A
natureza jurídica do plano de saúde coletivo.
Sua repercussão em termos de abusividade da cláusula que
permite o reajuste por sinistralidade
Demócrito Reinaldo Filho
juiz de Direito em
Pernambuco, diretor do Instituto Brasileiro de Direito e Política da
Informática (IBDI)
Introdução
Discute-se
atualmente a validade da cláusula, inserida em contrato coletivo de prestação
de serviços de assistência à saúde, que permite a alteração da mensalidade na
hipótese de aumento da "sinistralidade". Grupos de defesa de
interesses de consumidores alegam que tal cláusula é intrinsecamente abusiva,
por permitir que a seguradora aumente unilateralmente o valor dos prêmios
mensais, em afronta ao art. 51, X, do CDC. Sustentam que a referida cláusula
também pode ser considerada abusiva à luz do inc. IV do art. 51, também do CDC,
já que consagra vantagem exagerada para a seguradora. Por sua vez, as
operadoras de planos de saúde apóiam-se em entendimento contrário, por não
enxergarem abusividade na dita cláusula. Acrescentam que nem sequer se
pode pretender a aplicação do CDC ao tipo contratual em tela, já que se traduz
num pacto entre empresas, onde o autor não utiliza os serviços na condição de
destinatário final, figurando como mero estipulador das condições
contratuais em favor de terceiros.
A
cláusula que gera a discordância prevê o recálculo do prêmio em função da sinistralidade,
isto é, toda vez que o índice de sinistros pagos atingir determinado
percentual, em função do prêmio cobrado em período imediatamente anterior (de
três meses), a seguradora está autorizada a fazer o cálculo de novo prêmio,
segundo fórmula prevista na mesma cláusula.
A
análise da natureza de tal cláusula nos obriga a um exame preliminar da
natureza do próprio contrato coletivo (plano) de saúde, até mesmo para definir
se a ele se aplicam (ou não) as normas do Código de Defesa do Consumidor (Lei
8.078/90). Com efeito, muitos sustentam que o contrato de plano de saúde
empresarial não é um contrato de adesão, uma vez que suas cláusulas são
discutidas e eleitas de forma equilibrada pelos contratantes, a operadora e a
empresa que contrata o plano, que escolhe livremente o tipo de plano, o preço,
os prazos de carência, os tipos de procedimentos cirúrgicos cobertos, o número
de beneficiários, entre outras condições, ou seja, típico contrato empresarial
onde não se enxerga a figura de uma parte hipossuficiente, em desvantagem
diante de outra mais forte e que tem a supremacia da relação contratual. A
despeito dessa orientação, iremos demonstrar que o contrato coletivo de plano
de saúde é modalidade de contrato de consumo e que, mais do que isso,
trata-se de verdadeiro "contrato cativo", onde os consumidores
(beneficiários) estão sujeitos a desequilíbrios idênticos à contratação
individual, devendo se lhe aplicar os mesmos princípios protetivos, com
destaque para o princípio da conservação dos contratos.
Natureza
jurídica do plano coletivo de assistência à saúde
Um
princípio geral em matéria de contratos é o de que as convenções não prejudicam
nem beneficiam as partes que nelas não intervêm. É o chamado princípio da
relatividade dos contratos, significando que não podem produzir efeitos
além das pessoas dos contratantes que se auto-obrigaram. Esse princípio,
contudo, não é absoluto, pois algumas espécies contratuais produzem efeitos
sobre o patrimônio jurídico de terceiros que não concordaram para a formação do
vínculo, do qual não podem escapar por força da lei ou da vontade das partes
que o constituíram. É o caso, por exemplo, da doação modal em favor de
terceiro, do contrato de seguro em favor de terceiro (beneficiário), da
constituição de renda quando há um terceiro beneficiário, da promessa de
fato de terceiro (previsto no art. 439, caput, do C.C.) ou ainda em
todos os casos genéricos das estipulações em favor de terceiro. Esses
tipos de contratos são muito diferentes dos demais atos negociais porque, em
todos eles, os efeitos vão atingir um estranho à celebração do negócio
jurídico, o qual, apesar de não participar inicialmente da avença, vai adquirir
a qualidade de sujeito de direito da relação contratual.
A
esse rol distinto de contratos pode-se juntar o plano ou seguro saúde
empresarial, modalidade contratual estabelecida entre duas pessoas, em que uma
(o empregador, sindicato ou entidade associativa) convenciona com outra (a
operadora ou administradora do plano) a prestação de serviços de assistência à
saúde de terceiros, mediante o pagamento de uma certa quantia mensal em
dinheiro pelos beneficiários ou de forma rateada com o empregador.
Em
verdade, a figura do plano de saúde, quer seja ele individual (ou
familiar) quer seja ele empresarial, pode ser distinguida da do seguro-saúde.
Na primeira espécie, o contrato é feito com qualquer empresa (privada),
cooperativa ou associação de médicos, que assume a responsabilidade da
prestação de serviços médico-hospitalares, diretamente ou através de uma rede
de operadores conveniados. A segunda é um típico contrato de seguro, firmado
com uma companhia seguradora, pelo qual, mediante a paga de um prêmio, o
segurador se obriga perante o segurado a preveni-lo dos riscos (financeiros) à
sua vida e integridade física, pagando-lhe uma indenização ou simplesmente
reembolsando os gastos que fizer com a manutenção e recuperação de sua saúde. A
doutrina, todavia, de há muito reclamava um tratamento jurídico unificado para
ambas as espécies, com a criação de órgãos reguladores e de fiscalização também
unificados. A Lei 9.656, de 03.06.98, que regulamentou os planos e
seguros-saúde privados de assistência à saúde, tratou-os como uma única
espécie, tanto que no seu art. 10 instituiu o "plano ou seguro-referência
de assistência à saúde" (1). Assim, o contrato de
"plano" ou seguro-saúde pode ser caracterizado por envolver a
transferência (onerosa e contratual) de riscos futuros à saúde do segurado
(consumidor) e seus dependentes, mediante a prestação de assistência
médico-hospitalar diretamente ou por meio de entidades "conveniadas",
ou pelo simples reembolso das despesas (2).
O
que realmente faz diferença (e gera problemas) é a forma de contratação desses
planos ou seguros-saúde, que se pode dar por meio da contratação individual,
que são aqueles oferecidos no mercado para a livre adesão de consumidores,
pessoas físicas, facultada ou não a inclusão de seus dependentes ou grupo
familiar, ou através de uma contratação coletiva, quando no contrato é
oferecida cobertura dos riscos à saúde de população delimitada e
vinculada a uma determinada pessoa jurídica - a empresa que contrata o plano
(que também pode prever a inclusão dos dependentes da comunidade de
beneficiários do contrato coletivo). A adesão dos beneficiários (consumidores)
em geral é automática na data da contratação do plano ou no ato da vinculação
como empregado, filiado ou associado da pessoa jurídica (empregador, sindicato
ou associação), se bem que em algumas modalidades de contratação coletiva, a
adesão é prevista apenas de forma espontânea e opcional dos funcionários,
associados ou sindicalizados (com ou sem a possibilidade de inclusão do grupo
familiar ou dependentes) (3).
Estamos
diante, pois, de um típico contrato de consumo - o contrato de prestação de
serviços de assistência médico-hospitalar vem sendo caracterizado, na doutrina
e jurisprudência, como contrato de consumo para fins de aplicação das normas de
proteção do CDC (4) -, mas em que os consumidores não intervêm na
formação do vínculo contratual. A contratação não é feita por eles (ou entidade
representativa deles), mas diretamente pela empresa empregadora com a operadora
de plano de assistência à saúde.
Como
é a própria empresa, sindicato ou associação que faz a negociação com a
operadora, sem interveniência direta dos beneficiários e verdadeiros sujeitos
de direito do "plano" ou seguro-empresarial, pode ocorrer
divergências entre eles quanto à execução do contrato. Muitas vezes, no momento
de discutir reajustes, de adaptar o plano para outra modalidade, de escolher
dentre as segmentações previstas em lei, os interesses da empresa empregadora e
dos seus empregados (consumidores) nem sempre vão ser coincidentes,
especialmente quando aquela concorre com o pagamento de parcela dos custos do
contrato. Daí surge a necessidade de se procurar definir a natureza jurídica
desse tipo contratual, para, em seguida, delinear com exatidão a extensão dos
direitos e deveres das partes. A importância desse estudo é motivada também em
razão da grande difusão que essa forma contratual (contrato coletivo de saúde)
assumiu nos dias atuais (5).
E
o melhor método para se perquirir a natureza jurídica de uma nova modalidade
contratual é compará-la com as formas típicas, já definidas em lei.
Percorrendo
esse caminho, fica fácil enxergar que o contrato que o empregador celebra com a
operadora ou administradora de plano saúde aproxima-se da categoria da estipulação
em favor de terceiro, como acordo de vontades que produz efeitos em relação
a terceiro, que não participa da formação do vínculo. O nosso Código Civil
admite a validade e eficácia da estipulação a favor de terceiro,
disciplinando-a nos arts. 436 a 438. Há, contudo, uma diferença
fundamental em relação a essa forma contratual. A estipulação em favor de
terceiro, disciplinada no Código Civil, consagra sempre e exclusivamente
uma vantagem para o não interveniente, enquanto que nos contratos de
planos/seguros de saúde coletivo a estipulação, a par de gerar uma vantagem - o
direito a usufruir os serviços de assistência médica de responsabilidade da
operadora - faz nascer também obrigações para os terceiros (segurados), que
consistem, em geral, no pagamento de parte dos custos de execução do contrato,
na forma de mensalidade ou prêmio como contraprestação pelos serviços
oferecidos pela operadora. No contrato de plano ou seguro saúde coletivo, o
segurado não é um mero favorecido, mas ao mesmo tempo um co-obrigado, pois tem
o dever de pagar o prêmio mensal estabelecido (ou parte dele), podendo
inclusive vir a ser executado em caso de inadimplemento, para que a operadora
possa ser ressarcida dos custos que suportou durante o prazo em que manteve os
seus serviços à disposição do segurado. Tanto a seguradora (operadora) como o
segurado (consumidor) têm vantagens proporcionais, que se equivalem; um,
percebendo em pecúnia o direito ao prêmio, e o outro, usufruindo-se dos
serviços médicos e hospitalares. Trata-se de modalidade de contrato oneroso,
pois envolve prestações e contraprestações, com cada um desses contraentes
visando a obter vantagem. Existe um perfeito equilíbrio de obrigações e de
interesses que se coadunam. É diferente, repita-se, da estipulação em favor
de terceiro, onde a vantagem para a pessoa alheia à convenção é sempre
considerável (ainda que não inteiramente gratuita).
Outro
ponto de distinção entre as formas contratuais em análise tem a ver com a
relação das partes que participam da formação do vínculo. Na estipulação em
favor de terceiro o estipulante pode exonerar o promitente de suas
obrigações, caso o terceiro (beneficiário) não reclame o direito de exigir a
execução do contrato (art. 437 do C.C). No contrato coletivo de plano de saúde
empresarial, a situação não é a mesma, pois o segurado tem o direito, em todas
as circunstâncias, de exigir o cumprimento das obrigações do contrato.
Uma
última dessemelhança poderia ser apontada, ligada a um requisito subjetivo. É
que na estipulação em favor de terceiro o estipulante atua em seu próprio
nome, enquanto que no contrato de saúde coletivo a avença é formalizada em
nome de terceiro (beneficiário), preponderando uma ação em nome alheio.
A
estrutura contratual típica em que mais se adequa o "plano privado
empresarial de assistência à saúde", pelo menos quanto ao objetivo, é
mesmo com o contrato de seguro, na medida em que ambos visam a eliminar riscos.
Mas não se pode dizer que a contratação coletiva empresarial de plano privado
de assistência à saúde reflita simplesmente um nítido contrato de seguro. É
certo que pode haver contrato de seguro em que a pessoa do segurado não
coincide com a do beneficiário, como é o caso do seguro de vida, em que a
indenização é recebida pelo parente (ou qualquer outra pessoa) indicado no
contrato. O plano empresarial de saúde também cobre o risco à vida do
segurado, podendo haver previsão de indenização para os seus familiares
(beneficiários). Só que, no contrato de seguro, quem sempre arca com o
pagamento do prêmio é a própria pessoa que contrata, e não o beneficiário,
enquanto que no plano privado empresarial de assistência à saúde quem contrata
é a empresa, mas quem paga a mensalidade (pelo menos parte dela, em alguns
casos) é o empregado (segurado e beneficiário).
Vê-se,
portanto, que o "plano coletivo empresarial de assistência à saúde"
não se enquadra em nenhuma das modalidades contratuais típicas, por revestir
características próprias. Pode-se dizer que seja um misto de estipulação em
favor de terceiro e contrato de seguro, que pode ser conceituado
como o negócio em que uma pessoa jurídica contrata com outra, em favor dos
empregados ou pessoas físicas de alguma forma vinculadas a uma delas, a
prestação continuada de serviços ou cobertura de custos de assistência à saúde,
mediante preço pago integral ou parcialmente pelos beneficiários.
A
relação contratual que se forma do acordo de vontades entre o empregador e a
operadora do plano com o intuito de criar um vínculo jurídico, tem a finalidade
de estabelecer o dever de prestar um benefício (assistência à saúde) a
terceiros, inicialmente estranhos ao contrato, mas que posteriormente, quando
manifestam sua concordância com o negócio entabulado pelas outras duas partes,
passam a ser credores concorrentes de uma delas (a operadora), e mesmo
eventualmente de ambas, quando acontece de o empregador assumir a obrigação de
arcar com parcela do prêmio pago à operadora (e torna-se inadimplente). Em
verdade, há uma relação contratual dupla, ligando o empregador (empresa) à
operadora e esta ao segurado (empregado). As relações entre empregado e a
operadora só aparecem na fase de execução do contrato, quando aquele passa a
ser credor, podendo exigir o cumprimento da prestação prometida, de acordo com
as condições e normas ajustadas anteriormente (e separadamente) pelo empregador
(em conjunto com a operadora).
A
terceira pessoa da relação, o segurado/beneficiário, não precisa sequer ter
aptidão para contratar, pois, por não intervir ou participar na formação do
vínculo, apenas limitando-se a aceitá-lo, pode ser inclusive um menor (como
ocorre, p.ex., no caso dos dependentes menores dos segurados) ou mesmo uma
pessoa indeterminada no momento da contratação (mas desde que determinável).
Podemos
anotar, depois de vistas as características principais do contrato em estudo,
as seguintes conseqüências jurídicas desse tipo de avença:
a)como
sujeito de direito dessa relação contratual, o empregado (segurado) vai poder
exigir o cumprimento das normas e condições pactuadas no contrato, direito que,
da mesma forma, fica assegurado ao próprio estipulante (o empregador). Na fase
de execução contratual, tanto o empregador, na condição de estipulante das
normas contratuais, bem como o segurado que se beneficia delas, podem exigir
seu cumprimento, quanto às obrigações da operadora voltadas à prestação dos
serviços de assistência à saúde;
b)o
empregador, em nenhuma hipótese, pode exonerar a operadora dos deveres
assumidos em relação aos terceiros segurados, ainda que estes não se reservem o
direito de reclamar-lhes a execução. O empregado-segurado quando por algum meio
manifesta sua aceitação, não necessita ressalvar o direito de reclamar a
execução contratual, direito esse que decorre da própria natureza do contrato e
de sua condição de sujeito de direito da relação jurídica negocial. Como a
prestação do serviço deverá ser realizada em benefício do segurado, este se
torna credor da operadora (seguradora), aperfeiçoando-se o ajuste no momento em
que o aceita. A operadora se obriga fundamentalmente perante o segurado, embora
não deixe de vincular-se também ao empregador. A exigibilidade da prestação
passa ao beneficiário, sem que aquele a perca.
c)nas
modalidades em que o empregador assume a responsabilidade pelo pagamento de
parte do prêmio mensal, se deixa de honrar com esse compromisso no prazo de
vigência inicial do contrato, o empregado (segurado) ou mesmo a seguradora têm
o direito de exigir o cumprimento forçado dessa obrigação.
d)durante
o prazo inicial de vigência do contrato, nem o empregador nem a operadora
(seguradora) podem revogá-lo, mas pode acontecer de o segurado voluntariamente
desligar-se do plano.
e)qualquer
alteração durante a vigência do contrato, como, p. ex., modificação dos
critérios de reajuste, mudança para outro tipo de plano dentre as
seguimentações previstas na Lei 9.656/98 ou troca de prazos de carência,
pressupõe a anuência dos consumidores (segurados), que podem se manifestar
individualmente ou por meio de entidade representativa, já que, com a adesão
deles e conseqüente início da execução do contrato, passam a ser sujeitos de
direito e co-contratantes.
f)quando
a empresa assume a "co-participação" no pagamento do plano, e
torna-se inadimplente, deixando de pagar a parcela (ou parcelas) do prêmio a
que está obrigada, a operadora assume a responsabilidade de disponibilizar
planos de saúde individuais para os segurados, com o mesmo padrão de
atendimento e cobertura, desde que estes complementem o preço, assumindo
integralmente os custos com o pagamento da mensalidade. Além disso, a empresa
inadimplente, se a inadimplência corresponder a uma (ou mais) parcela do prazo
inicial de vigência do contrato, pode ser forçada judicialmente, pela operadora
ou pelos segurados, a cumprir com a obrigação desfeita.
Em
conclusão, podemos afirmar que os direitos do segurado em contrato (plano)
coletivo de assistência à saúde são praticamente idênticos àqueles decorrentes
da contratação direta individual, resumindo-se no direito que ele tem de exigir
o cumprimento das normas e condições pactuadas. Em termos de regulamentação, o plano
coletivo de assistência à saúde encontra-se no mesmo plano das demais
relações contratuais de consumo, no que diz respeito à aplicação das normas de
proteção do consumidor, em especial o CDC. Trata-se de negócio jurídico em que
uma das partes assume a obrigação de prestar serviços em favor de pessoa
indicada pelo outro contratante (estipulante), mediante remuneração,
enquadrando-se perfeitamente nos conceitos legais de consumidor e fornecedor
(arts. 2o. e 3o. do CDC) - que definem a natureza da
relação contratual de consumo. O segurado (beneficiário) é consumidor, pois
utiliza os serviços na condição de destinatário final (art. 2o.),
enquanto que a operadora do plano se enquadra na definição de fornecedor, uma
vez que presta serviços (art. 3o.) de assistência à saúde (do
segurado), sendo esses serviços prestados mediante remuneração (par. 2o.
do art. 3o.). A forma da contratação, com a intermediação do
estipulante, no intuito de criar o vínculo jurídico que liga a operadora aos
segurados (consumidores), não descaracteriza a natureza consumerista do ajuste.
Aplicação
do princípio da conservação dos contratos de consumo ao plano coletivo de
assistência à saúde
Visto
que o contrato privado de assistência à saúde é contrato de consumo, quer seja
ele de contratação individual ou de contratação coletiva
(empresarial ou por adesão), e, como tal, regido pelas normas de proteção ao
consumidor, um dos efeitos jurídicos desse enquadramento tem a ver com a
"perpetuidade" das obrigações contratuais da operadora ou, para usar
outra expressão, com a conservação do vínculo contratual por tempo
indeterminado. Com efeito, uma vez expirado o prazo inicial de vigência de
contrato dessa natureza, as partes contratantes - a empresa empregadora e a operadora
do plano – não se liberam "ad nutum" do liame obrigacional, pois a
extinção do vínculo contratual depende do consentimento dos segurados (os
empregados, pessoas físicas).
O
vínculo jurídico que prende as partes não se esvanece com o simples atingimento
do termo final, do prazo inicial de vigência da relação contratual. Os efeitos
jurídicos em contrato dessa natureza expandem-se e perpetuam-se no tempo,
havendo uma continuidade, uma renovação automática das condições e normas
contratuais. Isso se deve ao princípio da conservação dos contratos de
consumo de longo prazo (ou, na terminologia cunhada por Cláudia Lima Marques,
"contratos cativos de consumo").
Como
característica principal do plano de assistência à saúde, em ambas as suas
modalidades (quer na forma do fornecimento direto de assistência médica quer na
forma de reembolso das despesas), destaca-se o fato de envolver prestações de
trato sucessivo. Trata-se de contrato de fazer de longa duração, que se
prolonga no tempo, razão porque a moderna doutrina contratual vem identificando
os contratos de seguro-saúde no contexto dos "contratos cativos de longa
duração" (6) (ou "contratos pós-modernos", como
preferem outros).
Essa
espécie de contrato caracteriza-se por criar uma "catividade" ou
dependência dos clientes desses serviços (consumidores). São contratos que
envolvem não uma obrigação de dar (para o fornecedor), mas de fazer;
normalmente são serviços privados ou mesmo públicos, autorizados pelo Estado ou
privatizados, mas sempre prestados de forma contínua, cuja execução se protrai
no tempo (7). Não são simples contratos de trato sucessivo, pois
além da continuidade na prestação assume destaque o dado da
"catividade". Baseiam-se mais numa relação de confiança, surgida do
convívio reiterado, gerando expectativas (para o consumidor) da manutenção do
equilíbrio econômico e da qualidade dos serviços. O consumidor mantém uma
relação de convivência e dependência com o fornecedor por longo tempo (às vezes
por anos a fio), movido pela busca de segurança e estabilidade, pois, mesmo
diante da possibilidade de mudanças externas na sociedade, tem a expectativa de
continuar a receber o objeto contratualmente previsto. Essa finalidade
perseguida pelo consumidor faz com que ele fique reduzido a uma posição de
cliente-"cativo" do fornecedor. Após anos de convivência, pagando
regularmente sua mensalidade, e cumprindo outros requisitos contratuais, não
mais interessa a ele desvencilhar-se do contrato, mas sim de que suas expectativas
quanto à qualidade do serviço oferecido, bem como da relação dos custos, sejam
mantidas. Também contribui para seu interesse na continuação da relação
contratual, a circunstância de que esses serviços (de longa duração) geralmente
são oferecidos por um só fornecedor ou por um grupo reduzido de fornecedores,
únicos que possuem o poder econômico, o know how ou a autorização
estatal que lhes permite colocá-lo (o serviço) no mercado. Nessa condição, a
única opção conveniente para o consumidor passa a ser a manutenção da relação
contratual.
A
peculiaridade desses contratos (de prestação de serviços de longa duração),
portanto, fez com que aparecesse a necessidade de um avanço ainda maior na
teoria contratual, de forma a proteger os consumidores da relação de
dependência que adquirem com o fornecedor. A sociedade de consumo no estágio
atual, onde os serviços assumem indiscutível importância, pois passam a ser
imprescindíveis para a vida e conforto do homem, fomenta o aparecimento desse
tipo contratual, socialmente relevante e merecedor de uma nova disciplina, de
modo a fornecer respostas eqüitativas à nova realidade.
Assim,
assumindo o princípio da conservação dos contratos especial destaque
nessa modalidade contratual, cuida-se de evitar que o fornecedor libere-se do
vínculo contratual, sempre que este não lhe seja mais favorável ou interessante
(rescindindo, denunciando, resolvendo o vínculo, cancelando o plano etc.).
Com
esse exato propósito é que sobreveio a regra do artigo 22, X (parte final), do
Decreto No. 2.181, de 20 de março de 1997, que, complementando a lista de
cláusulas abusivas do art. 51 do CDC, prevê a aplicação de multa ao fornecedor
que fizer inserir cláusula que lhe permita, nos contratos de longa duração ou trato
sucessivo (inclusive nos que envolvem operação securitária), "o
cancelamento sem justa causa ou motivação, mesmo que dada ao consumidor a mesma
opção".
Por
força dessa norma, passando o contrato de plano ou seguro-saúde a vigorar por
prazo indeterminado, é nula (por abusiva) a cláusula que confere o direito de
rescisão unilateral e sem direito à indenização à outra parte, através de
simples pré-aviso pelo interessado. Tal impedimento ao desligamento do vínculo
só cede diante de um justo motivo, devidamente comprovado e que impeça a
continuidade das relações obrigacionais em plena comutatividade, como, aliás,
está a indicar a própria redação do dispositivo normativo mencionado (art. 22,
X, do Dec. 2.181/97).
É
importante destacar que essa regra (art. 22, X, do Dec. 2.181/97) aplica-se
também aos contratos coletivos de plano de saúde, que, por envolver prestações
de trato sucessivo, protraindo-se no tempo, gera a "catividade" ou
dependência do segurado empregado. Ao filiar-se a plano dessa natureza, o
empregado envolve-se numa relação de confiança com a operadora (e também com a
empresa empregadora, no que tange à expectativa de seu cumprimento quanto ao
pagamento de sua cota), tornando-se parte "cativa" dessa relação, que
não pode sofrer solução de continuidade, sob pena de levá-lo (o segurado) à uma
situação de insegurança e instabilidade.
Tanto
é verdade que os contratos coletivos de plano de saúde merecem o mesmo
tratamento, quanto à indeterminação do prazo de vigência, que a Lei 9.656/98,
que regulamentou a prestação dos serviços de saúde suplementar, não distinguiu
entre contratos individuais e coletivos, juntando-os em um único conceito
("plano privado de assistência à saúde"), exposto no inc. I do art. 1º
(já na redação da MPV nº 2.177-44, de 24.8.2001). Além do mais,
seu art. 13 explicitou o princípio da conservação dos contratos de
planos e seguros privados de assistência à saúde, estabelecendo que "têm
renovação automática a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, não
cabendo a cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação".
A MPV n. nº 2.177-44, que deu nova redação ao mencionado art. 13 não
alterou essa circunstância, mantendo a mesma unificação de tratamento jurídico
quanto a ambas modalidades de planos, quer seja coletivo quer seja individual.
Tão-somente, no seu parágrafo 1º, estabeleceu que os contratos
individuais devem ter prazo (inicial) mínimo de vigência de um ano (8).
Nesse
sentido, todo e qualquer plano coletivo de assistência à saúde deve ser
contratado sem determinação de prazo. Se acontecer, no entanto, de ser
estabelecido prazo determinado de vigência, a prorrogação do contrato é
automática ao final desse prazo, mantendo-se as mesmas normas e condições do
instrumento contratual prorrogado. Se a empresa empregadora contratante, ao
final desse prazo, não mais desejar permanecer com a obrigação da
"co-participação", que é a parte efetivamente paga por ela como
contraprestação aos serviços de saúde prestados aos seus empregados, pode
livrar-se do vínculo a partir de então (do término do prazo inicial de
vigência), mas a operadora permanece vinculada, sendo obrigada a oferecer,
nesse caso, planos individuais com a mesma amplitude de cobertura, assumindo o
empregado o percentual antes suportado pela empresa empregadora.
A
abusividade da cláusula de reajustamento pelo critério da
"sinistralidade"
Um
outro efeito jurídico do enquadramento do plano coletivo de saúde na categoria
de contrato de consumo tem a ver com a limitação dos reajustes, imposta no
Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). A operadora não pode reajustar
unilateralmente os preços (as mensalidades) pagos pelos segurados, em razão da
proibição contida no inc. X do art. 51 desse estatuto.
Em
matéria de plano de assistência à saúde, como se sabe, são admissíveis três
formas de reajuste, a saber: a) em razão da variação dos custos; b) em
função da mudança de faixa etária; e c) mediante revisão técnica.
No contrato (plano ou seguro) de assistência à saúde, como em qualquer outro,
pode ser convencionado (ou posto em regulamento estatal) o reajustamento dos
valores com base em índice adotado oficialmente como padrão de correção
monetária, de forma a permitir acompanhar a variação dos custos operacionais.
Além do reajuste que objetiva evitar a defasagem dos preços em função da
inflação (variação dos custos operacionais), também é admissível que se
prevejam as situações e momentos determinados no tempo em que podem ser
modificados os valores inicialmente previstos, para atender à peculiaridade da
atividade securitária, que se fundamenta na ciência atuarial, onde os custos
são dimensionados em função das condições de riscos do bem segurado.
Especificamente no contrato de plano de saúde, a idade do segurado (e dos seus
dependentes, se for o caso) é o fator mais determinante quando se cuida da
assunção, pela seguradora, dos riscos futuros à sua saúde (do segurado), uma
vez que é estatística e cientificamente comprovada a maior probabilidade de uma
pessoa de idade avançada ser mais suscetível às doenças em geral, necessitando,
então, utilizar-se dos serviços de assistência médico-hospitalar com mais
freqüência. Assim, não se afigura descabida a previsão de modificação dos
valores (mensalidades) quando da passagem do usuário para faixa etária mais
elevada (9). As regras para aplicação de reajuste por mudança de
faixa etária estão previstas na própria Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/98),
bem como no Estatuto do Idoso (Lei 10.741/03). Como terceira categoria de
reajuste dos planos de saúde, ainda temos a chamada "revisão
técnica", que vem a ser um procedimento excepcional para eliminar ou
corrigir situações de desequilíbrio das carteiras mantidas pelas operadoras.
Quando o desequilíbrio na carteira de planos de uma determinada operadora
atinge patamar tal que possa comprometer sua liquidez e solvência, ela pode
recorrer a esse procedimento da "revisão técnica" e, por meio dele,
eventualmente ser autorizada a proceder ao "reposicionamento dos valores
das contraprestações pecuniárias" pagas pelos segurados (10).
Acontece
que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não controla os reajustes da
mesma forma para todo e qualquer tipo de plano. O controle difere de acordo com
a modalidade do contrato de prestação de serviços de saúde, ou seja, depende de
a contratação se dar de maneira coletiva ou através de contrato individual. A
política da ANS é de dar uma maior proteção aos planos contratados por pessoas
físicas (planos individuais e familiares), reservando para os coletivos apenas
uma atividade de "monitoração". A justificativa é de que, nos
contratos firmados com pessoas jurídicas (planos coletivos e empresariais), são
realizadas negociações diretas entre os contratantes. "Nestas negociações,
os contratantes têm importante poder de barganha porque a Lei dos Planos de
Saúde garante aos usuários destes planos o direito de não terem de cumprir
carência antes de poderem receber atendimento à saúde. Assim, o contratante
pessoa jurídica pode trocar de operadora sem prejudicar ao grupo de pessoas que
representa, caso não concorde com o índice de reajuste pleiteado pela
operadora", conforme consta da justificativa da própria ANS (11).
Em suma, em razão de enxergar acentuado poder de barganha nas empresas que
contratam planos de saúde para seus empregados ou associados – o que, por via
reflexa, implicaria em conferir a eles (segurados) uma proteção satisfatória -,
a ANS não regulou a forma como se pode implementar alguns tipos de reajuste.
Por exemplo, em relação ao reajuste em função da variação dos custos, a
ANS fixa anualmente um índice máximo de aumento das mensalidades que deve ser
observado pelas operadoras nos planos individuais. Não faz o mesmo quanto aos
planos coletivos; apenas "monitora" os reajustes praticados, exigindo
que as operadoras informem os índices adotados. Também no que diz respeito ao
reajuste por meio da revisão técnica, a resolução normativa que a ANS
baixou sobre o assunto não engloba os planos coletivos (12).
Os
contratos coletivos ficam, portanto, livres para incluir regras próprias para
esses tipos de reajuste. Para corrigir desequilíbrios decorrentes de variação
de custos assistenciais ou da freqüência da utilização, as operadoras criaram
então mecanismos de reajustes através de cláusulas contratuais que permitem a
alteração da mensalidade na hipótese de aumento da "sinistralidade".
A previsão de recálculo do prêmio em função da "sinistralidade" funciona
assim: toda vez que o índice de sinistros pagos atinge determinado percentual,
em função do prêmio cobrado em período imediatamente anterior (geralmente de
três meses), a seguradora fica autorizada a fazer o cálculo de novo prêmio,
segundo fórmula prevista na mesma cláusula. A questão é saber se cláusula de
tal natureza pode ser livremente inserida nesses tipos de contratos
(coletivos).
Parece-nos
que não. A validade desse tipo de cláusula pode ser contestada diante de normas
superiores de proteção ao consumidor. Como já expusemos acima, o contrato
(plano) de prestação de serviços de saúde, ainda que contratado de forma
coletiva, por meio da intermediação de empresa que participa diretamente da
negociação em favor de seus empregados ou associados, inclui-se na categoria
dos contratos de consumo e, assim, está submetido ao regramento maior do Código
de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Ainda que a agência reguladora que tem
o papel de fiscalizar a atuação das operadoras de planos e seguros-saúde – a
ANS – não tenha regulado estritamente a forma de reajuste desses contratos,
eles não podem ser negociados ao arrepio da legislação e dos princípios de
proteção do consumidor.
Nesse
sentido, a cláusula que permite o reajuste do prêmio em razão da sinistralidade
viola a disposição contida no inc. X do art. 51 do CDC, que impede o fornecedor
de reajustar unilateralmente os preços (as mensalidades) dos seus serviços. Com
efeito, ao submeter o reajuste a fórmula de variação que não permite, ao
segurado (consumidor), saber de antemão os seus ônus contratuais, a cláusula é
atingida pela mácula da abusividade. É imprescindível que qualquer aumento
contratualmente previsto seja veiculado através de fórmula claramente definida,
de sorte a fornecer antecipadamente ao contratante que suporta a majoração dos
valores uma perfeita noção dos ônus que lhe serão carreados em cada etapa
contratual. Limitando-se simplesmente a remeter a fórmula, cujo resultado
depende de dados elaborados e manipulados unilateralmente pela operadora, sem
prévia definição do percentual do aumento, indiretamente entrega-se ao
fornecedor (segurador) o poder de variação do preço contratual, sendo nula de
pleno direito tal estipulação, nos termos do art. 51, X, do CDC.
Sobre
a cláusula que permite uma revisão unilateral dos preços contratados, em caso
de aumento nos preços dos insumos e serviços dos setores relacionados com os
serviços objeto de contrato de prestação de serviços de saúde, já tinha assim
me manifestado em sede doutrinária:
"A revisão do contrato,
quando circunstâncias supervenientes altera a situação inicial de equilíbrio, é
direito de qualquer uma das partes, daí porque pode o fornecedor (segurador)
perseguir esse direito em juízo, quando ocorre uma excessiva onerosidade em
função da variação dos custos iniciais. Havendo elevado aumento nos preços dos
produtos e serviços médico-hospitalares, em decorrência de circunstâncias
imprevisíveis que provocam alterações profundas em alguns setores da economia
relacionados com a prestação de assistência à saúde, onerando em demasia as
obrigações contratuais inicialmente assumidas pelo fornecedor, pode este
perfeitamente invocar a cláusula rebus sic stantibus e pedir a revisão
judicial do contrato.
O que não pode, no entanto,
é prever potencialmente para si o direito de alteração contratual de forma
unilateral, na hipótese de variação dos elementos que influenciam os custos de
manutenção da prestação dos serviços assumidos. Essa revisão contratual só
pode ser feita em juízo, onde o fornecedor tem de comprovar a quantidade do
aumento, para proporcionar ao julgador proceder a uma justa e proporcional
majoração das mensalidades. Caso contrário, fica o fornecedor com o poder de
apreciar unilateralmente a variação dos custos e decidir, a seu talante, o
montante da majoração a ser imprimida ao contrato.
É de fundamental importância
e de acentuada conotação sócio-política a aceitação da impossibilidade da
revisão unilateral dos valores contratuais, de maneira a se evitar sobretudo
uma prática comercial irregular que parece dominar o mercado de seguros. Como forma de captação de
clientes, as empresas que exploram os serviços de assistência médico-hospitalar
oferecem inicialmente baixos valores para os prêmios dos seguros, mas,
gradativamente, aumentam esses valores, justamente amparadas no mecanismo
contratual que lhes permite, através do superdimensionamento dos custos dos
serviços, praticar a majoração dos preços. Essa prática, manifestamente abusiva
e ilegal, deve ser combatida e, mais do que isso, devem ser responsabilizadas
as empresas que assim se comportam, através da aplicação de pesadas multas. Alguns
dos contratos de seguro-saúde oferecidos no mercado conformam-se em verdadeiras
armadilhas para o consumidor; além da baixa qualidade dos serviços que
efetivamente proporcionam, sujeitam o segurado, quando já cativo e dependente,
à vontade suprema do segurador, sendo-lhe fácil alterar a equação-financeira
inicial para aumentar os seus lucros" (13).
Ainda
outro argumento pode ser levantado contra a cláusula que prevê aumento em razão
da "sinistralidade". Ela também pode ser considerada abusiva à luz do
inc. IV do art. 51, igualmente do CDC, já que consagra vantagem exagerada
para a seguradora. De fato, ao permitir que o preço do contrato possa ser
reajustado sempre que houver um aumento na utilização dos serviços, a
cláusula elimina a característica aleatória do contrato de seguro (plano) de
saúde. Como se sabe, através do contrato de seguro o segurador assume a
obrigação de garantir a outra parte (o segurado) contra os prejuízos
resultantes de riscos futuros, previstos no instrumento contratual mas de
acontecimento incerto. É esse evento futuro e incerto que o contrato de seguro
garante que mostra sua característica aleatória. O segurado paga o prêmio e o
segurador o recebe, ambos sem saber se o evento ocorrerá ou não. Se o segurador
adquire o direito de se precaver, mediante aumento automático do prêmio, contra
a ocorrência do evento futuro, desaparece a aleatoriedade do contrato. É o que
acontece, na prática, com a adoção da cláusula de reajuste por
"sinistralidade". Precavendo-se da eventualidade de ter que arcar com
custos acima de um certo patamar, a operadora elimina a aleatoriedade do
contrato em relação à sua pessoa, transferindo ônus que, em princípio seria
seu, para a outra parte (o segurado). Todos os riscos, que são próprios da
atividade securitária, são transferidos para a outra parte, o segurado. Como se
vê, a par de criar vantagem exagerada para o fornecedor (operadora), por
manter os custos de operação em patamar que lhe convenha (eliminada a
aleatoriedade própria do contrato de seguro), a cláusula de reajuste baseada na
"sinistralidade" também impõe à outra parte (o conjunto de
beneficiários do plano) uma onerosidade excessiva, na medida em que a sujeita a
aumentos aleatórios, desfigurando o objeto do contrato de seguro. Considerando
a natureza e conteúdo do contrato de seguro, é imperativo reconhecer a patente
abusividade da cláusula de reajuste em função da "sinistralidade".
Isso
não significa concluir que os contratos de plano de saúde coletivo não possam
conter mecanismos de reajustes periódicos. Como qualquer outro contrato de
consumo, pode conter cláusula de reajuste, mas desde que o faça de maneira
clara, permitindo aos demais contraentes uma perfeita noção dos percentuais de
aumento que lhe serão impostos ao longo da sua execução. Sem essa completa e
antecipada definição dos deveres e ônus contratuais assumidos, o segurado
(consumidor) é colocado em situação de completa submissão diante do fornecedor
(operadora do plano).
Não
fica descartada, ainda, a possibilidade de ser feita uma revisão judicial do
contrato (plano de saúde coletivo). Quando circunstâncias supervenientes
alteram a situação inicial de equilíbrio, surge como direito de qualquer uma
das partes, daí porque pode o fornecedor (segurador) perseguir esse direito em
juízo, quando ocorre uma excessiva onerosidade em função da variação dos custos
iniciais. Havendo elevado aumento nos preços dos produtos e serviços
médico-hospitalares, em decorrência de circunstâncias imprevisíveis que
provocam alterações profundas em alguns setores da economia relacionados com a
prestação de assistência à saúde, onerando em demasia as obrigações contratuais
inicialmente assumidas pelo fornecedor, pode a operadora perfeitamente invocar
a cláusula rebus sic stantibus e pedir a revisão judicial do contrato
(provando essas alterações).
Essa
via da "judicialização do procedimento" de reajuste, no entanto, não
é a que oferece melhor solução prática. Os juízes teriam imensas dificuldades
para avaliar a justeza e a adequada proporção dos reajustes em cada um dos
contratos que fossem levados ao seu conhecimento. Sem o aparato técnico e os
recursos hoje existentes na agência reguladora específica para o setor de saúde
suplementar (a ANS), o Judiciário se mostraria ineficiente, isso sem contar com
o agravamento dos problemas que sua reconhecida morosidade provocaria.
O
ideal é que a ANS assuma uma política mais extensa e adequada. A atual política
que exerce, no caso dos reajustes dos planos coletivos, limitando-se a um
trabalho de "monitoramento", data vênia deixa muito a desejar. O
contrato de plano ou seguro-saúde, seja ele contratado coletivamente ou não,
tem forte conotação social, devendo a regulamentação estatal nesse campo ser
exercida de maneira mais presente, especialmente no que tange ao aspecto dos
reajustes. A política do simples "monitoramento" revela-se, senão uma
clara omissão, uma espécie de intencional opção política em favor do setor
economicamente mais forte (o conjunto de operadoras e seguradoras de planos de
saúde). É mister que a ANS exercite um poder maior de ação e de controle dos
preços dos planos coletivos.
Não
se diga que a ANS nessa matéria se prende à execução da lei. O comportamento da
ANS está mais para uma opção política do que propriamente de cumprimento de uma
diretriz legal. Não se nega que, em alguns aspectos, o legislador atribuiu um
tratamento claramente diferenciado entre as categorias de planos de saúde
(14). Mas no que tange à política diferenciada de controle de reajustes,
onde a ANS fixa o teto máximo de reajuste anual do plano de saúde contratado
por pessoas físicas (contrato individual ou familiar) e reserva para o contrato
coletivo apenas uma tarefa de "monitoramento", cuida-se
verdadeiramente de opção política, pois nada há na lei que imponha ou
justifique esse comportamento discriminatório. Observe-se, por exemplo, a
questão do reajuste por revisão técnica. Inicialmente, através da
Resolução RDC n. 27, de 26 de junho de 2000, a regulamentação do procedimento
para esse tipo específico de reajuste abrangia, além dos contratados individualmente,
os planos coletivos que não fossem "financiados total ou parcialmente pela
pessoa jurídica empregadora". Posteriormente, uma outra resolução (a
Resolução Normativa n. 19, de 11 de dezembro de 2002) limitou a previsão
regulamentar apenas "aos planos individuais ou familiares e àqueles
operados por entidades de autogestão não patrocinada cujo financiamento se dê
exclusivamente por recursos de seus beneficiários" (art. 2o.).
Como se vê, a prática de controle de reajustes em planos de saúde é matéria afeta
exclusivamente ao poder da agência regulamentar do setor de saúde suplementar,
que tem deixado transparecer sua opção política de deixar os contratos
coletivos fora do alcance do seu poder regulatório.
Deixar essa categoria de plano de saúde fora dos limites dos reajustes fixados anualmente (e mesmo dos procedimentos de revisão técnica), como se disse, não parece ser a melhor política. Isso tem gerado insegurança e conflitos que terminam no Judiciário. Os planos contratados de forma coletiva representam hoje 80% do mercado nacional de planos de saúde (15). As peculiaridades da contração não justificam o tratamento desigual entre os planos, no que se refere ao controle de reajustes, sobretudo no que tange àqueles que são contratados coletivamente (com a intermediação da empresa empregadora) mas são financiados exclusivamente pelos consumidores (segurados). Quer seja participante de um plano coletivo ou não, o segurado sempre apresenta vulnerabilidade técnica e inferioridade econômica diante da operadora.
Notas
1
Atualmente, na redação dada a esse artigo pela MPV n. 2.177-44, de 24.8.2001,
só é feita referência a "plano-referência de assistência à saúde",
englobando as duas espécies e tratando-as como única realidade.
2
A MP 1.976, que alterou dispositivos da Lei 9.656/98, inclusive passou a
definir os planos e os seguros-saúde como uma categoria contratual única,
alterando o art. 1º da referida lei para denominá-los simplesmente
de "plano privado de assistência à saúde", definindo-o como a
"prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a
preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de
garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de
acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente
escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada,
visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou
parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso e
pagamento direto ao prestador", "por conta e ordem do
consumidor" (esta parte final foi resultado da MPV n. 2.177-44, de
24.8.2001) (art. 1o., I).
3
Para fins de classificação de planos ou seguros de assistência à saúde
comercializados por operadoras, a Resolução CONSU n. 14, publicada no DO n.
211, de 04.11.98, segmentou-os em: a) de contratação individual ou familiar;
b) de contratação coletiva empresarial; e c) de contratação coletiva
por adesão (art. 1º). A primeira espécie, plano de saúde de contratação
individual, carateriza-se como sendo o plano ou seguro de assistência à
saúde "oferecido no mercado para a livre adesão de consumidores, pessoas
físicas, com ou sem grupo familiar" (art. 2º da Res.). Ainda
dentro da modalidade de plano individual, situa-se o plano familiar, que
se caracteriza "quando facultada ao contratante, pessoa física, a inclusão
de seus dependentes ou grupo familiar" (art. 2º, par. únic.). A
categoria de contratação coletiva empresarial abrange os planos de saúde
"que oferecem cobertura da atenção prestada à população delimitada e
vinculada a pessoa jurídica" (art. 3º). A terceira e última
modalidade de plano de saúde, o de contratação coletiva por adesão, é
aquele "que embora oferecido por pessoa jurídica para massa delimitada de
beneficiários, tem adesão apenas espontânea e opcional de funcionários,
associados ou sindicalizados" (art. 4º).
4
A circunstância de os contratos privados de assistência à saúde gozarem de uma
regulamentação específica, na Lei 9.656, de 03 de junho de 1998, bem como
através das resoluções da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, não
afasta a conclusão de que fazem parte efetivamente da categoria dos contratos
de consumo. O Código de Defesa do Consumidor (Lei 9.078/90) permanece como uma
lei básica, de caráter geral. É o mesmo fenômeno que acontece em relação a
outras subespécies de contratos de consumo, a exemplo dos contratos bancários,
de seguro e os que regulam as relações com os concessionários de serviços
públicos. Não importa que cada um tenha uma regulamentação específica; o CDC
continua como a lei de caráter geral aplicável a todos eles.
5
Segundo reportagem publicada no Diário de Pernambuco, do dia 30.07.00, no Caderno
de Economia, página B8, realizada pela jornalista Rosa Falcão, sob o título
"Plano de saúde perde usuário", o segmento do plano de saúde
empresarial é o que mais tem crescido, representando, hoje, 80% de todo o
mercado nacional de saúde privada, sendo o restante (de apenas 20%) preenchido
pelos planos individuais ou familiares. Esse fenômeno tem ocorrido não somente
em função da "co-participação" da empresa empregadora no pagamento de
parcela das mensalidades, mas porque a contratação coletiva tem se mostrado
mais proveitosa em certos casos, pois o poder econômico e aglutinador do
empregador termina por favorecer os beneficiários diretos - os empregados -,
que, de outra forma, teriam que aderir às condições de planos individuais ou
familiares oferecidos de forma padronizada pela mesma ou por outra operadora.
6
Expressão utilizada por Cláudia Lima Marques, in Contratos no Código de
Defesa do Consumidor, RT, 2a ed., p. 57.
7
Ao lado dos seguros e planos de saúde, a doutrina identifica como dessa espécie
os contratos de fornecimento de água, luz e telefone, os contratos de
previdência privada, os contratos de uso de cartão de crédito, os seguros em
geral, os serviços de tv a cabo, as relações banco-cliente, dentre outros.
8 É a seguinte a nova redação do Art. 13, dada pela MPV 2.177-44:
"Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o
do art. 1o desta Lei têm renovação automática a partir do
vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a cobrança de taxas ou
qualquer outro valor no ato da renovação.
Parágrafo
único. Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente,
terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas:
(...)
9
É imprescindível, no entanto, que o aumento contratualmente previsto, nessas
hipóteses, o seja em percentuais ou fórmulas claramente definidos, de sorte a
fornecer antecipadamente ao contratante (consumidor) que suporta a majoração
dos valores uma perfeita noção dos ônus que lhe serão carreados em cada etapa
contratual. É isso, aliás, que está expresso na Lei dos Planos de Saúde (Lei
9.656/98), no seu art. 15, assim escrito: "A variação das contraprestações
pecuniárias estabelecidas nos contratos de produtos de que tratam o inciso I e
o § 1o do art. 1o desta Lei, em razão da
idade do consumidor, somente poderá ocorrer caso estejam previstas no contrato
inicial as faixas etárias e os percentuais de reajustes incidentes em cada uma
delas, conforme normas expedidas pela ANS, ressalvado o disposto no art. 35-E.
Parágrafo único. É vedada a variação a que alude o caput para
consumidores com mais de sessenta anos de idade, que participarem dos produtos
de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o,
ou sucessores, há mais de dez anos" (Redação dada pela MPV nº
2.177-44, de 24.8.2001).
10
Ver art. 2o. da Resolução Normativa n. 19, de 11 de dezembro de
2002.
11
Essa é a justificativa para a política da ANS que está em seu próprio site na
Internet – www.ans.gov.br.
12
O art. 2o. da Resolução Normativa n. 19, de 11 de dezembro de 2002,
que regulamenta o procedimento de reajuste por meio da "revisão
técnica", estabelece que essa norma aplica-se somente "aos planos
individuais ou familiares e àqueles operados por entidades de autogestão não
patrocinada cujo financiamento se dê exclusivamente por recursos de seus
beneficiários". Todavia, a Resolução RDC n. 27, de 26 de junho de 2000,
que foi revogada pela RN n. 19, abrangia os planos coletivos que não fossem
"financiados total ou parcialmente pela pessoa jurídica empregadora".
13
"O Seguro-saúde como ‘contrato cativo de longa duração: aspectos
referentes ao reajustes das mensalidades e ao direito de rescisão", artigo
publicado no site INFOJUS (www.infojus.com.br),
em 28.06.99.
14
Como acontece em relação à determinação de prazo mínimo de vigência de 01 ano
para os planos contratados individualmente, estabelecida no par. únic. do art.
13 da Lei 9.656/98, que impede ainda, em relação a essa categoria de planos e
durante esse prazo inicial, que sejam exigidas recontagem de carências e que
haja suspensão unilateral do contrato (incisos I a III).
15
Segundo estatísticas fornecidas no site da ANS.
Retirado
em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5424>.
Acesso em: 22 mar. 2005.