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Pessoa jurídica e o crédito bancário - destinatário final




Hugo Villarpando

 



01- PONDERAÇÃO INICIAL



Versa a matéria sobre o art. 2º, parte final, da Lei 8.078/90, cujo comando constitucional e relevante interesse social determinou sua inserção no mundo jurídico como NORMA DE ORDEM PÚBLICA.

Destarte, mais importante que as conclusões a serem alcançadas é a eleição das bases para interpretação da matéria. Essa escolha revelará conformidade ou contraposição ao fim social buscado pela lei, bem como a opção de aproximar ou afastar do interesse público preconizado.



02- A MATÉRIA E O DEBATE



O problema envolve a possibilidade de pessoas jurídicas serem beneficiárias da Lei nº 8.078/90 (Código do Consumidor), como último elo de uma relação de consumo (serviço de fornecimento), que sempre se inicia em um fornecedor e, obrigatoriamente, termina em um consumidor.

Sobre a matéria se firmaram duas correntes principais de interpretação: Minimalistas e Maximalistas.

Os Minimalistas apontam que a finalidade profissional das empresas faria que o crédito bancário recebido se incorporaria em seu processo de produção ou prestação de serviços, como um insumo, e dessa forma repassado a um destinatário final, recebedor desse produto ou serviço. Também afastam as pessoas jurídicas por considerá-las aptas a contratar em igualdade de condições com os fornecedores. Havia, ainda, parcela dos minimalistas, notadamente aqueles ligados a instituições financeiras, que defendiam a impossibilidade de consumir dinheiro, cujas cédulas jamais teriam destinatário final, pois sempre ficariam em circulação, chegando até a afirmar que o mútuo bancário não seria enquadrável como relação de consumo.

Os Maximalistas indicam que o legislador concebeu tratamento absolutamente simétrico, entre pessoas físicas e jurídicas, no Código do Consumidor e na Constituição, inexistindo distinção de qualquer espécie, bem como a pretendida exclusão pelo caráter profissional não encontrar suporte na lei brasileira, que nesse ponto divergiu dos autores do anteprojeto cuja inspiração se deu na Legislação Francesa. Afirmam, ainda, que a índole constitucional da defesa do consumidor, quer como garantia fundamental (art. 5º, XXXII CF), quer como princípio básico de todo o Sistema Financeiro Nacional (art. 170, V CF), determinou a inserção de um sistema legal onde a fiel observância das normas está indissociavelmente ligada a própria ORDEM PÚBLICA e ao INTERESSE SOCIAL, imprimindo sempre a interpretação ampliativa do universo de consumidores (art. 29 CDC), além da gênese legal (art. 3º, § 2º CDC) na tipificação das relações de fornecimento de crédito bancário como matéria de natureza jurídica consumerista.



03- A RELAÇÃO MATERIAL E O FIM SOCIAL DA LEI, NA INTERVENÇÃO ESTATAL

Sábia é a assertiva de que: quando o direito se distancia da realidade, essa se vinga e se afasta do direito.

O Estado Constitucional moderno, impelido por reivindicações sociais históricas e diante da impossibilidade de negá-las, vêm acentuadamente intervindo nas relações econômicas originalmente privadas, mas socialmente relevantes, no fito de discipliná-las, uniformizá-las e harmonizá-las, prevenindo conflitos e desequilíbrios que comprometam o funcionamento da macroeconomia.

Essas relações sociais microeconômicas, se apresentarem distorções no mecanismo de circulação de riquezas, resultam em concentração, de um lado, e pauperização, de outro lado. Como são repetidas de forma estandardizadas refletiriam a mesma distorção para a macroeconomia, vulnerando o processo de circulação de riquezas no qual se monta toda a civilização com sua estrutura social e estatal

O processo civilizatório, na medida que produz grandes aglomerações humanas padroniza diversas relações sociais entre seus membros, que embora possuam natureza variada, apresentam elementos comuns sendo destacados para essa exposição os seguintes: a) a repetição, em larga escala, das relações econômicas entre as pessoas; b) o desenvolvimento de atividade profissional como meio de aquisição de bens e circulação de riquezas, e c) a interdependência dessas relações econômicas, com conseqüências no equilíbrio social.

Exceção feita aqueles que exercem atividades de absoluta subsistência ou auto-sustentação, todos os demais integrantes de uma sociedade dependem da constante aquisição dos bens necessários a sua sobrevivência e desenvolvimento econômico-profissional.

Formou-se, do agigantamento das relações econômicas sociais, o denominado MERCADO DE CONSUMO, onde uns oferecem profissionalmente para outros que, possuindo capacidade econômica, adquirem bens e/ou utilidades mediante troca financeira, propiciando a circulação de riquezas que mantém viva toda a estrutura social.

Há um fato importantíssimo a ser, de logo, extraído dessas movimentações existentes no MERCADO DE CONSUMO: via de regra a aquisição de bens no mercado de consumo é feita por quem desenvolve atividade profissional ou econômica, quer pessoa física ou jurídica, e deles necessita para continuar a desenvolvê-la.

Outrossim os profissionalmente inativos, por não adquirirem capacidade financeira, ficam a margem do mercado de consumo, sendo excluídos.

Vê-se, pois, que o desenvolvimento de atividade profissional ou econômica é elemento próprio e natural daquele que adquire bens no mercado de consumo

.Muitos equivocadamente excluem, das pessoas físicas, o caráter eminentemente profissional ou econômico, especialmente presente no atual estágio da civilização, olvidando que o comércio é uma atividade de circulação de riquezas, difundida através da exploração das capacidades individuais das pessoas humanas, que utilizando suas próprias energias e intelectos, transformam bens da natureza possibilitando seu uso ou oferecem suas próprias habilidades para execução de utilidades, isso como forma de obter capacidade financeira.

Apropriadamente denominada "Sociedades de Massas", a civilização moderna funciona como uma grande engrenagem de movimentos repetitivos e interligados, sendo essa forma funcional extremamente acentuada nesses tempos de "globalização".

Considerada a recorrência das relações econômicas nas SOCIEDADES DE MASSA e a sua inserção nos mecanismos de circulação de riquezas do MERCADO DE CONSUMO, revela-se, mesmo sob apreciação sumária, a indispensabilidade de uma INTERVENÇÃO hierárquica para o fim de salvaguardar o equilíbrio social, dentro de condições mínimas e/ou máximas.

Houve tempo em que se acreditara que, conferindo total liberdade de ação aos agentes do MERCADO DE CONSUMO, haveria de ser alcançado uma "equilíbrio natural" entre suas forças, entretanto a história veio a demonstrar o contrário.

Em todo o mundo, com maior ou menor atuação, os Estados Nacionais se inseriram como partícipes reguladores nos MERCADOS DE CONSUMO, no fim último de equilibrar relações, na microestrutura social, e como conseqüência harmonizar o funcionamento econômico, na macroestrutura.

O reflexo desse intervencionismo Estatal na economia, dentro do campo do Direito, foi reconhecer uma realidade óbvia e ululante, qual seja, que há, e sempre houve, diferentes forças entre os agentes que atuam na economia de mercado, e que o escopo do equilíbrio e harmonia social somente seria atingido com tratamentos diferenciados para os agentes, pelo que se afastou o princípio da igualdade formal, e irreal, entre pessoas.

Fortalecer a parte fraca do elo de circulação de riquezas, evitando que os bens se concentrassem somente em um dos lados da balança comercial das relações econômicas-sociais, após as sucessivas crises econômicas e guerras globais, passou a ser uma necessidade existencial para o equilíbrio e também potência do mercado de consumo, hoje, o verdadeiro tesouro de qualquer nação, até porque o desequilíbrio e fragilidade causam sucessivas retrações no fluxo de riquezas, fazendo agonizar toda a estrutura social.

Evitar a canibalização no mercado de consumo, onde o elo mais forte da circulação de riqueza extenua financeiramente o elo mais fraco é o fim social específico da Intervenção Estatal no mercado de consumo.
Como em todo movimento circular, o exaurimento financeiro de um dos elos do mercado de consumo se volta contra quem o provocou, empobrecendo indistintamente toda a teia social, inclusive os pilares econômicos do próprio Estado.

O fim social da lei de intervenção estatal na economia, quando se faz necessário, decorre de um movimento de auto-preservação. Ausente o Estado, o elo mais forte do mercado de consumo naturalmente mutila e aniquila o elo mais fraco, sugando desse tudo que pode oferecer, sem o cuidado de lhe preservar sequer a vida. A presença do Estado trata de preservar o agente mais frágil do mercado de consumo, por reconhecer nesse a seiva vital dos movimentos de circulação de riquezas.

Há que se registrar que igualmente fundamental para oferta no mercado de consumo é a livre iniciativa, a liberdade econômica motora do abastecimento no mercado de consumo. Entretanto, há muito já se derrogou a idéia de tal direito ser ilimitado, em uma civilização onde o entrechoque do conjunto de liberdades individuais confere freio natural, limites entre si, demonstrando que a uma liberdade sempre acaba onde se inicia a dos outros.
Somente uma força hierarquicamente superior pode, de fato, garantir que todas a liberdades prevaleçam, e não apenas umas em detrimento das outras. Sob essa ótica é possível entender como inevitável a intervenção Estatal, porque à evolução da humanidade fica repelida a exploração, o enriquecimento as custas do empobrecimento, sendo também a presença do Estado nas relações de natureza privada a única forma de se preservar as liberdades individuais de todos, isso ao fazer o necessário nexo dessas com as responsabilidades sociais.
O equilíbrio das relações econômicas na circulação de riquezas é o fim social da Intervenção Estatal nas relações privadas, que pela magnitude e importância vital a sociedade, representam INTERESSE PÚBLICO. Qualquer desequilíbrio distorce o círculo das trocas de bens, afetando existencialmente todos os seus integrantes, mais cedo ou mais tarde.



04- A RELAÇÃO MATERIAL ESPECÍFICA – SERVIÇO DE FORNECIMENTO DE CRÉDITO BANCÁRIO

Mas o que é mesmo o serviço financeiro de fornecimento de crédito bancário?

A resposta, porque expressamente tipificada, extrai-se com o auxílio da definição legal da atividade bancária, contida no art. 17 da Lei 4.595/64:

"Art. 17- Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros."

Exatamente por tratar-se de uma atividade de intermediação, é que o Código do Consumidor, ao definir serviço, no parágrafo 2º do seu artigo 3º, ali enquadrou o fornecimento financeiro de crédito bancário:
"§ 2º - Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes de relações de caráter trabalhista.
Materialmente, a relação de consumo no fornecimento de crédito bancário se inicia com o fornecedor captando dinheiro (moeda nacional ou estrangeira) no mercado de investimentos, ou por depósitos, ou por fornecimento de créditos; consolidando-se com o repasse desse valor como crédito a um cliente/consumidor, que não repetirá essa operação de captar e repassar, sob pena de efetuar a revenda do serviço, descaracterizando-se como destinatário final.

Assim o foco da relação de consumo dos créditos bancários é esse serviço de intermediação (captar e repassar), o que não se confunde com o bem obtido – dinheiro -, da mesma forma que também não se confunde os serviços advocatícios com o papel das petições, ou os serviços de engenharia com tijolos e cimento.

A atividade de serviços é de meio, de utilidade, e seu consumo se compreende entre o início e o fim da utilidade fornecida, pelo que não se pode estender o foco de interpretação dessa relação consumerista típica para além do serviço e sua utilidade.

 O imaterial não se funde com o material, devendo ser analisados como compartimentos estanques que são, separando o que deve ser o objeto da interpretação legal, daquilo que extrapola o conteúdo dispositivo.

05- O ART. 29 DO CDC E SEU PAPEL NA INDISPENSÁVEL UNIFORMIZAÇÃO, HARMONIZAÇÃO E EQUILÍBRIO NO MERCADO DE CONSUMO

"Art. 29- Para os fins deste capítulo e do seguinte, equiparam-se aos consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas."

(Código do Consumidor)

Muitas interpretações jurídicas são dadas as letras do dispositivo legal supra, entretanto, há um completo esquecimento sobre seu larguíssimo conteúdo e efeitos para macroeconomia, justamente o que determinou a inserção da defesa do consumidor como fundamento básico da Ordem Econômica e Financeira Constitucional (art. 170, V CF/88).
Maximalistas sustentam que o art. 29 CDC é uma determinação expressa e ampla para abranger todos como consumidores, quer pessoa física ou jurídica, autorizadora de interpretação excepcionalmente extensiva para normas de ordem pública. Portanto, cumprir menos a lei eqüivale a descumprí-la.
Já os minimalistas, ou negam simplesmente tal comando ou, quando acatam, apresentam nova discriminação onde o texto da lei não a faz, opondo que tal art. 29 CDC não pode ser utilizado como panacéia para todos os males, devendo ser excluídas aquelas pessoas jurídicas que não comprovem a VULNERABILIDADE na relação com instituições financeiras.
Não é de espantar que frente a tantos critérios de exclusão criados pelos aplicadores, passados dez anos do Código de Defesa do Consumidor, os contratos bancários de consumo persistam com tantas cláusulas e práticas abusivas, a revelia da lei.

A realidade material esquecida pelo direito também o esquece.

É de se anotar que o Código do Consumidor trouxe notáveis avanços nas relações com escolas privadas, planos de saúde, construção civil, garantia de produtos e tantas mais onde o tratamento conferido ao mercado consumidor é uniforme.

Entretanto, não se dá o mesmo quando a matéria é relação de consumo bancária, muito ao contrário, os contratos continuam tão ou mais leoninos que antes da Lei nº 8.078/90.
Interpretar que a mesma relação material (contratos bancários), inserida em um contexto de relações estandardizadas (sociedades de massas), pudesse ser diferenciada para pessoas físicas, que teriam proteção legal consumerista, em contraposição ao alijamento das pessoas jurídicas, resulta em monumental equívoco, que termina por inviabilizar a efetiva proteção preconizada pela ordem pública.
Tal interpretação excludente das pessoas jurídicas, ao invés de proteger pessoas físicas, na lógica perversa do capitalismo selvagem, termina por excluí-las do mercado de consumo bancário, ou não a diferenciam do trato leonino.
Práticas estandardizadas exigem disciplina que alcance todos aqueles a elas expostas. Trata-se da construção de uma "represa" contra práticas danosas, onde um único "furo" no represamento dessas práticas fatalmente derrubará a contenção legal, ou nem mesmo possibilitará a uniformização das condutas que afastariam os abusos.
É claro que VULNERABILIDADE é um elemento importantíssimo, mas não deve ser interpretado como previamente excludente, já que a pessoa física poderia ser Bill Gates, o homem mais rico do mundo, e a pessoa jurídica uma Encol, grande construtora falida, ou mesmo o açougue da esquina.
Em países com déficit crônico em seu orçamento, o que os torna refém dos juros estratosféricos, toda sociedade é submetida indistintamente a esse mesmo jugo, fazendo com que o estado de vulnerabilidade seja regra geral, não estando setorizada apenas nas pessoas física.

 Com exceção daqueles movidos por condutas criminosas, exceções de regra portanto, todo aquele exposto as mesma práticas de consumo, ao buscar a tutela judicial é presumidamente VULNERÁVEL, quer no momento de assinatura dos contratos bancários, quer em momento superveniente, e a teor do art. 6º, inciso V do CDC, tendo o direito fundamental de buscar modificação e adequação do contrato, restabelecendo o equilíbrio perdido, desde o início ou no curso da relação.

 As distorções ocorrentes no trato com bancos decorrem, historicamente, do absurdo e inconstitucional tratamento privilegiado conferido pelos Poderes Estatais às instituições financeiras, que tudo podem fazer o que aos demais entes da sociedade é vedado (juros ilimitados, capitalização, juros embutidos em seus malfadados mecanismos de atualização de capitais, resultados e lucros sobre as operações absolutamente extorsivos, etc)

. Não se defende que os bancos tenham que suportar prejuízos, mas que ninguém tenha que suportá-los para que só os bancos lucrem.

A realidade confere avisos, como o estrondoso lucro obtido pelas instituições financeiras, ano a ano, especialmente no episódio da crise gerada pela ALTA DO DÓLAR havida em JANEIRO/1999, acarretando imediata recessão em todos os segmentos da economia nacional. Contraditoriamente, os bancos tiveram, no mesmo período o maior lucro obtido na história.

Tratamentos excludentes e desigualitários explodem sempre com conseqüências desastrosas para a maioria ESTANDARDIZADAMENTE VULNERÁVEL, e aí se percebe, nas crises, que não há mesmo diferença entre pessoas jurídicas e físicas, como nos CONTRATOS DE LEASING EM DÓLAR, onerados excessivamente por causa superveniente, causando graves e indistintos prejuízos.
Afinal, se os prejuízos são indistintamente socializados no mercado de consumo, não há razoabilidade em negar o benefício da proteção consumerista aqueles expostos às mesma práticas.

06- DESTINATÁRIO FINAL – A LEI – USO DE LINGUAGEM TÉCNICA OU COMUM?

O pomo da discórdia entre as duas correntes consumeristas, MAXIMALISTAS e MINIMALISTAS é a expressão "destinatário final", contida no art. 2º do Código do Consumidor:
"Art. 2º- Consumidor é toda pessoa física e jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final."

Antes de extrair as conseqüências do texto legal é necessário identificar que linguagem é empregada pelo legislador e o destinatário da norma: TÉCNICA ou COMUM?

Havida por comando constitucional expresso (art. 48 do ADCT), não há dúvidas quanto ao reconhecimento da magnitude da matéria consumerista pelo legislador constituinte, e como tal, passou a constar como direito individual fundamental (art. 5º, XXXII), além de imantar-se como pilar essencial do sistema financeiro e econômico nacional (art. 170, V).

 Constatada a gênese constitucional, a forma de interpretação da linguagem empregada pelo Código de Defesa do Consumidor deve reconhecer o emprego de linguagem comum, especialmente destinada a perfeita compreensão e difusão entre os seus beneficiários, conforme se transcreve:
"As palavras empregadas na Constituição devem ser entendidas em seu sentido geral e comum, a menos que resulte claramente de seu texto que o constituinte quis referir-se ao seu sentido técnico-jurídico."
(in "Interpretação e Aplicação da Constituição" – Luis Roberto Barroso citando Linares Quintana – Edt. Saraiva – pag. 121)

A adoção de tal princípio de interpretação é fundamental para convergência ou afastamento quanto ao conteúdo das disposições do Código do Consumidor.



07- PERPLEXIDADES E CONSTATAÇÕES SOBRE O TEMA – MINIMALISTAS vs MAXIMALISTAS

Os interesses em questão são, hoje, de um lado os consumidores pessoas jurídicas e do outro as instituições financeiras.
No passado recente, as instituições financeiras defendiam a impossibilidade de se consumir cédulas, o "produto" fornecido, que circulam sempre, jamais tendo um destinatário final.

Como se tratava de serviço e não produto, com o auxílio dos comentários de Clóvis Beviláqua sobre o art. 51 do Código Civil, constatou-se que dinheiro se consome juridicamente, ao extrair-se sua utilidade sem atingir a substância. Portanto, dinheiro se consome sem destruição da cédula.

Houve também argüição de que os bancos, por obedecerem a legislação especial quanto as suas operações financeiras, não estariam submetidos as regras do Código Consumerista.

Também se superou a tese excludente devido a expressa disposição do texto constitucional, que fundamentou o sistema financeiro nacional sobre os pilares da defesa do consumidor (art. 170, V CF), além do que, prevendo as pressões contrárias a implementação da Lei nº 8.078/90, o legislador contemplou especialmente as operações de crédito bancário no §2º do seu art. 3º, dispondo claramente que se tratava de uma relação de consumo.
Em decorrência dessas constatações, o Superior Tribunal de Justiça pacificou, em todos os seus julgados sobre a matéria, o enquadramento das operações de crédito bancário como uma relação de consumo, o que confere benefícios legais às pessoas físicas, indelevelmente classificadas como consumidoras.
Entretanto, permanece uma divergência, entre as 3ª e 4ª Turmas do STJ, quanto a extensão do mesmo benefício legal às pessoas jurídicas, a primeira adotando a classificação como consumidoras e a segunda negando, embora também já possua um precedente anterior admitindo o benefício da lei consumerista.
A pomo da discórdia está na interpretação da expressão "destinatário final".
Os minimalistas recorrem a chamada "Teoria dos Insumos" para indicar que pessoas jurídicas receberiam o crédito bancário e o inseririam em seus produtos ou serviços, que, por sua vez, seriam lançados ao mercado de consumo, isso em decorrência da utilização profissional do crédito, além de compreenderem que a força econômica das pessoas jurídicas lhes retiraria a vulnerabilidade nas relações com bancos.
É importante ressaltar o fato de que os minimalistas, donde se destacam os elaboradores do anteprojeto da Lei do Consumidor, sofreram forte influência do Sistema Francês de Defesa do Consumidor, que opondo-se ao Sistema Alemão, excluíam pessoas jurídicas do pólo dos consumidores, conforme comentários de JOSÉ GERALDO BRITO FILOMENO:

"O traço marcante da conceituação de ‘consumidor’, no nosso entender, está na perspectiva que se deve adotar, ou seja, no sentido de se o considerar como hipossuficiente ou vulnerável, (...).
Em razão de tais considerações é que discordamos da definição de ‘consumidor’ concebida por Othon Maria Sidou, quando também considera as pessoas jurídicas com tal para fins de proteção efetiva (...).
E isso pela simples constatação de que dispõem as pessoas jurídicas de força suficiente para sua defesa (...).
Prevaleceu, entretanto, a inclusão das pessoas jurídicas igualmente como "consumidores" de produtos e serviços, embora com a ressalva de que assim não são entendidas aquelas como destinatárias finais dos produtos e serviços que adquirem, e não como insumos necessários ao desempenho de sua atividade lucrativa."

(in "Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto" – Edt. Forense Universitária – 3ª Ed. – pags. 26/27

 Primeiramente é constatável que a posição defendida pelo Autores do anteprojeto, quanto a exclusão completa das pessoas jurídicas do pólo consumidor foi superada na casa legislativa brasileira, que optou por tratar indistintamente pessoas físicas e jurídicas, como consumidoras.

A tese de que pessoas jurídicas não são vulneráveis nas relações com bancos é tão equivocada quanto a igualdade formal entre as pessoas, preconizada no Código Napoleônico. A realidade material tratou de mostrar, inclusive nestes tempos de CRISES ASIÁTICAS, RUSSA e BRASILEIRA que nem mesmo os Estados Nacionais resistem aos "ataques especulativos" provocados pelas financeiras, ficando evidenciada a posição de absoluta VULNERABILIDADE do consumidor de crédito bancário, independente da sua magnitude e força. Basta precisar do crédito que haverá de se submeter a condições, muitas vezes, impossíveis de cumprimento, não importando que seja a maior rede de magazine do país, o rei da soja ou a ex-maior rede de supermercados do nordeste. 

Assim, a recusa da vulnerabilidade nas pessoas jurídicas é uma ficção formal de que sempre sejam fortes para propiciar sua própria defesa, algo tão inaceitável e fugidio da realidade quanto fora a igualdade formal entre os indivíduos no lançamento de suas vontades nas relações inseridas no mercado de consumo.

Também pela caracterização profissional das atividades desenvolvidas pela pessoa jurídica, é tentada a exclusão dessa dos dispositivos do Código Consumerista, lavrando mais um equívoco que se subdivide em duas etapas:

 A primeira etapa desse equívoco concerne a própria natureza dos agentes integrantes do mercado de consumo, onde, em regra, todos desenvolvem atividade profissional, inclusive pessoas físicas, como condição de auferir receita e inserir-se no mercado de consumo com poder de compra.
Quem não exerce atividade profissional, só excepcionalmente acessa o mercado de consumo, ficando dele excluído.

Assim, profissionalismo é requisito básico para acessar esse mercado, não podendo, pois, ser elemento de exclusão, pois excluiria tanto pessoas físicas quanto jurídicas.

Perplexidades se extraem da visão sobre um profissional humano, que necessitando de energia para seu corpo trabalhar, adquire um prato de comida, consumindo-o. Pela tese minimalista, o caráter profissional deveria excluir o trabalhador, pois a comida seria um "insumo".



Numa visão jurídica, belíssimo exemplo dessa perplexidade é fornecida por Luiz Antônio Rizzato Nunes, ao discorrer sobre um mesmo tipo de caneta adquirida por ele, como professor, e seu aluno:

"No momento em que ingressamos na sala, minha caneta tornou-se bem de produção; a dele, bem de consumo.(...)

Digamos que no intervalo eu coloque minha caneta no bolso do paletó e ele no bolso de seu paletó. Dez minutos depois as canetas vazam, manchando e inutilizando ambos os paletós.

De onde se extrairia o princípio lógico ou jurídico a garantir a ele como consumidor o direito de pleitear indenização com base na responsabilidade civil objetiva do fabricante (art. 12 CPC), e a mim o direito de pleitear também indenização, mas com base na responsabilidade civil subjetiva do regime privado (art. 159 do Código Civil)?



Isso não só seria ilógico como feriria o princípio de isonomia constitucional: além do mais, não está de acordo com o sistema do CDC."



(in "Comentários ao Código de Defesa do Consumidor – parte material" – Edt. Saraiva – pag. 84)

E não está de acordo com o sistema do CDC porque, ao serem fixadas regras de equilíbrio para o mercado de consumo, exige-se que todos aqueles que o acessem sejam tratados de igual forma, ou haverá desigualdade de tratamento acarretando o desequilíbrio entre os elos que compõem o pólo dos consumidores.

No caso dos bancos é fácil vislumbrar que, se pessoas físicas forem protegidas e as jurídicas relegadas, os lucros serão maiores com as segundas, e os "problemas" legais maiores com as primeiras. Poderia se estar caminhando para a exclusão das pessoas físicas no mercado de crédito bancário. Ao invés de proteger, a interpretação discriminatória excluiria as pessoas físicas.



A segunda etapa do equívoco na tentativa de excluir pessoas jurídicas pelo aspecto profissional de sua atividade é a adoção de princípio não albergado na lei brasileira, conforme é revelado por João Batista de Almeida:

"3) Por fim, resta analisar a tentativa de restrição que se coloca em relação à finalidade da aquisição ou utilização. Diz Benjamim que, ‘na França, o projeto de Código de Consumo, elaborado sob a orientação do Prof. Jean Calais-Auloy, propõe que consumidores "são as pessoas físicas ou jurídicas que obtêm ou se utilizam de bens ou serviços para um uso não profissional (art. 3º)"’ . Ora, no Brasil tal restrição não teria como vingar. Pela definição legal de consumidor, basta que ele seja o "destinatário final" dos produtos ou serviços (CDC, art. 2º, incluindo aí não apenas aquilo que é adquirido ou utilizado para uso pessoal, familiar ou doméstico, mas também o que é adquirido para o desempenho de atividade ou profissão, bastando, para tanto, que não haja finalidade de revenda. O advogado que adquire livros jurídicos para bem desempenhar sua profissão é, sem dúvida, destinatário final dessa aquisição, e, como tal, consumidor segundo a definição legal. Não há razão plausível para que se distinga o uso privado do profissional; mais importante, no caso, é a ausência de finalidade de intermediação ou revenda. Da mesma forma, já se decidiu que ‘empresa produtora de celulose é consumidora, nos termos do art. 2º, caput, da Lei 8.078/90, de formicida para aplicação em suas florestas’ (RDC, 20:171)."

(in "A Proteção Jurídica do Consumidor" – Edt. Saraiva, pag. 40).



Fica claro que as restrições a integração das pessoas jurídicas no pólo dos consumidores, previstas nas legislações exteriores que influenciaram o anteprojeto do Código do Consumidor, foram afastadas por opção do legislador nacional.

Assim, as teses restritivas não têm qualquer respaldo legal.

Embora tal conclusão afaste por inteiro a chamada teoria dos insumos, é importante destacar algumas de suas contradições.
A primeira contradição está na adoção do sentido técnico-econômico na expressão destinatário final, o que afasta da linguagem comum adotada pelo legislador ao dar corpo a disciplina de Defesa do Consumidor, que também é matéria constitucional.

Ao invés de interpretar a expressão "destinatário final" como uma vedação a revenda do produto ou serviço, onde necessariamente ocorre a transferência desse bem consumível ao verdadeiro consumidor final, socorreram-se os minimalistas em uma intrincadíssima acepção, das ciências econômicas, denominada INSUMOS:
(Dicionário Michaelis: INSUMO - conceito econômico, originário do inglês input, que designa todas as despesas e investimentos que contribuem para obtenção de determinado resultado, mercadoria ou produto até o acabamento ou consumo final. Insumo (input) é tudo aquilo que entra; produto (output) é tudo aquilo que sai.
A linguagem utilizada pelo Lei 8.078/90, até porque se dirige ao universo dos consumidores, é COMUM, sendo descabido extrair conceitos técnicos para excluir onde o legislador optou por não fazê-lo.
Segunda contradição se apresenta na dedução prática da teoria dos insumos.
Ao tentar excluir os créditos bancários de consumo final pelo cliente/mutuário pessoa jurídica, deixa de mostrar a indispensável passagem, repasse desses serviços creditícios para o pretenso consumidor final dos produtos ou serviços do mutuário.  

Ora, a relação de serviço de crédito se circunscreve entre o Banco e o mutuário/pessoa jurídica, não atingindo os clientes dessa, o que comprova que consumo houve, mas dentro da pessoa jurídica.
Por essa razão é impossível a teoria dos insumos demonstrar o destinatário final, além da própria pessoa jurídica.
Terceira contradição advém do fato da teoria dos insumos desconsiderar a mudança jurídica do regime e natureza dos capitais envolvidos, pois limita-se a atender uma realidade econômica, que não se confunde ou satisfaz com preceitos jurídicos.
Exemplo: o crédito recebido do Banco tem exaurida sua utilidade para o consumidor/mutuário, ao pagar salários, nascendo outro regime jurídico completamente diverso, de natureza trabalhista. Por evidente, o trabalhador nada deverá ou poderá reclamar da instituição financeira, porque o crédito bancário não existe mais.
As finalidades econômicas da teoria dos insumos não atendem ou se adequam a interpretação jurídica.


08- CONCLUSÕES



A) As normas do código de defesa do consumidor enfeixam um sistema para salvaguardar o equilíbrio do mercado de consumo.

B) A circulação de riquezas que movimenta o mercado de consumo, que funciona como uma grande engrenagem, depende existencialmente do relacionamento equilibrado entre seus agentes;

C) Salvaguardar o equilíbrio no mercado de consumo justifica a intervenção Estatal, pois da sua preservação depende o funcionamento da estrutura social;

D) O Código do Consumidor é um dos mais relevantes instrumentos para equilíbrio do mercado, pois ao proteger o vulnerável, preserva a seiva vital que nutre o fornecedor.

E) No plano material, para exercitarem aquisições no mercado consumidor, tanto as pessoas físicas quanto jurídicas, via de regra, devem exercer atividade profissional como meio de aquisição de capacidade financeira e condição de acesso ao mercado de consumo.

F) Excluir quem pratique atividade profissional é aniquilar a existência de consumidores.

G) Ao contrário da interpretação dos minimalistas, o Código não distingue pessoas físicas ou jurídicas, tendo também optado por não excluir consumidores pelo exercício de atividade profissional.

H) A linguagem adotada pela lei deve ser interpretada em seu sentido comum, nunca em sentido técnico-econômico.

I) A expressão destinatário final, da lei, aponta vedação de revenda do produto ou serviço.

J) A tipificação dos serviços de crédito bancário como relação de consumo decorre da lei.

L) O conceito econômico da teoria dos insumos não atende a ciência jurídica, na medida que não contempla demonstrar quem seria o suposto destinatário final, além da pessoa jurídica/mutuária, além de não atentar para a mudança de regime jurídico do crédito bancário, após a fruição de sua utilidade por essa.

M) O mercado de consumo exige tratamento uniforme para todos os seus agentes, no fim de alcançar equilíbrio na circulação de riquezas.

N) A interpretação maximalista converge com os fins sociais da lei.



Retirado de: http://www.infojus.com.br/webnews/noticia.php?id_noticia=746&. Acesso em: 09/03/05.