contratual
do indivíduo se limita a aceitar as cláusulas elaboradas pela outra parte. Se o
aderente não estiver de acordo com tais estipulações unilaterais, frustra-se o
negócio. Na verdade, não há propriamente uma negociação; há, sim, uma
imposição. Em vista disso, a circunstância de unilateralidade, para Saleilles,
deveria ser considerada quando da interpretação das cláusulas contratuais.
Na busca de instrumentos adequados a
reger os mais diversos tipos de vínculo contratual e pela incidência de
ideologias sociais no pensamento político e jurídico, o Estado (ainda com o
monopólio da produção jurídica) passa a intervir de forma mais intensa nas
relações privadas. Agora não mais para garantir o cumprimento dos pactos, mas
para permitir que as distorções sejam amenizadas. A pretensa neutralidade do
Estado Liberal Moderno cede lugar a uma intervenção mais efetiva na ordem
econômica, fenômeno do século XX. É assim que durante todo este século se vem
desenvolvendo outro processo que, como o próprio nome sugere, repete os
problemas e traumas que marcaram a codificação do Direito, mas agora em sentido
oposto. Referimo-nos ao fenômeno, assim chamado, da
"descodificação"(3). Surgem leis especiais sobre os mais diversos
assuntos: relações de trabalho, inquilinato, divórcio, atuação de instituições
financeiras, etc. Nesse universo de leis especiais, surgem, também, as leis de
defesa do consumidor.
Feitas estas observações iniciais,
podemos passar a analisar a questão no Direito brasileiro, e assim chegaremos a
compreender o tipo de relacionamento existente entre a Lei nº 8.078/90, o
Código de Defesa do Consumidor, e os contratos bancários. Na medida em que o
Código de Defesa do Consumidor traz profundas alterações, cumpre-nos,
primeiramente, definir os limites de sua incidência, enquanto "microssistema",
no ordenamento jurídico pátrio. Em um segundo momento, procuraremos analisar
alguns contratos bancários à luz das conclusões deduzidas na primeira parte
deste estudo.
1. A DEFESA DO CONSUMIDOR NO
ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
1.1. O Código Civil de 1916
O Código Civil brasileiro, um dos
primeiros códigos do século XX, nasceu no momento em que os debates ideológicos
na Europa se tornam mais exaltados. No entanto, não houve aqui o mesmo tipo de
debate. Explica-se tal fato pela estrutura política, econômica e cultural do
País naquele momento. A economia brasileira baseava-se na exportação dos
produtos agropecuários e no comércio de bens de consumo, importados, sobretudo,
da Europa. A indústria nacional só iria sentir um impulso mais vigoroso a
partir da primeira guerra mundial. Também não podemos esquecer que o Código
Civil brasileiro viria para revogar uma legislação fiel, em linhas gerais, às
Ordenações, uma compilação de leis iniciada em 1603, que vigorou no Brasil mais
tempo do que em Portugal, sua nação de origem. Algumas novidades do Código
visavam a implantar aqui os melhores instrumentos jurídicos da Europa liberal -
modelo de cultura para a elite urbana de então -, ocasionando certa resistência
por parte dos "senhores rurais". Mas, em nenhum momento, chegou-se ao
ponto de abordar questões de cunho social como as que eram propostas nas
academias européias durante os primeiros anos do novo século. Só depois da
primeira guerra, com o crescimento da indústria nacional, alguns pontos
nevrálgicos recebem maior atenção. A matéria de contratos, no entanto,
permanecia incólume; exceção feita a intervenções localizadas que, como
exceção, confirmam a regra.
1.2. O "Código de Defesa do
Consumidor" Como Microssistema
Diferente é a situação atual em que,
via de regra, os contratos são balizados por leis especiais. Além disso, o
Poder Público tem feito intervenções freqüentes, quase de forma periódica,
alterando contratos em vigor. Nesse contexto, surge a nova ordem constitucional
que prevê a defesa do consumidor como um dos objetivos do Estado brasileiro e
insere essa disposição entre os direitos e garantias fundamentais (artigo 5º,
inciso XXXII). Na forma da lei, afirma o constituinte, deverá o Estado promover
a defesa do consumidor. Fora do prazo previsto no Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias, mas ainda em tempo de ordenar as relações de
consumo, é elaborado o "Código de Defesa do Consumidor", verdadeiro
"microssistema" dentro do ordenamento jurídico pátrio.
Um dos doutrinadores que melhor
tratou do fenômeno da descodificação no Brasil foi Orlando Gomes. Na obra em
homenagem a outro grande mestre (o professor Caio Mário da Silva Pereira), ele
deixou as suas impressões sobre a proliferação das leis especiais em nosso
ordenamento, as quais reputa verdadeiros microssistemas. Sobre o caráter desses
diplomas legais e sua relação com o Código Civil, afirma: "Constituem
distintos 'universos legislativos', de menor porte, denominados por um autor,
com muita propriedade, 'microssistemas', tal como sucede, por exemplo, com o
regime das locações. Estes microssistemas são refratários à unidade sistemática
dos códigos porque têm a sua própria filosofia e enraízam em solo irrigado com
águas tratadas por outros critérios, influxos e métodos distintos."(4)
Em 1984, quando foi publicado tal
artigo, o professor catedrático da Universidade da Bahia, que se notabilizou
pela erudição no tratamento de questões relativas ao Direito contratual, por
óbvio, não tinha em mente o Código de Defesa do Consumidor. Contudo, as suas
observações são extremamente adequadas ao novo estatuto do consumidor, na
medida em que ele se apresenta como um microssistema que tem as justas
características apontadas pelo mestre. Uma análise mais detalhada dos artigos
do Código de Defesa do Consumidor revelará dispositivos de Direito
Administrativo e de Direito Penal, convivendo com normas que regulam a
atividade contratual, publicidade, etc. Em todos esses ramos do Direito, não
encontramos normas equivalentes, e tal fato reforça a tese de que a Lei nº
8.078/90 se constitui em um verdadeiro microssistema, de acordo com as
ponderações feitas acima. Desse fato, conclui-se que "há um tipo especial
de relação jurídica a ser disciplinada pelo novo Código". E é no próprio
Código de Defesa do Consumidor, enquanto lei especial, que encontramos as
primeiras pistas para se descobrir o âmbito de sua incidência.
Antônio Herman Benjamin, um dos mais
destacados juristas na matéria do Direito do Consumidor, observa que "é a
definição de consumidor que estabelecerá a dimensão da comunidade ou grupo a
ser tutelado e, por esta via, os limites de aplicabilidade do Direito especial.
Conceituar consumidor, em resumo, é analisar o sujeito da relação jurídica de
consumo tutelada pelo Direito do Consumidor"(5). Sendo matéria de ordem
pública (artigo 1º) e por conter normas de caráter penal, administrativo,
contratual, etc., o Código de Defesa do Consumidor também requer uma
conceituação inequívoca de seus destinatários. O fato importante é que, na
medida em que o legislador lançou mão das definições em uma lei especial, estas
devem ser entendidas dentro do sistema da própria lei, sendo, portanto,
delimitadoras de sua incidência.
Em outros países que antecederam o
Brasil na promulgação de leis protetivas, optou-se por definir (e proteger) ou
a pessoa, ou a relação de consumo. Na Venezuela, por exemplo, as normas
protetivas não contemplam uma definição de consumidor(6). Nesse caso, incumbe à
doutrina e à jurisprudência definirem o destinatário da norma. Em outros países,
a proteção ao consumidor é diferenciada, dependendo do ramo de atividade onde o
produto ou serviço está inserido. Assim, o conceito de consumidor varia de uma
lei para outra, considerando as especificidades de cada ramo da atividade
econômica que se está a regular. Um exemplo dessa forma de conceituação do
consumidor é o Direito norte-americano(7). Já em outros ordenamentos não
achamos uma definição clara sobre a relação de consumo. Optou-se, isto sim, por
uma abrangência maior, na defesa do homem moderno frente ao poderio dos grandes
grupos econômicos, incluindo-se não só os atos de consumo, mas, também, a
defesa de interesses difusos, tais como a proteção ambiental.
O legislador brasileiro definiu
consumidor, inserindo, nessa definição, elementos que estão relacionados com a
relação de consumo: "Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que
adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final." (artigo
2º, caput). E mais adiante usou a técnica de equiparações na tentativa de
alargar a incidência do Código. Esse conceito, na verdade, é reflexo do
ecletismo brasileiro que se pode constatar, de forma muito acentuada, no
ordenamento jurídico. "Toda pessoa física ou jurídica" diz respeito
ao conceito de consumidor; enquanto que a segunda parte do caput (artigo 2º)
está definindo a relação de consumo protegida pelo Código. Especialmente
salientamos a expressão "destinatário final", a qual é a nota
distintiva que nos possibilita separar as relações de comércio, entre
profissionais, dos atos de consumo.
Toshio Mukai, ao comentar o artigo
1º, afirma que "quanto à finalidade, a norma restringiu-se à destinação
final, e, sendo assim, temos apenas o consumidor denominado privado, pela
doutrina, ficando alijada a figura do consumidor profissional ou industrial,
ou, ainda, intermediário"(8). Pouco antes, ele observa a dificuldade de se
conceber um consumidor pessoa jurídica, valendo-se dos ensinamentos de Antônio
Herman V. Benjamin para melhor explicar o problema. Da obra citada por Mukai,
achamos conveniente reproduzir aqui algumas linhas: "Como já mencionamos
antes, a amplitude de uma definição de consumidor que inclua a pessoa jurídica
entre seus tutelados - e sem qualquer ressalva - pode-se transformar em óbice
ao desenvolvimento do Direito do Consumidor, na medida em que tal conceito
jurídico de consumidor quase que chega a se confundir com o seu similar
econômico (excluindo-se deste último, evidentemente, o consumidor
intermediário). Em outras palavras: se todos somos consumidores (no sentido
jurídico), inclusive as empresas produtoras, por que, então, tutelar-se, de
modo especial, o consumidor? Também tem sido apontado na doutrina majoritária
estrangeira que tão amplo conceito, de certo modo, desvia a finalidade do
Direito do Consumidor, que é proteger a parte mais fraca ou inexperiente na
relação de consumo."(9)
As observações muito oportunas de
Herman Benjamin nos reportam a uma discussão que está na base do tema ao qual
nos propomos a tratar: Todos os contratos bancários são abrangidos pelo Código
de Defesa do Consumidor? A resposta só é possível na medida em que entendermos
esse diploma legal como um microssistema, cujos contornos são marcados pelas
definições básicas nele inseridas.
1.2.1. Alguns conceitos no Código de
Defesa do Consumidor
Uma das maiores dificuldades para o
jurista, ante a tarefa de classificação ou conceituação, é saber dosar o
elemento jurídico com aspectos econômicos, culturais, sociais, etc., que
expressam valores da sociedade em que a norma se insere. De um lado, o jurista
não pode olvidar-se de elementos (em princípio) estranhos ao Direito, os quais
podem ter grande influência em determinados casos. Por outro lado, também não
pode esquecer-se que a norma legislada é fruto de uma opção política. Logo, um
conceito adotado por essa lei poderá servir para restringir ou alargar as
possibilidades de sua incidência, ainda que em outras áreas tal conceito tenha
abrangência maior ou menor.
Do ponto de vista meramente
econômico, aquele que usa um produto (ou serviço) é consumidor, independente do
uso que ele dará ao bem adquirido. Ainda assim, para alguns fins (normalmente
estatísticos), faz-se a classificação dos consumidores em "consumidor
final" e "consumidor intermediário"; e essa divisão, embora
irrelevante para as ciências econômicas, tem muita importância para o Direito
do Consumidor. Para Herman Benjamin, o Direito do Consumidor não se ocupa do
consumo intermediário, mas apenas do "consumo final"(10). Dessa
forma, a noção econômica demonstra-nos que há uma diferença, mas não nos revela
o ponto importante que define o conceito jurídico. Continuando, ele explica a
questão, de maneira muito precisa, ao afirmar que "em termos estritamente
econômicos, o produtor também é consumidor, já que, no processo de produção, se
utiliza de produtos ou serviços fornecidos por outros. Contudo, o conceito
jurídico de consumidor não aceita tal amplitude e se prende a limites mais
restritos"(11). É assim que o artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor
fala em consumidor "como destinatário final".
Aqui, sim, os conceitos econômicos
nos serão de grande valia. Sabemos bem que no início da cadeia produtiva estão
as matérias-primas para todos os produtos ou serviços. Mas e quanto às demais
fases da produção, em que diversos elementos vão sendo agregados ao produto, e
muitos deles desaparecem em prol do beneficiamento que se está efetuando? Já
vimos que aqueles que utilizam esses bens são considerados consumidores
intermediários. Portanto, ainda não chegamos a completar todo o ciclo
produtivo. Vamos descobrir que esses materiais (ou mesmo serviços) utilizados
em atividades de aperfeiçoamento ou transformação são "insumos" que
passam a integrar o produto final. Logo, um mesmo bem ou serviço pode ser visto
ora como insumo, ora como produto final. É o caso do combustível, que
mencionamos acima, utilizado em veículos de transporte ou em máquinas de uma
fábrica, onde é insumo; e utilizado, igualmente, em carros de passeio, onde é
produto final. O ponto importante é "a destinação dada ao produto, por
parte daquele que o adquire".
De posse desses dados, pode-se
entender melhor os conceitos existentes no Código de Defesa do Consumidor. Consumidor,
portanto, recebe o adjetivo "destinatário final". O bem (ou serviço)
é bem de consumo; e o fornecedor não é somente aquele que fabrica um produto ou
presta um serviço, mas abrange todos os que de alguma forma participaram na
elaboração ou comercialização do mesmo, até que ele chegue ao verdadeiro
consumidor. Os artigos 12, 14 e 18 do Código de Defesa do Consumidor reforçam a
tese de que o novo Código colocou, no mesmo pólo da relação, todos os que
participaram da produção e comercialização dos bens de consumo. Aquele que
ressarce o consumidor pelo dano causado tem direito de regresso contra o
verdadeiro culpado (culpa em sentido subjetivo), mas aí já estamos em outra
esfera. Note-se que a responsabilidade perante o consumidor é totalmente
objetiva; independe de culpa. Já, o relacionamento entre os
"fornecedores" responsáveis solidariamente, tem solução diversa. O
Código de Defesa do Consumidor apenas faz referência a um direito de regresso,
sem definir quando ou como será exercido tal direito. Logo, essa outra relação
jurídica que surge deve reger-se pelo sistema do Código Civil.
A doutrina parece ser unânime em
afirmar que não se deve alcançar os instrumentos protetivos do Código de Defesa
do Consumidor àqueles que utilizam bens ou serviços em atividade profissional. A
exceção fica por conta da doutrina maximalista, que não se prende ao aspecto
finalístico na determinação do conceito de consumidor. Nas hipóteses de
responsabilidade pelo fato do produto, o referido alargamento causaria uma
tremenda incoerência no sistema de defesa do consumidor inaugurado com o
Código. O comerciante que adquiriu uma determinada máquina, a qual vem a causar
dano a terceiros, não poderá eximir-se da responsabilidade alegando que ele
também foi prejudicado pelo evento. Se lhe fosse dada essa possibilidade,
restaria completamente conturbado o sistema protetivo do Código, pois, como
impor ao réu um ônus de ressarcir, quando ele próprio é consumidor em relação à
indústria fornecedora? Na verdade, esse comerciante adquiriu tal produto como
um insumo a ser utilizado em sua atividade lucrativa. Falta-lhe, portanto, a
qualidade de "destinatário final".
Nesse sentido, podemos citar a
opinião de Maria A. Zanardo Donato que, referindo-se aos conceitos jurídico e
econômico de consumidor, afirma: "Verifica-se a estreita ligação existente
entre os dois conceitos - legal e econômico -, pois o consumidor também é naquele
considerado a pessoa que obtém bens de produção como destinatário final para a
satisfação de suas próprias necessidades, e não com vistas à circulação do bem
produzido."(12) Igualmente, o parecer de Toshio Mukai, já citado
anteriormente, exclui os "consumidores intermediários": "Quanto
à finalidade, a norma restringiu-se à destinação final, e, sendo assim, temos
apenas o consumidor denominado privado, pela doutrina, ficando alijada a figura
do consumidor profissional ou industrial, ou, ainda, intermediário."(13)
Abusando da obra de Antônio Herman
V. e Benjamin, justamente pela profundidade com que desenvolveu sua pesquisa e
pela clareza com que apresentou suas conclusões, citamos mais alguns trechos do
artigo donde se conclui ter ele a mesma posição: "Por fim, é de se
salientar que não é qualquer aquisição que configura ato de consumo. Adquirir
para transformar ou para revender não é, evidentemente, ato de consumo, no
sentido que lhe empresta o Direito do Consumidor. A aquisição que visa a um fim
profissional não é ato de consumo na acepção jurídica. Ato profissional opõe-se
a ato de consumo(14). "Que as pequena e média empresas, com seus fins
lucrativos, também necessitam de tutela especial, tal não se contesta aqui. Entretanto,
reconhecer que a microempresa, quando adquire bens e serviços fora de sua
especialidade e conhecimento técnicos, o faz em condições de fragilidade
assemelhadas às do consumidor individual ou familiar, não implica dizer que
aquela se confunde com este. O fim lucrativo os divide. Do mesmo modo a
atividade de transformação que é própria do consumidor (no sentido econômico)
intermediário. Além disso, os meios existentes à disposição da pessoa jurídica
lucrativa para defender-se mais acentuam a diferença entre esta e o consumidor
final, individual ou familiar."(15)
Além dessas conclusivas opiniões
sobre o conceito de consumidor, o mesmo jurista ainda reproduz as posições de
outros respeitáveis doutrinadores em relação aos ordenamentos jurídicos de seus
respectivos países. Em quase todos os lugares onde existe efetiva defesa do
consumidor, esses doutrinadores afirmam que há uma tendência de limitar a
incidência das leis protetivas ao "consumidor final". É o caso do
jurista belga, Thierry Bourgoignie, para o qual "consumidor será toda
pessoa individual que adquire ou utiliza, para fins privados, bens e serviços
colocados no mercado econômico por alguém que atua em função de atividade
comercial ou profissional"(16). Sobre essa relação entre profissional e
não-profissional, ele esclarece, mais adiante, que "a relação de consumo
não ocorre entre só comerciantes ou entre particulares apenas"(17).
Benjamin informa-nos, também, que na
lei espanhola, de 1984, se optou por uma definição positiva e outra negativa. A
definição negativa, literalmente, exclui do conceito de consumidor e usuário
"quem, sem se constituir em destinatário final, adquire, utiliza ou
consome bens ou serviços com o fim de integrá-los em processos de produção,
transformação, comercialização ou prestação a terceiros (artigo 1º, 3)"(18).
Quanto ao Direito norte-americano, Herman Benjamin faz uma descrição de várias
leis (acts) sobre a matéria e, ao citar a lei do Estado de Ilinois, faz o
seguinte comentário: "Logo, o comerciante e até mesmo o produtor rural
estariam fora dos limites de tal definição sempre que adquirissem bens para
outros fins que não para seu uso pessoal ou por membro da família."(19)
Mais especificamente quanto aos
contratos que envolvem concessão de crédito, temos a valiosa contribuição de
José Reinaldo de Lima Lopes, o qual fez um apanhado das disposições existentes
em outros ordenamentos(20). Na União Européia, por exemplo, existe uma Diretiva
do Conselho tratando do assunto (Decreto nº 87/102, emendada pela Diretiva nº
90/88, de 22.02.90). Quanto ao nosso tema, podemos citar que a diretiva faz
diferença entre "crédito de grande porte" e "crédito ao
consumo". Para não deixar dúvidas quanto ao significado dessa diferença, a
diretiva ainda define o consumidor como sendo "a pessoa natural que age
com fins externos (estranhos) à sua atividade profissional", artigo 1º,
2ª. Como é normal, devido à sua natureza, essa diretiva se encontra reproduzida
nos ordenamentos jurídicos dos países que compõem a União Européia. Dentre
eles, aquele autor menciona alguns exemplos, dos quais citamos dois. Na França,
Lopes destaca a Lei de 31.12.89 (nº 89/1010), que dispõe sobre endividamento de
consumidores, a qual foi incorporada à Lei de 26.07.93 (nº 93/949), o chamado
"Código de Consumo". O artigo 331 daquela lei institui uma comissão
encarregada de investigar os casos de superendividamento, prevendo formas de
solução para o endividamento de consumidores de "boa-fé, pessoa física,
para seus 'débitos não-profissionais' " (artigos 331-2)(21). Em Portugal,
a matéria é disciplinada pelo Decreto-Lei nº 359/91, de 21.09.91, o qual se
aplica a "créditos concedidos a pessoas singulares, 'fora de sua atividade
comercial ou profissional' "(22).
O Código de Defesa do Consumidor
também define "fornecedor", "produto" e
"serviço". O artigo 3º dispõe que: "Fornecedor é toda pessoa
física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os
entes despersonalizados, que desenvolvem atividades de produção, montagem,
criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização
de produtos ou prestação de serviços." Como se vê, o conceito de
fornecedor foi elaborado para dar grande abrangência, de forma a que toda
atividade lucrativa possa ser atingida pelos dispositivos do Código. O fim
lucrativo da atividade, embora não expresso no caput do artigo 3º, representa o
único item capaz de distinguir as pessoas jurídicas enquanto fornecedores ou
consumidores. Tal pensamento é reforçado pelo disposto no § 2º, ao definir
"serviço": "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,
'mediante remuneração' (...)." A expressão grifada refere-se, justamente,
ao fim lucrativo da atividade que deve ser considerada como serviço, para fins
de incidência do Código de Defesa do Consumidor. Além de distinguir o serviço
prestado por um "fornecedor" da atividade decorrente de relações
trabalhistas, fica reforçada a tese de que a "remuneração" à qual se
referiu o legislador, tem a ver com o fim lucrativo, o qual caracteriza o
fornecimento de bens ou serviços no sistema da Lei nº 8.078/90.
A maior parte dos juristas que se
dedica ao estudo desse ramo do Direito opina que foi infeliz a inserção das
pessoas jurídicas no conceito de consumidor. Já tivemos oportunidade de fazer
alguns comentários sobre esse ponto, acima. Apenas acrescentamos que as
fundações e associações (sem fins lucrativos) seriam, talvez, as únicas pessoas
jurídicas capazes de ostentar a condição de consumidor. Isto porque todas as
pessoas jurídicas que exercem atividade lucrativa dificilmente estariam
adquirindo um bem ou serviço como destinatários finais. De forma direta ou
indireta, esses bens ou serviços irão contribuir para o incremento de sua
atividade na busca do lucro; e isto as impede de se valerem do Código de Defesa
do Consumidor como se consumidores fossem. Quanto ao fornecedor pessoa física,
a ordem se inverte. A regra é ver a pessoa física como consumidor, e só por
exceção ele será fornecedor. Mais uma vez, a atividade com fins lucrativos
serve de elemento definidor. Os exemplos vistos em obras doutrinárias normalmente
se repetem, apontando o caso em que um indivíduo está na condição de consumidor
ao adquirir bens (ou serviços) para seu uso particular ou de sua família. E
depois, o mesmo indivíduo, ao exercer sua profissão (profissional liberal,
produtor rural, etc.), figura como fornecedor, na forma prescrita pelo Código
de Defesa do Consumidor.
No conceito de produto, não
acharemos maiores dificuldades. O Código é muito claro ao definir como produto
"qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial". E, como
serviço, "qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista." Pela
primeira vez, vemos a menção explícita aos serviços de natureza bancária. Logo,
pela simples leitura do § 2º do artigo 3º, já partimos da premissa de que as
atividades bancárias não foram excluídas da incidência do Código de Defesa do
Consumidor.
Resta-nos, no
entanto, a dúvida sobre que tipo de atividade e, sobretudo, que tipo de
contratos bancários são atingidos pelo Código. Não podemos esquecer os pontos
já definidos, sobre a natureza das relações de consumo. Fazendo uma aplicação
do princípio finalístico (que informa o conceito de consumidor) ao produto ou
serviço que vem definido pelo Código, podemos afirmar que o produto/serviço
intermediário também não se enquadra no sistema do Código de Defesa do
Consumidor.
Retirado de:
http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=124.
Acesso em: 29 mar. 05.