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Responsabilidade
civil das indústrias fumígenas sob a ótica do Código de Defesa do Consumidor
Lúcio Delfino
Resumo: O presente artigo tem por
objetivo demonstrar, sob uma visão focada no Código de Defesa do Consumidor, a
possibilidade jurídica de se responsabilizar civilmente as indústrias do fumo
pelos danos causados pelo consumo de seus produtos. Para tanto, parte-se de uma
análise crítica de algumas posições jurisprudenciais que vêm prevalecendo no
País acerca do tema.
Palavras-chave: Indústrias fumígenas – Consumidor
– Cigarro – Tabagismo – Vícios do produto – Publicidades ilícitas – Licitude –
Livre arbítrio – Informação.
SUMÁRIO: 1. INTRÓITO. 2. A LICITUDE DA
ATIVIDADE DAS INDÚSTRIAS DO FUMO COMO ÓBICE À SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL. 3. O
VÍCIO DE CONCEPÇÃO DO CIGARRO. 4. O VÍCIO DE INFORMAÇÃO, A LIVRE ADESÃO DO
CONSUMIDOR AO CONSUMO DE CIGARROS E SUA AUTODETERMINAÇÃO PARA ABDICAR-SE DO
VÍCIO. 5. O SUPOSTO CONHECIMENTO DO CONSUMIDOR QUANTO AOS RISCOS PROVENIENTES
DO CONSUMO DO CIGARRO. 6. CONCLUSÃO. 7. BIBLIOGRAFIA.
1. INTRÓITO
Recebi,
com alegria, o convite que me foi formulado pelo Dr. Ademir Piccolli, diligente
organizador deste grandioso evento, para proferir algumas palavras sobre o tema
"Responsabilidade civil das fabricantes de cigarros".
Embora
contagiado por grande satisfação, não posso negar que a preocupação, outrossim,
atingiu-me profundamente. Isto porque, o tema ao qual me proponho hoje a expor
é, ainda, novel no Direito brasileiro e, extremamente, polêmico. E a polêmica,
como se sabe, nem sempre se apresenta como terreno sereno, tranqüilo ao
expositor, porquanto exposto que fica ao público, sagaz por informações
inovadoras e convincentes, arriscando-se, muitas vezes, a proferir dislates ou
a transmitir mensagens pouco satisfatórias à inteligência dos ouvintes.
Mas
arrisco-me com contento. Longe de articular um discurso antitabagista – que de
modo algum cabe nesta ocasião –, irei ater-me a algumas questões estritamente
técnicas atinentes ao tema, de forma tal a demonstrar a possibilidade jurídica
de se responsabilizar civilmente as indústrias de cigarros pelos danos advindos
do consumo do tabaco e, com isso, quiçá, trazer alguma contribuição para o meio
jurídico.
Pois
bem. Como o tempo é limitado, importante, para situar os senhores no contexto
da minha exposição, perpetrar um prelúdio dos tópicos a serem, em seguida,
abordados. Destarte, limitar-me-ei à análise de três únicas posições
jurisprudenciais que vêm predominando no País a respeito da temática agora
abordada – com as quais não concordo, adianto-me – para, através deste
artifício, elucidar os motivos pelos quais acredito serem as indústrias do
tabaco responsáveis pelos danos que seus produtos causam aos consumidores que
deles fazem uso – ou a eles estão expostos.
Os
pontos a serem criticados são:
a)
a licitude da atividade das indústrias de fumo (produção e comercialização de
produtos fumígenos) como óbice à sua responsabilização civil;
b)
a livre adesão do consumidor ao consumo de cigarros e sua autodeterminação para
abdicar-se do vício.
c)
o suposto conhecimento do consumidor quanto aos riscos provenientes do consumo
de cigarros.
2. A LICITUDE DA ATIVIDADE DAS
INDÚSTRIAS DO FUMO COMO ÓBICE À SUA RESPONSABILIZAÇÃO CIVIL
Sem
delongas, passemos à análise do primeiro tema, qual seja, a licitude da
atividade da indústria de fumo (produção e comercialização de produtos
fumígenos) como óbice à sua responsabilização civil. Noutras palavras, e
transformando a assertiva numa indagação: a legitimidade da atividade exercida
pelas indústrias do tabaco realmente constitui empecilho à responsabilização
civil dessas poderosas empresas?
A
jurisprudência, em sua maioria, vem adotando o entendimento de que sendo lícita
a atividade das indústrias fumígenas não há se falar em indenização, haja vista
que o dano que traduz a obrigação de reparar deve originar-se de um ato
ilícito. (1)
Vejam,
nesse sentido, um julgado da lavra do Tribunal de Alçada de Minas Gerais
(Apelação Cível nº 360.841-5), decidido em 29 de maio de 2002. A Relatora, em
seu substancioso voto, decidira na ocasião que "(...) é importante
ressaltar que a atividade da apelada é lícita, sendo que as restrições à
publicidade dos cigarros, têm sido observadas nos termos regulamentados pelo
Ministério da Saúde." Comungando com o voto da ilustre
Relatora, o Juiz revisor apôs seu entendimento: "(...) a
responsabilidade dos fabricantes de cigarros em razão dos malefícios advindos
com o consumo do produto, não pode por si só gerar a obrigação indenizatória,
eis que o dano ensejador da indenização deve ter origem em um ato ilícito, o
que não é o caso sub judice, visto que a atividade de fabrico de cigarros,
trata-se de atividade lícita (...)". Por fim, o Juiz Vogal, também
acompanhando o voto condutor, esclareceu: "Na verdade adiro ao voto da
ilustre Relatora na consideração de que entendo que empresa que tem autorização
plena e que está dentro dos princípios da legalidade, sem ferir qualquer norma
de ordem pública, jamais pode ser responsabilizada por supostos males que
venham a causar a terceiros, principalmente quando se trata de mera indústria
que depende, até mesmo, para distribuição de seu produto, de pessoas que
diretamente se relacionam com os consumidores. (...) Neste caso, sendo lícita a
atividade, nenhuma responsabilidade lhe causa enquanto permanecer este estado
de coisas." (2)
Mesmo
considerando a origem deste acórdão, data maxima venia, ouso a discordar
de tal posição. A aplicação do Direito no caso aludido, bem assim em vários
outros atinentes ao tema, com todo respeito aos seus prolatores, foi feita
mediante uma interpretação superficial, extremamente rasa. E, vale dizer, essa
cognição pouco aprofundada – nascida, é bem verdade, da excelente qualidade dos
trabalhos produzidos pelos procuradores que representam as indústrias do tabaco
– gera, infelizmente, um verdadeiro efeito dominó nos Tribunais nacionais,
porquanto esses entendimentos, agora imortalizados em sentenças ou acórdãos,
servirão de paradigmas a outros casos semelhantes a serem, futuramente,
julgados pelo Judiciário.
A
meu sentir, uma análise pouco mais penetrante seria suficiente para arruinar a
tese agasalhada pelo acórdão aludido. Vejamos, para ilustrar o que pretendo
demonstrar, alguns exemplos:
a.)
Todos nós presenciamos, por intermédio da mídia, em meados de 1999, um problema
envolvendo uma grande fabricante de veículos, a General Motors. Essa
empresa comercializou veículos da marca Corsa e Tigra com imperfeições nos
cintos de segurança, que foram responsáveis pela morte de, ao menos, duas
pessoas.
b.)Uma
determinada consumidora do Estado de Minas Gerais adquiriu um botijão de gás
junto à empresa Supergasbrás S/A. Ao conectá-lo em seu fogão, principiou-se
dali um vazamento de gás, culminando num incêndio sem proporções em sua
residência. Os danos foram diversos...
c.)
Numa ação possivelmente sem precedentes no Judiciário brasileiro, uma
consumidora, da cidade de Lajeado, recebeu indenização, por dano moral, da
microempresa fabricante dos sutiãs Intimitá. A consumidora, após fazer
ginástica numa academia, constatou que sua blusa estava manchada de sangue. Verificou,
então, que seus mamilos estavam esfolados. Diante disso, procurou imediatamente
atendimento médico, atestando-se que "o sangramento nos dois mamilos
foi provocado por escoriações do atrito do sutiã, durante exercício
físico". O acórdão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, modificando a sentença de primeiro grau, reconheceu o defeito
do produto, condenando a empresa ao pagamento de 30 (trinta) salários
mínimos, com juros retroagindo à data do fato, além de honorários advocatícios
arbitrados em 20% do valor da causa.
Pois
bem. Ninguém poderá negar existir permissão no País para se produzir e
comercializar veículos. Outrossim, inexiste impedimento para se produzir e
comercializar botijões de gás e sutiãs. Portanto, impõe-se reconhecer que
referidas atividades – produção e comercialização de veículos, botijões de gás
e sutiãs – são lícitas. Então é de se perguntar: essa legalidade das atividades
retromencionadas eximiria aqueles que a exercem de indenizar consumidores lesados
por acidentes de consumo provenientes dos produtos explorados? A resposta,
obviamente, é negativa.
Ora,
em sendo assim, a análise não haverá de ser feita, em casos tais, pelo exame da
licitude ou ilicitude da atividade. A questão não é esta. (3)
O
que importa, na verdade, é examinar as particularidades do produto colocado no
mercado – análise essa que deverá ser efetivada tanto no plano interno como no
externo. (4) Percebam: no primeiro exemplo, a obrigatoriedade de
indenizar surge da deficiência existente nos cintos de segurança dos veículos
produzidos. Já na segunda passagem, um vício (5) de fabricação –
leia-se defeito – no botijão de gás foi o responsável pelo incêndio ocorrido. Na
derradeira menção, uma incorreção num sutiã originou os danos no corpo da
citada consumidora. As atividades são todas lícitas; já as imperfeições
existentes nos produtos não são. Como se pode notar, isto está evidenciado na
própria Seção II do Código de Defesa do Consumidor, intitulada de "Da
Responsabilidade pelo fato do produto (...)". "Fato do produto"
denota acidentes ocorridos com produtos, enfatiza o elemento material causador
da responsabilidade. A presença do elemento ilicitude está subentendida na
própria imperfeição do produto, isto é, na idéia de defeito.
Aliada
a esta corrente, a precisa lição de Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, jurista
e Desembargador deste maravilhoso Estado, contida em obra valorosa,
recentemente publicada pela editora Saraiva, intitulada "Responsabilidade civil
no Código do Consumidor e a defesa do fornecedor". Preleciona ele que na
hipótese específica da "responsabilidade por acidentes de consumo, a
ilicitude da atividade do fornecedor está contida no conceito de defeito do
produto ou do serviço, uma vez que a prioridade é a reparação do prejuízo
sofrido pelo consumidor." (6)
À
vista disso, o artigo 8º da Lei 8.078/90 prevê, expressamente: "Os
produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à
saúde ou segurança dos consumidores (...)". Na mesma trilha sinalizam
os artigos 12, 14, 18, 19 e 20 do Código de Defesa do Consumidor, ao evidenciar
a antijuridicidade dos vícios e defeitos. Assim, a Lei consumerista criou
para o fornecedor um dever de segurança, obrigação esta de não lançar, no
mercado, produto inseguro. Se o lançar e sobrevier o acidente de consumo, por
ele responderá independentemente de culpa. (7)
Pensar
de outra forma seria quase dizer que o consumidor nunca seria indenizado por
produtos defeituosos – desprezando-se, assim, à máxima constitucional da defesa
do consumidor –, haja vista que as atividades exercidas pelos fornecedores no
mercado de consumo são lícitas, muitas delas, inclusive, regulamentadas e, até
mesmo, inspecionadas por órgãos governamentais.
Com
o cigarro a situação é exatamente esta. Difícil negar que a atividade exercida
pelas indústrias fumígenas seja lícita (8) – a própria Constituição
Federal, num dispositivo inusitado, refere-se à publicidade do tabaco. (9)
Entretanto, advogo a tese de que o cigarro apresenta-se como um produto
imperfeito, sob o ponto de vista jurídico, ou seja, contém vícios, mais
especificamente, os chamados vícios de concepção e de informação.
Logo,
sendo o produto imperfeito, poderá gerar acidentes de consumo –
caracterizando-se, então, os intitulados defeitos – e, conseqüentemente,
acarretar danos, de toda espécie, àqueles que dele fazem uso. É neste ponto que
se apresenta a fundamentação da responsabilidade civil das indústrias
fumígenas. O artigo 12 da Lei consumerista prevê, expressamente, que o
"fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o
importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação
dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto,
fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou
acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua utilização e riscos." No que se refere ao artigo 12,
percebe-se, com certa facilidade, que o Código de Defesa do Consumidor não
motiva a responsabilidade civil fundada no risco da atividade na própria
atividade do fornecedor. O fato gerador de sua responsabilidade é o
acidente de consumo, ou melhor, está naquele acontecimento externo, ocorrido no
mundo físico, causador de dano material ou moral ao consumidor, decorrente de
uma imperfeição do produto.
3. O VÍCIO DE CONCEPÇÃO DO CIGARRO
Falemos
um pouco das imperfeições que reputo existentes no cigarro.
Os
vícios de criação ou concepção resultam de erro no projeto do produto, como
também da escolha de material inadequado ou componente orgânico ou inorgânico
nocivo à saúde, não suficientemente testado. Essa tipologia ocorre na fase da
execução do projeto ou da fórmula, comprometendo a integralidade da produção
ou, ao menos, todos os produtos da mesma série. Mesmo as mais modernas técnicas
de controle da qualidade dos produtos não evitam sua ocorrência e, por isso,
essa modalidade de imperfeição costuma ser a mais temida pelos fabricantes que,
de certo modo, aceitam o risco criado. (10)
É
visível – embora estranho e questionável como dito a pouco – que a produção e
comercialização de cigarros, no País, correspondem a condutas lícitas. Decerto,
não é, tão-só, porque o produto causa lesões, enfermidades de toda sorte e, até
mesmo, a morte de seus consumidores (ativos e passivos), (11) que se
poderia tachá-lo de imperfeito. (12) Com efeito, e não
negligenciando outras possíveis tipificações, o vício de concepção do cigarro
ressalta-se pela presença de uma substância em sua composição: a nicotina.
Embora
não exista no País nenhuma prova técnica de que ela provoca a dependência, os
pareceres, relatórios e estudos são unânimes em caracterizá-la como um
psicotrópico. (13)
Para
se ter uma idéia, as indústrias do tabaco chegaram a afirmar que a nicotina
teria função preponderantemente vinculada ao sabor do cigarro; sempre
procuraram negar a relação da substância com o vício. (14) E não
poderia ser diferente. Digo isso porque importar, exportar, preparar, produzir
e fabricar no Brasil substância entorpecente ou qualquer outra que determine
dependência física ou psíquica, sem autorização ou em desacordo com determinação
legal ou regulamentar é crime, conforme prevê a Lei 6.368/76 – Lei de Tóxicos.
(15)
Portanto,
comprovando-se que a nicotina é uma substância psicotrópica, estar-se-á diante
de conduta que beira o crime, bem como de um verdadeiro vício de concepção do
cigarro, em consonância com o disposto no Código de Defesa do Consumidor. (16)
Como evidentemente se nota, a prova de que essa substância motiva a dependência
demonstrará que o consumo do cigarro é, na verdade, um comportamento
involuntário, pelo menos na grande maioria das vezes. (17)
Esse
raciocínio pode parecer, à primeira vista, estranho e equivocado. Afinal, se o
cigarro é um produto lícito, ilação lógica seria a de que a nicotina também o
é. Ocorre que o Estado não a reconhece como sendo um psicotrópico, ou seja,
aquela substância capaz de provocar dependência física ou psíquica em seus
usuários. Pela análise da Resolução da Diretoria Colegiada da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária, RDC nº 22, de 15 de fevereiro de 2001 (atualizada pela
RDC nº 228, de 11/12/2001), que atualizou a lista das substâncias sujeitas a
controle especial, percebe-se que a nicotina nunca esteve inserida no rol de
substâncias psicotrópicas. (18) Ora, se não existe controle
governamental pela Agência de Vigilância Sanitária (19) sobre
determinada substância, conclui-se que ela, pelo menos aos olhos cômodos do
Estado, (20) é incapaz de acarretar danos substanciais à comunidade.
Cai a lanço notar que a nicotina é hoje uma substância lícita, comercializada
por meio dos produtos fumígenos. No entanto, provando-se tratar ela de um
psicotrópico, sua licitude estará prejudicada – e o vício de concepção estará
evidenciado – em razão da impossibilidade legal de se produzir e comercializar
no País substância que acarrete dependência física ou psíquica, sem autorização
ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar.
Atentem-se
– e isso é importante – que se demonstrado ser a nicotina uma droga,
evidenciar-se-á, outrossim, que o prazer gerado pelo cigarro, longe de ser
natural, é claramente artificial. Embora a sensação de prazer seja verdadeira,
a impressão de que o cigarro acalma, relaxa e funciona como estabilizador do
humor é tão falsa como uma nota de R$ 3,00, como muito bem ressalta o
jornalista Mario Cesar Carvalho. (21) Na verdade, a sensação de
relaxamento ocorre porque a nicotina agiu sobre um mecanismo produzido por ela
própria: o da dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se porque
estava em crise de abstinência. A nicotina que ele consumira já havia se
dissipado do organismo. Aí começaram os sintomas da falta da nicotina – uma
ansiedade que parece irritação, nervosismo e incapacidade de concentrar-se. Quando
se aspira o cigarro, a crise de abstinência é interrompida e tem-se a sensação
de relaxamento. Em resumo, a nicotina não acalma nem estabiliza o humor. Ela só
alivia os sintomas provocados por sua própria falta; é a cura para um mal que
ela própria criou. (22)
A
nicotina faz do consumidor um viciado. As indústrias do tabaco dela se utilizam
para criar uma situação de dependência nos fumantes, cultivando em seus
organismos uma necessidade química que os transformam em consumidores
involuntários de cigarros. Necessitam eles – os fumantes – de alimentar,
minutos após minutos, seus vícios, impedindo, através de cada tragada, a
manifestação de uma desagradável crise de abstinência, sob o débil abrigo do
prazer postiço criado pela nicotina.
Esse
perigoso vício de concepção fere de morte a boa-fé que deve reinar nas relações
de consumo, bem como golpeia desonestamente os direitos basilares do consumidor
brasileiro, servindo-se como um expediente enganoso para fecundar a dependência
nos não fumantes e nutri-la naqueles já consumidos pela nicotina, tudo com o
objetivo único de expandir o influente e quase irrefreável império das
indústrias de fumo.
4. O VÍCIO DE INFORMAÇÃO, A LIVRE
ADESÃO DO CONSUMIDOR AO CONSUMO DE CIGARROS E A SUA AUTODETERMINAÇÃO PARA
ABDICAR-SE DO VÍCIO
Falemos
agora a respeito da outra imperfeição que vislumbro existir no cigarro: o
chamado vício de informação. Nesse momento, é preciso que se diga, inicio-me na
abordagem das duas últimas proposições com as quais me compromissei no
preâmbulo dessa exposição, quais sejam: a livre adesão do consumidor ao consumo
de cigarros e sua autodeterminação para abdicar-se do vício; e, finalmente, o
seu suposto conhecimento quanto aos riscos provenientes do consumo de cigarros.
Ganhou
a informação, com a publicação do Código de Defesa do Consumidor, contornos
peculiares.
Foi
ela erigida à categoria de princípio fundamental do microssistema das relações
de consumo (art. 4º, IV), integrando, ainda, o rol dos direitos basilares do
consumidor (art. 6º, III). Desse início já se percebe que a informação está
incorporada à própria essência da Lei 8.078/90; integra sua própria ossatura.
Outra
característica inerente à informação, em situações que envolvam relações de
consumo, é a sua inevitabilidade. Não cabe ao fornecedor decidir se deve ou não
exibir instruções a respeito dos produtos que coloca no mercado; a faculdade
não reside aqui. Deverá ele, o fornecedor, apresentar, obrigatoriamente, as
informações sobre a utilização do produto e seus eventuais riscos. Sua ampla
liberdade de agir foi, expressamente, revogada com o nascimento do Código de
Defesa do Consumidor, lei essa caracterizada pelo legislador pátrio como de
ordem pública e interesse social e, portanto, de forçosa observância e respeito
por aqueles que se propõem a abastecer o mercado de consumo.
Percebam,
ainda, que o texto normativo, ao se referir à informação, é abundante em
adjetivos: adequada, clara, precisa, correta, ostensiva. Tais atributos, longe
de evidenciar a riqueza de linguagem de nosso legislador, têm por função
indicar a preponderância de outra característica da informação: a sua
socialização. Não basta, pois, apenas informar; a informação precisa ser
socialmente eficaz. Isto é, a informação sobre a natureza, a utilização e os
riscos de determinado produto deverá, fatalmente, atingir o público alvo ao
qual ele, o produto, é destinado, de forma tal que o consumidor seja
legitimamente instruído, sem engodos, sem ilusões.
Ademais,
o dever de informação está, umbilicalmente, ligado à cláusula geral da
boa-fé objetiva que permeia todo o Código de Defesa do Consumidor. Boa-fé é
cooperação, lealdade e respeito; é um referencial objetivo de conduta que o
homem médio adotaria em determinadas situações. Resguardar a boa-fé significa
proteger os contratantes de artimanhas e subterfúgios. (23)
Com
efeito, foi em razão dessa extraordinária – e imprescindível, diga-se – tutela
dada à informação, que o Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 12,
prescreveu que o fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro,
e o importador respondem, independentemente da existência da culpa, pela
reparação de danos causados aos consumidores por informações insuficientes ou
inadequadas sobre sua utilização e riscos. A leitura deste texto normativo
evidencia o que se denominou na doutrina de vício de informação. Tal
imperfeição relaciona-se à qualidade da informação veiculada pelo fornecedor,
essa que, por ter sido prestada de maneira ineficiente ou inadequada – ou mesmo
por não ter sido prestada – acabou por acarretar um acidente de consumo. Novamente
se observa o que me referi anteriormente: pouco importa a licitude da atividade
exercida pelo fornecedor na análise do dever de responsabilização civil em
situações atinentes às relações de consumo. A problemática da ilicitude reside
no próprio produto, seja através de características intrínsecas a ele – como o
já abordado vício de concepção –, seja, ainda, por atributos extrínsecos,
referentes ao aspecto formal do mesmo produto.
Diante
dessa "radiografia" da informação e de sua importância para o Direito
das Relações de Consumo, poderemos principiar algumas considerações atinentes
ao que me dispus a criticar nesta ocasião. Indago-lhes, então: pode-se
enunciar, realmente, que o consumidor brasileiro é livre para fazer escolhas de
consumo no que se refere aos produtos fumígenos, notadamente aos cigarros?
Justificar
o consumo de cigarros através da singela afirmação de que o fumante "fuma
porque quer", de que teria ele "livre arbítrio", é analisar o
problema à margem das situações que o envolvem; é negligenciar a questão
através da admissão de uma premissa extremamente superficial, frágil e falha.
Como
aceitar que o consumidor escolheu livremente consumir cigarros se ele – ou ao
menos a grande maioria deles – não tem conhecimento aprofundado da natureza do
produto e dos riscos que ele encerra? (24) Adiante se verá, e
citarei inclusive alguns exemplos, que a queima do cigarro produz mais de 4.000
(quatro mil) substâncias tóxicas que, certamente, o consumidor médio jamais
imaginaria existir no produto que consome diariamente.
Ademais,
toda a publicidade insidiosa já veiculada pelas indústrias do fumo, com o
objetivo único de estimular a venda dos cigarros, incitou dúvidas no
subconsciente do consumidor, induzindo-o a subestimar os malefícios do produto.
É importante recordar que, em tempos não muito remotos, quando as peças
publicitárias veiculadas pelas fornecedoras de tabaco não sofriam as restrições
hoje existentes, toda a publicidade tinha como atores homens e mulheres
elegantes e viris que, literalmente, esbanjavam saúde, beleza e sensualidade;
essa espécie de marketing não tinha o condão de informar, mas, sim, de enganar
o consumidor, já que vinculava o hábito de fumar a prática de esportes
radicais, a aventuras, ao sucesso profissional, ao lazer e, até mesmo, ao
requinte. (25) Como falar em "livre arbítrio" se, muitas
vezes, o consumidor acabou, literalmente, induzido ou seduzido a adquirir um
maço de cigarros? O "livre" arbítrio dos consumidores foi, pois,
altamente influenciado por publicidades que, além de sugerir, persuadiam o
consumidor ao uso do fumo. (26)
Não
se pode negar, entretanto, existirem determinadas pessoas que realmente
conhecem, com profundidade, os males causados pelo cigarro e, mesmo assim,
mantêm o seu consumo, a exemplo de diversos médicos tabagistas. Surgindo ação
judicial promovida por tais indivíduos, caberá às indústrias fumígenas,
objetivando a exclusão de sua responsabilidade, demonstrar que aquele fumante
conhecia, quando optou por iniciar-se no tabagismo, os riscos aos quais iria se
sujeitar. Obtendo sucesso nessa prova, a fornecedora de cigarros comprovará que
o acidente de consumo ocorreu por culpa exclusiva do consumidor e, por
conseqüência, acabará isentada de indenizar; mas esses casos serão, a meu ver,
extremamente raros. De qualquer forma, deve-se sempre ter em mente a premissa
elementar de que cada caso é único e, em razão disso, deverá ser analisado de
acordo com suas particularidades.
Quanto
à afirmação exarada em algumas decisões no sentido de que a abdicação do vício pelo
fumo dependeria, apenas, de uma decisão do próprio fumante ou da sua
autodeterminação, data venia, tal assertiva representa mera conjetura, a
margem de qualquer embasamento técnico-científico. E digo isso porque as
estatísticas demonstram exatamente o contrário: 80% dos que tentam abandonar o
vício fracassam na empreitada. Essa realidade é bem explicada pela ciência. Vejam:
após uma tragada, a nicotina demora, normalmente, nove segundos para chegar ao
cérebro, tempo recorde quando comparado ao de outras drogas. "No
cérebro, a nicotina imita a ação de um neurotransmissor chamado acetilcolina,
cuja função é fazer a comunicação entre os neurônios. Ao encaixar-se nos
receptores de acetilcolina, a nicotina estimula essas células a produzir mais
dopamina, um neurotransmissor ligado à sensação de prazer. É por isso que o
cigarro é prazeroso. O aumento dos níveis de dopamina está associado a várias
compulsões, por sexo, comida, jogos ou nicotina. Esse neurotransmissor age numa
região do cérebro chamada mesolímbica, ligada ao prazer, à motivação e à
gratificação. O mecanismo é extremamente complexo, mas seu princípio é simples:
todos querem repetir experiências capazes de provocar prazer. Quem fuma um maço
por dia verá esse circuito repetir-se 73 mil vezes por ano, estimando-se que
cada cigarro seja consumido em dez tragadas. Que outra droga provoca 73 mil
vezes a sensação de prazer num ano? Nenhuma. Por isso o cigarro causa
dependência tão profunda." (27)
A
revista Veja, em recente reportagem, divulgou algumas conclusões da primeira
etapa de um estudo sobre o perfil dos fumantes que desejam largar o cigarro,
trabalho este realizado pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos
Estados Unidos. Depois de analisarem 32.000 (trinta e dois mil) homens e
mulheres, os pesquisadores constataram que o sucesso dos tratamentos para o
abandono do vício pelo fumo depende, dentre outros elementos, da condição
social do fumante. Em resumo: os mais endinheirados têm mais facilidade de
largar o cigarro, mormente porque a falta de recursos financeiros restringe o
acesso aos tratamentos. Os custos, segundo a mesma reportagem, dependem do
método escolhido (antidepressivos, chicletes, adesivos transdérmicos ou
inaladores de nicotina), mas o gasto médio nos Estados Unidos é de 3 a 10
dólares mensais, em um processo que pode levar até um ano. (28)
Com
efeito, não há como sustentar que a abdicação do vício pelo fumo dependeria,
tão-só, da autodeterminação do fumante. A questão envolve situações outras que
escapam à própria vontade do viciado, segundo afirmam os pesquisadores e
estudiosos do assunto. São fatos provados cientificamente que, decerto,
deveriam ser levados em consideração pelos julgadores na análise de casos
envolvendo as situações ora discutidas, sob pena de se fazer tábula rasa das
evidências rigorosamente reveladas pela ciência moderna.
5. O SUPOSTO CONHECIMENTO DO
CONSUMIDOR QUANTO AOS RISCOS PROVENIENTES DO CONSUMO DO CIGARRO
Para
encerrar, mister a reflexão do último tópico a ser aqui tratado: será que o
consumidor brasileiro realmente possui conhecimentos sedimentados a respeito da
natureza e riscos do cigarro? As informações que detém seriam suficientes para
dar-lhe condições de proceder a uma escolha entre fumar e não fumar de maneira
consciente e responsável?
A
deficiência de informações do consumidor quanto aos males acarretados pelo fumo
tem íntima relação com as primeiras experiências de consumo do cigarro e,
conseqüentemente, com a deflagração do vício causada por esse produto. Essa
afirmação, à primeira vista, pode aparentar-se falaciosa, sem consistência
real. Afinal, há décadas, os mais diversos estudos vêm alertando a sociedade
quanto aos perigos que o fumo pode gerar à saúde dos tabagistas e
não-tabagistas.
Todavia,
as pessoas, em sua maioria, não possuem conhecimento lúcido e firme da carga
mortífera que o cigarro carreia a seus organismos. Possuem, algumas delas,
conhecimentos básicos e superficiais; insuficientes, porém, para conduzí-las a
uma escolha consciente no sentido de iniciar-se ou não no tabagismo.
Como
se não bastasse, em razão da grande maioria das enfermidades, causadas pelo
vício, despontar somente após vários anos, muitos consumidores em potencial,
bem como tabagistas inveterados, acabam por subestimar a periculosidade do
produto. Ainda quando o vício de fumar encontra-se disseminado em determinada
população, os danos à saúde pública podem não ser visíveis. Nos países cuja
população esteve em contato direto com o tabaco durante muitos anos,
decorreram, ao menos, quatro décadas antes de surgir o quadro das enfermidades
relacionadas ao seu consumo. Isso sugestiona as pessoas a acreditarem que o
cigarro não interfere na saúde ou, ainda, que apenas alguns fumantes são
acometidos por doenças relacionadas ao tabagismo, o que, obviamente, não
corresponde à verdade.
Há,
neste ponto do estudo, de se lembrar algumas observações explanadas noutra
parte. O Código de Defesa do Consumidor, além de ter obrigado o fornecedor a
apresentar informações sobre a natureza, utilização e riscos dos produtos que
coloca no mercado, o impeliu a exibir informes socialmente eficazes que,
verdadeiramente, atinjam e influenciem o público alvo ao qual sua produção é
destinada.
Sendo
assim, para se difundir informações socialmente eficazes é forçosa a análise da
situação social, cultural e econômica da comunidade brasileira. Atualmente 31
milhões de brasileiros fumam. Estatísticas demonstram que, no Brasil, há um
menor consumo de cigarros nas classes de maior rendimento familiar per capta,
o que se explica pelo fato de tais famílias serem mais conscientes, pois
possuem nível cultural mais elevado. Segundo dados do Ministério da Saúde, o
maior consumo de cigarros está na base da pirâmide econômica, com 25,4% dos
indivíduos fumando. (29)
Neste
diapasão, não se pode olvidar que vivemos num país onde residem 15 milhões de
analfabetos (13,3% da população brasileira), com idade igual ou superior a 15
anos. Além disso, 29,4% de nossa população é constituída pelos chamados
analfabetos funcionais, pessoas que não completaram os quatro primeiros anos do
ensino fundamental. (30) Tais estatísticas, indubitavelmente,
demonstram a dimensão do problema.
Em
uma nação com essas características preocupantes, só há de se falar em
informação socialmente eficaz, pelo menos no que se refere à parcela
considerável da população, quando ela – a informação – for difundida por meio
de imagens. Neste ponto reputo louvável a iniciativa governamental, por meio da
Medida Provisória nº 2.134-30, de obrigar as indústrias do tabaco a
apresentarem em seus maços imagens dos males causados pelo fumo, popularmente
chamadas de "espanta-fumantes". Sem dúvida, grande parte da
comunidade brasileira, em razão do seu baixo nível econômico, social e
cultural, somente terá acesso a essas informações através do sistema de
símbolos ou imagens. Se tal medida não fosse adotada, muitos continuariam
excluídos do acesso ao seu direito à informação.
Mas,
tais imagens, embora informem, poderiam ser mais reais. Isto porque, muitas
delas, são encenações feitas por atores que, apesar de informar, não retratam,
de maneira inequívoca, a gravidade do problema. Penso que os maços deveriam
conter imagens mais chocantes, com ênfase em tabagistas que realmente sofreram
ou sofrem doenças tabaco-relacionadas. Conforme foi dito aqui, os consumidores
têm o direito de saber o que estão consumindo, têm o direito de obter
informações a respeito dos danos que o consumo de cigarro poderá causar à sua
saúde.
Por
outro turno, e não obstante a importante iniciativa adotada pelo governo,
entendo que deve se fazer mais. Como já dito alhures, mais de 4.000 (quatro
mil) compostos são produzidos pela queima do tabaco. A fumaça, segundo ensinam
os estudiosos do assunto, pode ser separada em fases gasosas e partículas. Entre
os componentes da fase gasosa que produzem efeitos indesejáveis estão o
monóxido de carbono, dióxido de carbono, óxidos de nitrogênio, amônia,
nitrosaminas voláteis, cianeto de hidrogênio, compostos voláteis contendo
enxofre, hidrocarbonetos voláteis, álcoois, aldeídos e cetonas. Ainda em sua
fase gasosa é possível identificar inúmeras substâncias radioativas, como o
polônio 210, o carbono 14, radio 226, radio 228 e o potássio 40. A fase
particulada, por sua vez, é a que contém nicotina, água e alcatrão. Essa última
substância é o que resta após a remoção da umidade e da nicotina, e consiste
principalmente de hidrocarbonetos aromáticos policíclicos.
Tais
substâncias, quando em contato com o organismo humano, acarretam inúmeros
efeitos maléficos já conhecidos: a) provocam tosse, irritação na garganta e
náuseas; b) afetam o trato respiratório; c) provocam a perda do olfato; d)
geram problemas gastrintestinais; e) irritam a pele, os olhos e as mucosas; f)
provocam anorexia; g) causam cegueira; h) acarretam cânceres de toda espécie,
notadamente de pulmão, garganta, bexiga e rins, dentre vários outros.
Não
tenho receio de dizer que a maior parcela de nossa sociedade não possui noção
exata da natureza do cigarro e, menos ainda, dos riscos a que está sujeita ao
utilizar esse produto – ou a ele se expor. Não se pode negar que muitos
consumidores sabem que ele faz mal à saúde; contudo, durante todas as suas
vidas, foram levados a subestimar os riscos inerentes ao consumo do cigarro,
seja pela carência de informações a respeito deles, seja ainda por influência
da insidiosa publicidade difundida pelas indústrias do tabaco, que os
induziram, até mesmo em nível de subconsciente, a minimizar a periculosidade do
produto mortal.
Assim,
acredito que os maços de cigarro deveriam, outrossim, vir acompanhados, a
exemplo das bulas de remédios, de prospectos informando o consumidor sobre a
verdadeira natureza do produto tóxico, a quantidade de substâncias tóxicas
existentes em cada unidade, a origem do fumo utilizado na sua confecção,
advertir dos inúmeros malefícios que o produto nocivo poderá gerar à saúde
daqueles que o consomem, além de outros esclarecimentos necessários e
imprescindíveis a real conscientização do consumidor brasileiro. A
informação, pois, só será socialmente eficaz no País com a adoção das duas
formas de informação: a imagem real e clara a respeito dos danos
que os consumidores poderão vir a sofrer, e um prospecto informativo que
acompanharia os maços de cigarros.
Uma
questão que é importante não olvidar: todos os informes prestados a respeito da
natureza e riscos do cigarro partiram de uma iniciativa estatal – iniciativa
essa que se mostra louvável de um lado e hipócrita de outro, conforme opinião
já defendida em notas de rodapé neste trabalho –, e não das fabricantes de
produtos fumígenos. A indústria do tabaco, simplesmente, respeita leis específicas
que regulam sua atividade; ela nunca informou nada ao consumidor; ao contrário,
tão-só valeu-se de expedientes publicitários ilícitos para angariar novos
consumidores e manter os já existentes. (31) Aliás, tal fato não
poderia ser diferente, porquanto a informação socialmente eficaz não é, para as
fabricantes de fumo, economicamente viável. Tal atitude – inércia quanto ao seu
dever de informar – demonstra aquilo que já me referi noutra oportunidade, isto
é, que as indústrias do tabaco sempre agiram em desrespeito ao princípio
basilar da boa-fé, privilegiando seus interesses econômicos em detrimento da
saúde, e, até, da própria vida daqueles que consomem, direta ou indiretamente,
seus produtos.
6. CONCLUSÃO
Para
a satisfação de todos vocês, encerro esta exposição expressando meu otimismo em
acreditar numa guinada na maré de decisões contrárias aos interesses dos
consumidores de cigarros acometidos por doenças tabaco-relacionadas no Brasil.
Nos
EUA, para se ter uma idéia, as primeiras demandas contra as indústrias de
cigarros surgiram em 1954. Até 1992 foram abertos 813 processos contra essas
empresas, sendo que dos 23 que chegaram a julgamento, só dois deles foram
favoráveis, em primeira instância, aos fumantes e, ainda assim, acabaram
reformados nos tribunais superiores. Essa situação apenas sofreu uma
reviravolta em junho de 1997. Atormentadas por ações, não mais de indivíduos,
mas de estados americanos que tentavam recuperar o dinheiro gasto pelo sistema
de saúde para tratar fumantes, as indústrias concordaram em pagar a maior
indenização da história: U$ 246 bilhões durante 25 anos. Em troca, os 50
estados americanos desistiriam dos processos que moviam por fraude contra a
saúde pública. (32)
Num
tempo não muito remoto, falar-se em responsabilizar as indústrias do tabaco no
Brasil, em razão dos danos que seus produtos causam à saúde dos fumantes e não
fumantes, representaria tese impossível juridicamente. (33) Todavia,
a sociedade transmudou-se; o Direito, que a ela serve, outrossim, inovou-se. O
Código de Defesa do Consumidor é exemplo vivo dessa assertiva. (34)
Os
problemas relacionados ao tema existem. O ordenamento jurídico, por sua vez,
possui instrumentos para solucioná-los de maneira justa e coerente com a nossa
atual realidade. Só espero que, ao contrário do ocorrido no EUA, a nossa
jurisprudência não necessite de 40 (quarenta) anos para aperfeiçoar-se. (35)
Muito
obrigado.
7. BIBLIOGRAFIA
AGUIAR
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Consumidor, n. 14, São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 20-27.
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Reflexões acerca do art. 1º do Código de Defesa do Consumidor. Revista de
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Universitária, 1999.Nery JÚNIOR, Nelson. Os princípios gerais do Código
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consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997.
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VIEIRA
SANSEVERINO, Paulo de Tarso. Responsabilidade civil no código de defesa do
consumidor e a defesa do fornecedor. São Paulo : Saraiva, 2002.
NOTAS
1 Essa tese, sempre utilizada pelas
indústrias fumígenas em suas defesas judiciais, procura, ao nosso ver,
confundir atividade lícita com ato lícito. Conforme se verá adiante, não é
incomum – aliás, a situação mostra-se assaz normal no mercado de consumo – a
configuração de ato ilícito no exercício de atividade lícita.
2 Disponível em:
<http://www.tamg.gov.br>. Acessado em 05/12/2003.
3 Daí porque pouco importar a
licitude da atividade de cultivo, industrialização e comercialização de fumo na
imputação da responsabilidade civil às indústrias do tabaco nos casos atinentes
a problemática objeto de exame. Se é possível responsabilizar-se uma montadora
de veículos por danos advindos de um defeito de peça constante de um automóvel
por ela comercializado, ou, ainda, condenar-se uma fornecedora de alimentos por
danos sofridos em decorrência do consumo de maionese deteriorada por ela
fornecida, da mesma forma apresenta-se legítimo responsabilizar-se as empresas
de fumo pelos danos acarretados pelo consumo de produtos fumígenos viciados;
basta, para isso, a constatação de uma imperfeição no produto. A ilicitude,
portanto, reside na imperfeição do produto e não na atividade necessária à sua
produção e comercialização.
4 Conforme leciona Paulo de Tarso
Vieira Sanseverino, os "danos causados ao consumidor não decorrem
apenas de defeitos em si do produto ou serviço, visto que, muitas vezes, estes
não apresentam, materialmente, qualquer falha. A defeituosidade situa-se num
plano externo em relação ao produto ou serviço, resultando de informações
deficientes sobre sua correta utilização ou da falta de advertência sobre os
riscos por eles ensejados. Apresenta-se como uma modalidade especial do defeito
de projeto. O defeito formal ou de informação caracteriza-se exatamente pela
falta ou insuficiência de instruções sobre a correta utilização do produto ou
do serviço, bem como sobre os riscos por ele ensejados. A compreensão do
defeito de informação exige que se observe a importância conferida ao dever de
informação no direito privado moderno, bem como a sua repercussão concreta
sobre a responsabilidade do fornecedor." (VIEIRA SANSEVERINO, Paulo de
Tarso. Responsabilidade civil no código de defesa do consumidor e a defesa
do fornecedor. São Paulo : Saraiva, 2002. p.139).
5 Tecnicamente a palavra vício
significa, no dizer sempre expressivo do professor Rizzatto Nunes, imperfeição
de qualidade ou quantidade que torne o produto ou serviço impróprio ou
inadequado ao consumo a que se destinam e também lhe diminuam o valor. (NUNES,
Luiz Antonio Rizzatto. Comentários ao código de defesa do consumidor. Direito
Material. São Paulo : Saraiva, 2000. p. 157). Trata-se de característica
ilícita pertinente ao próprio produto ou serviço. Utilizar-se-á a expressão
"vício" neste trabalho como sinônimo de imperfeição capaz, inclusive,
de atingir a própria segurança do consumidor, originando-se os chamados
defeitos. O defeito, como se sabe, é sempre originado de um vício; contudo traz
consigo uma bagagem extra já que acarreta danos à incolumidade física e/ou
psíquica do consumidor. Destarte, o defeito corresponde à idéia de resultado ou
conseqüência, sempre proveniente de um vício. Equivale à idéia de acidente de
consumo; ocorre sempre que o consumidor for lesado em sua incolumidade física,
psíquica e/ou, conforme o caso, patrimonial (defeito = vício + danos). Conclui-se,
pois, estar embutido no conceito de defeito o vínculo de causa e efeito entre
um vício e eventuais danos. O fornecedor interessado em se ver livre da
responsabilidade de indenizar deverá demonstrar a inexistência de um vício, ou
ainda, se comprovada a sua existência, estará incumbido de provar que os danos
não foram provenientes de tais vícios, porquanto, nesse caso, o defeito não restaria
configurado. Estar-se-ia apenas diante de um vício de qualidade que tornou o
produto impróprio ou inadequado ao consumo (artigo 18 da Lei 8.078/90), não
havendo, diante disso, o que se falar em acidente de consumo.
6 VIEIRA SANSEVERINO, Ob.cit.
p. 148. O mesmo jurista, complementando seu raciocínio, ressalta: "No
defeito, não se discute o elemento subjetivo da conduta do fornecedor. Basta a
ocorrência objetiva de defeito no produto ou no serviço para o surgimento da
obrigação de indenizar. É suficiente que o produto apresente uma falha que lhe
retire a segurança legitimamente esperada para que seja considerado defeituoso,
não se exigindo qualquer participação ou colaboração subjetiva do fornecedor ou
seus prepostos na sua ocorrência." E arremata: "Ainda que não
tenha havido uma conduta negligente de parte do fornecedor ou dos seus
prepostos, constatado o defeito do produto ou do serviço, aquele será
responsabilizado pelo danos sofridos pelo consumidor." (Ibid.,
p. 148).
7 Como se sabe, a regra, em termos de
responsabilidade civil, no Código de Defesa do Consumidor, é a da
responsabilidade pelo risco do negócio. Consoante leciona Agustín Viguri Perea,
"la razón subyacente radica em que quien introduce un producto en el
mercado, beneficiándose del mismo, tiene que responder de las consecuencias
derivadas de tal situación." (PEREA, Agustín Viguri. La
responsabilidad civil derivada del consumo de tabaco. Granada : Editorial
Comares, S.L., 2001. p. 218).
8 Mostra-se questionável, sob uma
análise constitucional, a afirmação de que a atividade exercida pelas
indústrias do tabaco seja lícita. Se usarmos como parâmetro aqueles Direitos
constitucionais mais caros ao cidadão, como, por exemplo, o da dignidade e da
vida, certamente, e ao menos em tese, a licitude da atividade dos fornecedores
de tabaco, mesmo que regulamentadas, cairia por terra. Não obstante isso, os
homens vivem numa realidade muitas vezes alheia às belas teorias ou bem
intencionadas legislações – situação lamentável, diga-se –; essa realidade, não
raro, sinaliza-se em prol de interesses outros – os de ordem econômica, por
exemplo –, de importância diametralmente inferior quando comparados àqueles
outros, agora a pouco citados. Explicações, diversas e fecundas, acabam por
surgir em favor dessa realidade distorcida e evidentemente prejudicial ao
próprio homem que nela se insere.
Nessa
vereda, e partindo-se da premissa de que a atividade de se produzir e
comercializar produtos fumígenos seja realmente legítima, deve-se atentar para
as características, intrínsecas e extrínsecas, de tais produtos. Não é porque
uma atividade empresarial ou comercial mostra-se lícita que o fornecedor pode
violar deveres seus, juridicamente preexistentes. Mesmo antes da publicação do
Código de Defesa do Consumidor, era possível vislumbrar princípios que deveriam
– e ainda hoje devem – ser respeitados pelos contratantes numa relação de
consumo, ou em outra relação qualquer, a exemplo do presentemente difundido
princípio da boa-fé objetiva. O ato ilícito, então, pode surgir não da
atividade exercida, em si mesma, mas, sim, em face da violação de uma norma ou
obrigação diante da qual se encontrava o agente. Daí a importância em se
analisar, outrossim, as particularidades dos produtos (ou serviços) colocados
no mercado de consumo, tanto pelo plano externo como interno, para se buscar o
ato ilícito.
No
caso específico do cigarro, se verá adiante a configuração de verdadeira
omissão culposa – quiçá dolosa – por parte de suas fornecedoras, uma vez que,
mesmo detendo conhecimentos lúcidos a respeito dos males que os componentes do
produto maléfico acarreta aqueles que a ele se expõem, valeram-se de uma
política voltada ao econômico apenas, negligenciando ao consumidor informes essenciais
à sua escolha consciente sobre fumar ou não fumar (vício de informação). Não
bastasse a omissão voluntária de informações, as fornecedoras de tabaco
lançaram mão de publicidades abusivas e enganosas, hoje criminosas, para
incitar o vício e seduzir a sociedade ao consumo de seus produtos, distorcendo
publicamente os verdadeiros efeitos causados pelo uso do cigarro, para
vinculá-lo ao prazer, bem estar, sucesso, beleza, requinte e, até mesmo, à
saúde.
9 Trata-se do art. 220, §4º, da
Constituição Federal. Esse o seu teor: "A propaganda comercial de
tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeira
a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá,
sempre que necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu
uso." Da leitura desse dispositivo, uma ilação surge: se a publicidade
do tabaco pode sofrer restrições – e, hoje, efetivamente isso ocorre –, ela não
se mostra ilícita – desde que respeite, obviamente, os limites estabelecidos
pela lei competente. Então, se a publicidade de tabaco é permitida, por
conseqüência, a venda dos produtos fumígenos também o é. Pensamos, diante de
tal consideração, que não é sob o fundamento de que o cigarro, após a
publicação da Lei 8.078/90, perdeu seu campo de comercialização no País, que se
poderá pleitear indenizações contra as indústrias fumígenas em face dos danos
que o cigarro vem causando aos consumidores.
10 DENARI, Zelmo. Código brasileiro
de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 6. ed. São
Paulo e Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999. p. 160.
11 Não só apenas os fumantes são
protegidos pela Lei nº 8.078/90. Os fumantes passivos, igualmente, podem se
valer de tal legislação objetivando ressarcimento civil, uma vez que são
considerados consumidores por equiparação legal.
Os
fumantes passivos são aqueles que, embora não possuam o vício de fumar,
convivem diretamente com fumantes, inalando, dia-a-dia, a fumaça tóxica do cigarro.
É certo que tais pessoas não se encaixam no conceito de consumidor padrão (art.
2º da Lei nº 8.078/90). Não adquirem ou usam (por vontade própria) o cigarro
como destinatário final. No entanto, muitas vezes, acabam por se tornar vítimas
de uma relação de consumo da qual não tiveram participação. Embora nunca tenham
comprado um cigarro na vida, foram vítimas do produto mortal, por inalarem sua
fumaça tóxica, fato que, em conformidade com o art. 17 do Código consumerista,
equiparam-nas aos consumidores. (DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e
tabagismo no Código de Defesa do Consumidor. Belo Horizonte : Del Rey,
2002. p. 74-75).
12 É de se questionar se o cigarro não
seria imperfeito também pelo fato de ser capaz de acarretar enfermidades, de
toda sorte, àqueles que dele se utilizam ou a ele estão expostos. Bastaria,
admitindo-se correta essa premissa, a prova, em ações judiciais, de que o
cigarro foi o responsável por determinado dano à saúde de um fumante para,
então, responsabilizar-se a fornecedora do produto, já que, diante de tal
demonstração, estar-se-iam evidenciados o ilícito, o dano e nexo de causalidade
entre os dois primeiros? Partindo-se do pressuposto do dever de segurança
inerente a todos os fornecedores que abastecem o mercado de consumo, tal
indagação se mostra importante e digna de análise.
Em
primeiro lugar, mister esclarecer que os riscos inerentes ao consumo do cigarro
não são considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e
fruição (art. 8º da Lei nº 8.078/90). Isto porque, ninguém fuma para desfrutar,
no futuro, de um câncer no pulmão ou uma diminuição do desejo sexual. Demais, a
própria natureza do produto, vista como conjunto de substâncias que o compõe e
os danos que ele poderá causar à saúde dos que dele fazem uso, é desconhecida
pelo consumidor médio. Basta, para assim concluir, lembrar que a maior parcela
de tabagistas do País iniciaram-se no vício na adolescência, ou, ainda, que o
maior consumo de cigarros ocorre, segundo dados estatísticos, nas classes de
nível cultural menos elevado. O cigarro não deve ser considerado, pois, como um
produto que detém a denominada periculosidade inerente; embora a maior
característica do cigarro seja a de matar ou debilitar seus consumidores, essa
não é a expectativa de quem o está adquirindo ou consumindo.
De
outra parte, e por mais estranho que possa parecer, a ilicitude do produto
parece não estar na potencialidade que o cigarro detém de causar doenças
diversas nas pessoas, ou, até mesmo, matá-las. Os atos ilícitos, no nosso
modesto entender e sem a intenção de esgotá-los, configuram-se: a.) na omissão
das fornecedoras de tabaco em informar, de maneira adequada e clara, sobre as
características, composição, qualidade e riscos que o cigarro poderá gerar aos
seus consumidores (vício de informação); b.) na publicidade insidiosa e
hipócrita difundida há tempos pelas fornecedoras de tabaco, vinculando o
cigarro a situações como sucesso profissional, beleza, prazer, saúde, requinte,
etc.; e c.) no fato de as indústrias do fumo inserirem no cigarro substância
que acarreta dependência aos seus utentes (nicotina), obrigando-os a consumir
mais-e-mais o produto nocivo, não por uma escolha consciente, mas em razão de
uma necessidade química.
Por
tais razões, no País, segundo pensamos, pode-se produzir e comercializar
produtos maléficos – desde que legalizados, a exemplo do que ocorre com os
cigarros. Frise-se, entretanto, a necessidade de se cumprir os deveres de
informação, transparência e boa-fé por parte dos fornecedores do produto,
instruindo à sociedade, de forma adequada e clara, sobre a composição, natureza
e riscos do consumo do produto. No que diz respeito ao cigarro, sua
comercialização é, pois, permitida; os deveres citados alhures devem ser,
porém, respeitados e cumpridos por seus fornecedores. Não há problema em se
consumidor cigarros; contudo, tal postura deve ser adotada conscientemente.. Trata-se
de vertente do exercício da liberdade, mas não uma "liberdade"
deliberada, provocada, e sim a liberdade consciente, real, sem engodos ou
ficção.
13 Ao que tudo indica, não tardará
para que esta prova seja realizada em um processo brasileiro. No julgamento do
Recurso Especial nº 140.097, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça
houve por bem não conhecer do recurso promovido pela Philip Morris Marketing
S/A, em desfavor da Associação de Defesa da Saúde do Fumante – ADESF –, no qual
aquela empresa pugnou, entre outras questões, pelo descabimento da inversão do
ônus da prova para demonstrar que a nicotina não causa dependência aos
fumantes. O ministro César Asfor Rocha, relator do processo, esclareceu: "Ora,
é evidente que a ré/recorrente está muito mais apta a provar que a nicotina não
causa dependência que a autora/recorrida provar que ela causa. Uma empresa de
tamanho porte, com atuação em quase todos os quadrantes do mundo, certamente
não iria propositadamente fabricar produtos com a convicção de que nele haveria
um componente a causar dependência maléfica à saúde. E se pelo estágio atual da
ciência, a questão da nocividade constitui, ao menos, ponto aberto ao debate,
que ela faça essa prova de modo irretorquível, pois mais do que qualquer
consumidor ou entidade poderá a ré/recorrente evidenciar essa assertiva, que a
recorrente tem como verdadeira." O Ministro Rui Rosado de Aguiar, ao
proferir seu voto, seguindo o entendimento do Relator, acrescentou: "No
que diz com a inversão do ônus da prova, realmente a questão da dependência é
um fato que pode ser provado. Não é, penso eu, um fato moral ou filosófico,
como foi afirmado da tribuna, que excluiria a possibilidade de demonstração
científica. É um fato acessível à ciência, é um fato biológico. A prova pode
ser feita. Processando-se o pedido, a empresa recorrente terá a excelente
oportunidade de demonstrar que o produto que vende não é nocivo a saúde. Observo
que essa inversão do ônus da prova, consagrada no Código de Defesa do
Consumidor, é uma das hipóteses em que se transfere a carga do ônus probatório
de uma parte para a outra, quando a outra, no caso a ré, é quem dispõe de
elementos, das informações e das condições para conhecer o fato e demonstrar a
sua existência e as suas características." (Disponível em:
http://www.stj.gov.br). Acessado em 05/12/2003.
14 Em processo julgado no Rio Grande
do Sul, donde proveio decisão unânime, da lavra do Tribunal de Justiça daquele
Estado, reformando sentença de primeiro grau para condenar a Souza Cruz S.A. a
indenizar determinada família de fumante falecido, pode-se colher depoimentos
de testemunhas arroladas pela Ré Apelada que sinalizam a linha de defesa da
qual se valem as indústrias fumígenas. Nessa trilha, ao ser indagado se a
nicotina possuiria grande potencial viciante, Ismar Volpon Filho, engenheiro de
materiais e empregado da aludida empresa, respondeu: "Não, eu tenho
conhecimento que a nicotina tem o papel farmacológico, mas como eu já disse
anteriormente, de acordo com a definição técnica, científica de vício, nós não
consideramos que a nicotina é viciante." (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Apelação Cível nº 70007090798, Relator Desembargador Augusto
Coelho Braga, julgado em: 19 de novembro de 2003. O citado depoimento foi
descrito na página 10 deste acórdão. Disponível em:
<http//www.tj.rs.gov.br>). Acessado em 05/12/2003.
15 É estranho imaginar que a nicotina
não é caracterizada como uma droga no País. Mas é essa a mais cristalina
realidade. Tanto isso é real que num processo brasileiro, promovido pela ADESF
(Associdação de Defesa da Saúde do Fumente) contra a Philip Morris Marketing
S/A., a fornecedora de tabaco deverá demonstrar, após decisão deferindo o
pedido de inversão do ônus da prova – confirmada, inclusive, pelo STJ –, que a
nicotina não é capaz de causar dependência (REsp. nº 140.097, julgado pela
Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, tendo por relator o Ministro
César Asfor Rocha. Disponível em: <http//www.stj.com.br>). Acessado em
05/12/2003.
A
ADESF, fundada no ano de 1995, representa a mais importante associação de
defesa do fumante existente no País. Informações sobre o trabalho dessa
importante entidade, bem assim a respeito de dados interessantes sobre o fumo
poderão ser encontradas em seu site: <http://www.adesf.com.br>. Acessado
em 05/12/2003.
16 Desse quadro percebe-se que se
produz e comercializa substância psicotrópica – a nicotina – como se
psicotrópica não fosse. O poderio das indústrias fumígenas é tamanho – e a
própria realidade impele a essa ilação – que o engodo à sociedade é mascarado
pelo próprio Estado – detentor do dever de promover a proteção da saúde e
dignidade da população –, que, mesmo diante das mais claras evidências a
respeito do potencial viciante da nicotina, adota uma postura cômoda sobre o
assunto, quedando-se silente.
O
Estado, atualmente, obriga as indústrias do tabaco a inserir, nos maços de
cigarros por elas comercializados, advertências acerca dos malefícios do
produto danoso. Dentre essas advertências, consta uma particularmente
interessante, informando o consumidor que a nicotina é uma droga e causa
dependência. O Estado, portanto, reconhece ser a nicotina um psicotrópico,
contudo, abstém-se de regulamentar a produção e comercialização da substância. Admite
seu potencial viciante, porém, permite a circulação da nicotina no país sem
autorização para tanto. Em outras palavras, o Estado mostra-se conhecedor da
prática de conduta que se aproxima de um crime (produção e comercialização de
psicotrópico sem autorização legal ou regulamentar), entretanto a tolera passivamente.
Certamente poderia ele – e deveria – estar incluído no pólo passivo das
demandas em que se buscam indenizações por danos advindos do tabagismo; sua
pusilânime omissão seria motivação suficiente para tanto.
17 Algumas afirmações contidas em
decisões judiciais no sentido de que "o cigarro estaria mais vinculado a
um hábito do que a um vício", ou de que "o ato de fumar e o de parar
de fumar dependem exclusivamente da vontade do fumante", data venia,
representam meras conjecturas. E a comprovação da fragilidade de tais
afirmações é fornecida pela própria ciência. Veja-se, a esse respeito, trecho
do parecer solicitado pela Associação Cearense de Defesa da Saúde do Fumante e
Ex-Fumante ao Prof. José Rosemberg, titular da Cadeira de Tuberculose e
Pneumologia da Faculdade de Ciências Médicas de Sorocaba da Pontifícia
Universidade Católica e Presidente do Comitê Coordenador do Controle do
Tabagismo no Brasil, considerado um dos maiores especialistas e estudiosos dos
malefícios causados pelo tabagismo na atualidade: Nos cigarros, os efeitos da
nicotina são mais rápidos e devastadores. Após uma tragada, ela chega ao
cérebro em nove segundos, valendo dizer que, em média, traga-se dez vezes cada
cigarro. Quem fuma um maço de cigarros por dia, sofre, portanto, duzentos
impactos cerebrais de nicotina, totalizando setenta e três mil impactos por
ano. Nenhuma outra droga age com esse volume e intensidade, provocando
malefícios e lesando praticamente todos os órgãos. Seu mecanismo farmacológico
é semelhante ao da cocaína e heroína, e a dependência que provoca costuma ser
mais intensa que a destas últimas. (DELFINO. Ob.cit. p. 10).
18 É um contra-senso o fato de que,
por um lado, a nicotina não esteja inserida no rol de substâncias psicotrópicas
sujeitas a controle especial, e, por outro, o Estado, por meio do Ministério da
Saúde, obrigue as indústrias do tabaco a inserirem nos maços de cigarros
algumas advertências sobre os malefícios do fumo, dentre elas, a de que a nicotina
é uma droga e, portanto, causa dependência.
19 A Agência Nacional de Vigilância
Sanitária, criada pela Lei n. 9.782, de 26 de jan. de
1999, é uma
autarquia sob regime especial vinculada ao Ministério da Saúde. Sua finalidade
institucional é promover a proteção da saúde da população por intermédio do
controle sanitário da produção e da comercialização de produtos e serviços
submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos processos, dos
insumos e das tecnologias a eles relacionados. Além disso, a Agência exerce o
controle de portos, aeroportos e fronteiras e a interlocução no Ministério das
Relações Exteriores e instituições estrangeiras para tratar de assuntos internacionais
na área de vigilância sanitária. (Disponível em: <http://www.anvisa.gov.br/inst/apresentacao.htm>). Acessado em 05/12/2003.
É
inegável incumbir à Agência Nacional de Vigilância Sanitária regulamentar,
controlar e fiscalizar os cigarros, cigarrilhas, charutos e qualquer outro
produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, conforme prescreve o inciso X do
art. 8º da Lei n. 6.368, de 21 de out. de 1976. Tal fato se justifica
porque os produtos fumígenos são potencialmente nocivos à saúde, capazes de
causar lesões à comunidade em virtude dos milhares de substâncias tóxicas que
possuem. No entanto, toda substância que motive a dependência física ou
psíquica, sem a devida e expressa autorização legal, tem comercialização
proibida. E, não há no país, norma alguma que autorize a comercialização de
nicotina – mesmo porque, conforme já afirmado, a nicotina no Brasil é
comercializada como se um psicotrópico não fosse.
20 O Brasil, no início do mês de abril
do ano de 2003, foi palco de mais uma demonstração de fraqueza estatal. Não só
debilidade, contudo; vergonha e desrespeito também fizeram parte do circo
amplamente divulgado pela mídia.
Uma
Medida Provisória, editada em 04/04/2003, prorrogou para 31 de julho de 2005 a
data a partir da qual a publicidade de cigarros fica proscrita, atropelando
determinação estampada em aplaudida legislação antitabagista publicada no
governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
O
governo federal, atendendo a uma solicitação da Prefeitura de São Paulo e
resguardando os interesses de uma gigantesca emissora de TV, garantiu a
permanência do Brasil no circuito de Fórmula 1, já que flexibilizou a
propaganda de cigarros, permitindo que cinco das dez escuderias estampem em
seus carros publicidades de seus patrocinadores, as indústrias de cigarros.
Não
bastasse o flagrante mau uso do instituto da medida provisória, a postura
governamental chocou pela ousadia e desprezo aos interesses da comunidade em
favor de interesses econômicos, considerados pelo Estado como superiores à
própria saúde e dignidade dos indivíduos.
A
afirmação de que os valores individuais mais caros ao cidadão cedem espaço,
nesse país, às pressões e interesses econômicos, não causa mais espanto a
ninguém; todavia, as medidas adotadas pelo Governo para satisfazer os mais
endinheirados – como a que ora se narra –, certamente, ultrapassam a
criatividade e o bom senso, chegando a abalar os pilares do Estado Democrático
de Direito.
Alterando
o foco de análise para a seara jurídica, outra conclusão emerge dessa
gravíssima situação: a da visível responsabilidade do Estado pelos danos que o
tabagismo causa aos consumidores de produtos fumígenos.
A
discussão da responsabilidade das indústrias do tabaco pelos danos que seus
produtos causam aos fumantes já se inclui, há algum tempo, na pauta dos
Tribunais nacionais, bem como já vem sendo abordada – de maneira ainda tímida,
é verdade – pela doutrina nacional. A tese ainda não vingou; todavia, não se
trata de matéria morta, importada dos EUA e sem nenhuma aplicação no Brasil. Não
mesmo.
Dentre
as mais de 300 (trezentas) ações existentes no país em que se examinam a
responsabilidade das empresas fabricantes de tabaco, alguns juizes mais
sensíveis às corriqueiras mudanças sociais e, por conseqüência, desapegados ao
excessivo formalismo jurídico que o Direito do século passado representou,
manifestaram, por meio de suas decisões, apego ao tema. As Cortes nacionais,
porém, cassaram praticamente todas as decisões nesse sentido; em grande parte
das situações por falta de lastro probatório a permitir que os direitos desses
cidadãos fossem garantidos; noutras por mero descrédito à tese. Vale, contudo,
relembrar aqui recentes acórdãos, da lavra do Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul – reconhecido pela sua coragem e inovação –, que deram provimento aos
recursos de apelação movidos por familiares de fumantes mortos em razão do
tabagismo. Certamente, esse marco representará novo norte aos fumantes
debilitados pelas enfermidades causadas pelo fumo.
O
que ainda não se tem conhecimento no País é de ação promovida por fumante
instrumentalizada para se questionar a responsabilidade do Estado pelos danos
sofridos em razão do consumo de tabaco.
Ora,
é ele, o Estado, quem permite a comercialização de produtos que matam, nada
menos, que a metade de seus consumidores diretos, acarretando, inclusive,
prejuízos altíssimos aos cofres públicos. É ele ainda quem autoriza a venda de
uma substância incrivelmente viciante, um psicotrópico denominado
nicotina. Embora "tape os olhos" ao não reconhecer essa substância
como droga – ilação que se tira da análise da Resolução da Diretoria Colegiada
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, nº 22, de 15 de fevereiro de 2001
–, é sabedor de que ela provoca dependência física, tanto que obrigou as
empresas fumígenas a inserir em seus maços diversas advertências, dentre elas uma
alertando que a nicotina é droga e causa dependência. E, no Brasil, em razão de
disposição legal expressa, não se pode comercializar produtos que acarretam a
dependência física ou psíquica, sem autorização legal ou regulamentar (art.12
da Lei 6.368/76).
Nesse
lamentável episódio envolvendo a F-1, a responsabilidade estatal, outrossim,
mostra-se evidente. O Estado não é somente conivente com a atividade das
empresas de cigarros, mas, também, apresenta-se como ator essencial à sua
manutenção. Não fosse assim, agiria com zelo e responsabilidade fazendo cumprir
a lei. Preferiu, entretanto, não correr riscos e evitar uma possível exclusão
da cidade de São Paulo do calendário da F-1, atropelando, para isso, legislação
vigente nascida a duras penas e representativa do respeito à saúde, à honra e à
dignidade da pessoa humana.
Trata-se
de um paradoxo insustentável: esse mesmo Estado que, por um lado, reconhece o
potencial danoso das publicidades de produtos fumígenos, restringindo-as através
de lei, noutra oportunidade, assume posição oposta – e, nesta ocasião, mais
condizente com seus interesses –, permitindo a veiculação de tais peças
publicitárias, negando, para tanto, vigência à própria lei.
21 CARVALHO, Mario César. O cigarro.
São Paulo : Publifolha, 2001. p. 59.
22 Ibid. p. 59.
23 Nesse sentido, a opinião do
Desembargador Nereu José Giacomolli ao julgar situação concreta a respeito do
tema ora tratado: "Com efeito, estimo que houve descumprimento de obrigação
originária da empresa demandada, defraudando expectativa social, quando
desenvolveu suas atividades sonegando o dever secundárrio de informação e,
conseqüentemente, ferindo o princípio basilar da boa-fé objetiva, pois sempre
soube da nocividade decorrente do consumo do cigarro e, por omissão da
informação, decorreu em ilícito que enseja o dever de indenizar." Noutro
trecho, igualmente relevante, destaca o jurista: "Então, lastreado no
princípio da boa-fé – critério de reciprocidade –, advém o dever secundário
especial de informar ou notificar o consumidor sobre algo que lhe interesse
para a conservação de seus direitos, especialmente, no caso dos autos, o
direito constitucional à saúde. Sua inobservância configura o dever de
indenizar. Observando-se esse entendimento, configura-se como uso do direito em
direção ilegítima a sonegação da informação ao consumidor dos malefícios do
cigarro, pois era dever das indústrias tabagistas informar – com a mesma ênfase
que se dedicavam a incitar ao consumo – todos os malefícios que poderiam advir
do cigarro, inclusive da condição de dependência a que estariam submetidos os
consumidores caso aderissem ao hábito de fumar." (Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, Apelação Cível nº 70007090798, Relator Desembargador Luís
Augosto Coelho Braga, julgado em 19 de novembro de 2003. Disponível em:
<http//www.tj.rs.gov.br>). Acessado em 05/12/2003.
24 A negativa de informações por parte
das fabricantes de tabaco sobre os malefícios que os fumígenos poderão causar à
saúde daqueles que deles se utilizam, por certo, interfere no julgamento ou na
escolha do consumidor, incutindo-o a adquirir e usar um produto claramente
nocivo. Nessa esteira, a opinião do Desembargador Nereu José Giacomolli, ao
julgar caso concreto a respeito do tema: "Ademais, tal agir omissivo,
indubitavelmente, afetou a autonomia da vontade do consumidor, interferindo no
seu direito de tomar decisões válidas e de agir de acordo com esse
entendimento, pois, mesmo a demandada negando este fato, o consumo do cigarro
implica em dependência física e psíquica, além de diversos males à saúde, e tal
informação foi subtraída do conhecimento de quem acabou por se tornar
tabagista." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível
nº 70007090798, Relator Desembargador Luís Augosto Coelho Braga, julgado em 19
de novembro de 2003. Disponível em: <http//www.tj.rs.gov.br>). Acessado
em 05/12/2003.
25 Conforme reportagem de autoria do
jornalista Mario Cesar Carvalho, a Souza Cruz, treze dias antes de a
publicidade de cigarro ter sido banida das TVs no Brasil (1º de janeiro de
2001), aceitou retirar do ar uma campanha do cigarro Free que o Ministério
Público de Brasília considerou ilegal porque estimularia crianças e
adolescentes a fumar. Um laudo do Instituto de Medicina Legal do Distrito
Federal, no qual três psicólogos analisaram o comercial do Free, evidenciou o
ilícito. Em tal publicidade um pintor diz: "Vejo as coisas assim: certo
ou errado, só vou saber depois que eu fiz. Eu não vou passar pela vida sem um
arranhão. Eu vou deixar minha marca." Veja-se um trecho da importante
reportagem: "Ao decompor o anúncio quadro a quadro, os psicólogos
encontraram o que consideram ser "propaganda subliminar". Na
definição deles, propaganda subliminar é "qualquer estímulo realizado
abaixo do limiar da consciência, que produz efeitos na atividade psíquica e
mental do indivíduo". As mensagens subliminares são "remetidas
automaticamente ao nosso cérebro, em nível involuntário, inconsciente." Por
três décimos de segundo, ou seja, numa fração de tempo imperceptível para os
olhos humanos, aparece uma mulher fumando. Logo em seguida, também por três
décimos de segundo, aparece outra pessoa fumando. Se os eventuais efeitos da
chamada propaganda subliminar são cada vez mais questionados, a dúvida de
Frenandes Neto não é desprezível: "Por que a Souza Cruz incluiu no
comercial imagens que não dá para ver? Certamente, há alguma razão para
isso". A Souza Cruz alega que a responsabilidade sobre o comercial é das
diretoras do filme, Daniela Thomas e Carolina Jabor. Daniela, porém, afirma não
se lembrar dessa imagem e diz que, se ela existir, teria a função de dar ritmo
às imagens. A Adesf (Associação em Defesa da Saúde do Fumante) acha que o
Ministério Público pegou um peixe grande. Luiz Mônaco, diretor jurídico da
entidade que processa as fábricas por fraude contra a saúde pública, diz que o
comercial "é a primeira prova inconteste de que a indústria dirigia sua
publicidade para adolescentes." (CARVALHO, Mario Cesar. Indústria é
acusada e ter criança como alvo. Folha de São Paulo. Folha Cotidiano.
Domingo, 08 de setembro de 2002. p. C1).
26 Segundo Mario Cesar Carvalho, no
Brasil "e no resto do mundo, onde suas subsidiárias estão sendo
processadas por não terem alertado sobre os males do produto que fabrica, a
Philip Morris continuou a repetir nos tribunais e na imprensa, até 1999, que
cigarro não vicia nem causa câncer. Seria tudo questão de predisposição
genética. Em 2000, ao perceber que a estratégia não surtia mais efeito, a
filial brasileira da companhia adotou um argumento diametralmente oposto ao que
usara: passou a dizer que todo mundo sabia, desde o século 19, dos males do
fumo." Tal estratégia aparece nos arrazoados dos advogados que
defendem a empresa Philip Morris, utilizados como resposta à ação movida
contra ela pela Associação em Defesa da Saúde do Fumante (ADESF). (CARVALHO. Ob.cit.
p. 32).
27 Ibid. p. 59.
28 Disponível em:
<http://www.veja.com.br>. Acessado em 05/12/2003.
29 Entre a população de menor renda,
uma grande parcela dos rendimentos é gasta com cigarros, em detrimento de
outros itens prioritários, como, por exemplo, a alimentação. Este consumo
maior, somado a outras condições às quais este grupo está submetido, como
desnutrição, doenças infecciosas e do trabalho, leva a um adoecimento mais
freqüente. Convém considerar que os ambientes confinados das pequenas moradias
favorece, em muito, a inalação passiva das substâncias tóxicas por crianças,
gestantes e pessoas doentes. (Disponível em:<http://www.inca.com.br>). Acessado
em 05/12/2003.
30 Esses dados sofreram alterações. Em
recente investigação sobre a educação no Brasil, os técnicos do IBGE
encontraram um contingente de 14 milhões de pessoas – o equivalente à população
do Estado do Rio de Janeiro –, de 5 anos ou mais de idade, que jamais
freqüentaram uma sala de aula. Entre os adultos com mais de 25 anos, 10,5
milhões – o equivalente à população paulistana – nunca estudaram. Apesar do
número ter merecido destaque no estudo do IBGE, em geral a medição do
analfabetismo se centra na faixa a partir de 10 anos, pois entre crianças
menores estar alfabetizado é exceção. Mesmo assim o número é espantoso: 16,4
milhões de brasileiros de 10 anos ou mais não sabem ler e escrever. São 13,6%,
contra 20% registrados em 1991. (LEAL, Luciana Nunes; MOURA E SOUZA, Marcos de.
14 milhões nunca foram à escola. O Estado de São Paulo. Geral –
Educação, quarta-feira, 03 de dezembro de 2003, p. A12).
31 Em recente acórdão, o Desembargador
Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, em seu voto, evidenciou a negligência das
indústrias do tabaco caracterizada por sua omissão em infomar o consumidor dos
malefícios causados pelo fumo. Em importante passagem do aludido voto, destacou
o eminente jurista: "Não há dúvida de que a ré sempre foi criadora do
perigo e do risco causados pelo uso do fumo. Sempre soube e teve consciência
dos malefícios e da dependência causada pelo cigarro e sempre omitiu qualquer
informação ou ação no sentido de minimizar tais malefícios e prejuízos,
advindos tanto para o público cnsumidor quanto para o público não consumidor. Foi
necessário um verdadeiro clamor público mundial para que as empresas tivessem
desnudadas toda essa negligência, omissão ou hipocrisia em nome da
ganância." (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível
nº 70007090798, Relator Desembargador Luís Augosto Coelho Braga, julgado em 19
de novembro de 2003. Disponível em: <http//www.tj.rs.gov.br>). Acessado
em 05/12/2003.
32 CARVALHO. Ob.cit. p.
59.
33 Para muitos, a responsabilização das
indústrias do tabaco no Brasil, pelos danos advindos do consumo de seus
produtos, ainda representa tese intolerável, insustentável juridicamente. Contudo
e data venia, na maioria das vezes, aqueles que defendem tal
posicionamento partem de uma análise de pouca consistência. E tal análise nasce
quase que inconscientemente, talvez em decorrência do labor das próprias
indústrias do tabaco, que conseguiram, através de publicidades insidiosas,
inserir o cigarro no cotidiano dos homens, por meio da criação de uma imagem
benigna e extremamente sedutora do produto. Costuma-se, então, a pretexto de a
atividade de produção e comercialização de produtos fumígenos ser legalizada e
o vício ser usual (comum) na sociedade, negligenciar a interpretação técnica em
prol de uma míope visão de bom senso e coerência social. É o que se percebe,
por exemplo, nos trechos constantes no voto da relatora da Apelação Cível nº
70000144626, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em caso atinente ao
tema ora discutido. Afirmou a ilustre Desembargadora, cujo entendimento ainda é
majoritário na jurisprudência, que: "(...) parto da reflexão de que o
caso posto a julgamento é daqueles que até mesmo uma única pessoa, que viva de
acordo com as regras básicas que norteiam o comportamento médio, teria
condições de julgar e pronunciar válido veredicto." Noutra passagem,
asseverou que aquele "julgamento diz mais com lógica e bom senso do que
com tratados jurídicos." (Disponível em:
<http://www.tj.rs.gov.br>>). Vale dizer que, não obstante seu
entendimento contrário à tese ora defendida, os demais Desembargadores acabaram
por votar contra a Relatora, reformando a sentença de primeiro grau para dar parcial
provimento ao pedido formulado pelos Apelantes; a Philip Morris do
Brasil S.A. acabou condenada a reparar danos à família de um fumante morto em
razão do tabagismo.
34 O microssistema consumerista
corresponde a uma legislação jovem, adequada ao desate de diversos conflitos
com perfis novéis e destoantes daqueles para os quais o Código Civil de 1916
fora criado. Assim é que a Lei nº 8.078/90 mostra-se devidamente aparelhada
para a solução de casos concretos de responsabilização civil, envolvendo
fumantes e indústrias de cigarros. A despeito disso, as recentes decisões a
respeito do assunto, favorecendo fumantes (ou seus familiares), valem-se de
fundamentação dupla, a saber, aquela fincada no Código Civil e também no
próprio Código de Defesa do Consumidor. Mais especificamente, lançam mão os
julgadores da responsabilidade aquiliana e objetiva numa só decisão. Agem
assim, certamente, para cercar os julgados de motivação suficiente ao
convencimento das partes e da sociedade em geral, evitando, de outro lado,
discussões acerca da aplicação, ou não, do Código de Defesa do Consumidor à
espécie.
Contudo,
e mesmo diante de louváveis opiniões em contrário, a Lei nº 8.078/90, bem assim
todos os seus princípios mestres e mormente à regra da responsabilização
objetiva, mostra-se suficientemente precisa e ajustada à solução dos problemas
objeto do presente ensaio. Isto porque, o Código consumerista, em casos
tais, deve ser aplicado, mesmo que o consumidor tenha principiado o vício de
fumar décadas antes da publicação do referido Diploma legal. Já tivemos a
oportunidade de defender a tese de que a lei nova poderá ser capaz de
aplicar-se aos efeitos futuros das relações jurídicas presentes e
anteriores, originadas sob a égide e o império da lei precedente. Nada
obstante, não se deve desprezar que os efeitos já produzidos pela antiga lei
deverão ser preservados e respeitados. Os novos efeitos é que serão submetidos
à força da novel legislação. (DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do
Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 48. São
Paulo :Revista dos Tribunais, 2003. p. 180-181). Seguindo tal raciocínio,
asseveramos: "Nesse ponto, é de importância elementar a distinção entre
efeito retroativo e imediato da lei. E o próprio ordenamento jurídico
brasileiro, pelos precisos termos do artigo 6º da Lei de Introdução ao Código
Civil, discrimina-os, de modo capital, ao dispor: "A lei em vigor terá
efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido
e a coisa julgada." Isso revela que não só as situações não
definitivamente constituídas (facta pendentia), como também os efeitos
presentes e futuros dos fatos já consumados (facta praeterita), serão abarcados
pela novel legislação. Não significa tal aplicação, portanto, efeito
retroativo, mas, sim, imediato." Noutra passagem, afirmamos que os
fatos "já consumados, perfeitamente concluídos na vigência de normas
anteriores à Lei consumerista, não são, de maneira alguma, atingidos por sua
força e autoridade legislativa. Poderão, por outro lado, ter significativa
influência do Código de Defesa do Consumidor (efeito imediato) aquelas
situações não definitivamente concluídas ou os efeitos presentes e futuros
decorrentes de fatos já consumados, sempre que disserem respeito a relações de
consumo." (DELFINO, Lúcio. Reflexões acerca do art. 1º do Código de
Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, 48. São Paulo
:Revista dos Tribunais, 2003. p. 180-181). Embora nossa opinião a respeito do
tema tenha sido expressada de maneira diversa no trabalho intitulado
"Responsabilidade Civil e Tabagismo no Código de Defesa do
Consumidor", publicado pela editora Del Rey, a conclusão lá esposada
permanece inalterada. Isto é, entendemos que o Código de Defesa do Consumidor é
a Lei aplicável em ações promovidas contra as indústrias do fumo, em que se
pleiteiam indenizações por doenças tabaco-relacionadas. A Lei consumerista,
nesses casos, terá aplicação imediata porque os efeitos gerados pelo tabagismo
somente surgem anos após a data inicial de consumo de cigarros. Todas as
pessoas – ou a maioria delas – hoje acometidas por doenças relacionadas ao
fumo, iniciaram-se no vício décadas atrás, o que significa que seus efeitos
malignos (efeitos futuros) manifestaram-se após a publicação do Código de
Defesa do Consumidor, fato que, per se, motiva a aplicação imediata da
mencionada legislação.
35 Ao que tudo indica, o
amadurecimento de nossa jurisprudência não seguirá os passos vagarosos daquela
surgida nos EUA. Percebe-se isso, desde já, pela sensibilidade e riqueza dos
votos proferidos pelos eminentes Desembargadores, João Pedro Freire, Antonio
Guilherme Tanger Jardim, Adão Sergio do Nascimento Cassiano, Luis Augusto
Coelho Braga e Nereu José Giacomolli, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul. Em duas decisões (Apelações Cíveis nºs 70000144626 e 70007090798) o
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul beneficiou os familiares de fumantes
mortos em razão do tabagismo, condenando indústrias do tabaco a indenizarem os
danos suportados pelos autores. Em outra demanda (Apelação Civil nº
70000840264), aguardava-se a habilitação dos herdeiros, uma vez que o autor
falecera no desenvolver do feito; contudo, dois desembargadores já haviam
votado favoravelmente a pretensão do fumante. (Disponível em:
<http://www.tj.rs.gov.br>). Acessado em 05/12/2003.
Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6441&p=2