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O cigarro e a bebida no Direito brasileiro - ("Não experimenta!")

Daniel Christianini Nery

 

 

Já é de longa data a polêmica sobre a possibilidade ou não da responsabilização civil dos fabricantes de cigarros ou bebidas alcoólicas pelos malefícios causados aos seus consumidores. Tanto aqui quanto em outros países, as decisões sobre o tema causam discussões no mundo jurídico, não importando qual seja o veredicto.

 

Pois a situação começa a tomar maiores contornos após a decisão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que condenou conhecida empresa fabricante de cigarros a pagar o equivalente a 3.200 salários mínimos (cerca de R$760.000,00), aos familiares de um ex-fumante que morreu por câncer no pulmão, a título de indenizações por danos morais e materiais. Esta é a primeira decisão sulista condenatória sobre este tema, que merece aqui algumas considerações.

 

Trata-se de tema extremamente conflituoso. De um lado, a proteção ao consumidor, à saúde e à vida do cidadão. Do outro, a livre iniciativa, livre concorrência, as questões políticas e econômicas. Qualquer decisão acerca da responsabilidade civil das empresas de tabaco e bebidas abre precedentes históricos.

 

Mesmo na decisão mencionada, os argumentos são muito equivalentes. O primeiro voto, pela não concessão da indenização, levou em consideração o comportamento da vítima, que fumou por 40 anos, demonstrando haver CULPA EXCLUSIVA DO CONSUMIDOR, indicando o livre arbítrio deste, que havia assumido o risco de desenvolver tais doenças típicas do uso habitual do cigarro. Além disso, explicitou a julgadora que a vítima sequer tinha como hábito outras práticas saudáveis de vida, o que caracterizava amplamente a assunção do risco de desenvolver uma moléstia grave. Por fim, considerou que a produção e comércio de fumígeros tratam-se de atividade plenamente lícita, impossibilitando assim a indenização por ato ilícito, pleiteada pelos familiares do fumante falecido.

 

Já os votos dos demais julgadores foram em sentido contrário! O Desembargador Adão Cassiano julgou haver OMISSÃO DO FABRICANTE, que pelo menos desde os anos 50 não informava os verdadeiros malefícios decorrentes do uso de seu produto, tais como o vício ou a potencialização de doenças. O julgador indicou que tanto o Código Civil de 1916 (artigo 159) quanto o atual Código Civil (artigos 186 e 927) prevêem a responsabilização daquele que é omisso e causa o risco. Embora a empresa praticasse atividade lícita, sabia de antemão os riscos e a nocividade do produto, ainda assim comercializando-o, caracterizando o dolo. Por fim, esta omissão do fabricante, somada à consciência do perigo do produto, foi totalmente mascarada por uma PUBLICIDADE que aliciava e enganava, retirando do indivíduo a totalidade de seu livre arbítrio, tendo em vista a publicidade apelativa.

 

Ao final, o voto de desempate, que concordou com as colocações jurídicas acima destacadas, e acrescentou o fato de que no momento em que o indivíduo compra um cigarro, estabelece um contrato injusto com o produtor, pois a vontade fica viciada, tornando o consumidor vítima do produto.

 

Faremos uma breve relação entre princípios constitucionais, leis esparsas e a decisão acima transcrita, com o intuito de amealharmos maiores argumentos jurídicos.

 

É de amplo conhecimento que as grandes multinacionais, detentoras de marcas de alcance global, atuam em todos os locais do planeta. Esta abrangência se traduz pelo número de consumidores atingidos e, principalmente, pelo grande montante investido em publicidade, graças ao poderio econômico, visando formação de público consumidor e indução deste público ao consumo cada vez maior desses produtos.

 

No que tange aos cigarros e também à bebida alcoólica, a situação adquire nuances diferenciados. A fabricação, venda e publicidade de cigarros e bebidas podem ser considerada, em alguns casos específicos, flagrantemente contrária aos dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.

 

Explica-se: Nossa Constituição Federal, ao tratar dos Princípios Fundamentais, preceitua, em seu artigo 1º, que nosso país tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana (inciso III); e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inciso IV). Também indica que nosso país terá como objetivo fundamental promover o bem de todos, sem qualquer forma de discriminação (vide artigo 3º, inciso IV CF).

 

O próprio “caput” do artigo 5º de nossa Carta Magna invoca, entre os direitos e deveres individuais e coletivos, a inviolabilidade do direito à vida, à saúde e à segurança. Enquanto isso, o artigo 5º, inciso XXXII indica que o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor.

 

Já os direitos sociais, proferidos no art. 6º de nossa Constituição, conclamam o direito à saúde e à segurança.

 

Ora...Interpretando todos os preceitos acima transcritos, pode-se observar claramente a existência de uma limitação ao princípio da livre iniciativa, por submissão a alguns “valores sociais”. A não observância destes ditames legais fará com que esta livre iniciativa se caracterize como abusiva ou ainda irregular.

 

Normalmente, sofremos constantes limitações em nossos direitos individuais, momentos em que uma "conveniência pública" sobrepõe-se à autonomia privada, em função de um "interesse social". Como exemplo citamos a obrigatoriedade de uso de equipamento de segurança no trabalho, os limites de velocidade nas rodovias ou a obrigatoriedade da utilização de cintos de segurança, por exemplo. São os chamados “valores sociais”, princípios que regem a atividade estatal, e que, por vezes, pode até eliminar ou diminuir o interesse do particular.

 

Estes “valores sociais”, já previstos no primeiro artigo constitucional, são devidamente tutelados em diplomas legais extravagantes, como o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90), a Lei Antitruste (Lei 8.884/94) o próprio Código Penal.

 

Tanto a livre concorrência, quanto a defesa do consumidor, são bens que a ordem econômica brasileira prima, mas em medidas diferenciadas, de forma que um deles pode ser sacrificado em decorrência do outro. E o Estado sempre sacrificará a livre concorrência em favor da proteção ao consumidor.

 

Destarte, a verificação dos “valores sociais” possui ampla importância em todo o ordenamento jurídico, que se prova pela Lei de Introdução ao Código Civil que indica, em seu artigo 5º:

 

"Na aplicação da lei o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

 

Partindo deste pressuposto de tutela aos “valores sociais” de saúde, segurança e vida e da tutela da defesa do consumidor em detrimento da livre concorrência, a Lei nº 9.294/96 dispõe sobre as restrições à propaganda de produtos fumígeros e bebidas alcoólicas. Referida lei, em seu artigo 3º diz que a propaganda comercial dos produtos não pode sugerir o consumo exagerado ou irresponsável, nem a indução ao bem-estar ou saúde; tampouco induzir as pessoas ao consumo, atribuindo aos produtos propriedades calmantes ou estimulantes, que reduzam a fadiga ou a tensão, ou qualquer efeito similar. Também não se permite a propaganda que associe idéias ou imagens de maior êxito na sexualidade das pessoas, insinuando aumento de virilidade ou feminilidade e, por fim, não empregar imperativos que induzam diretamente ao consumo, entre outros.

 

Pois justamente neste ponto encontra-se situação atualmente verificada na mídia! A propaganda de bebida alcoólica que apela ao imperativo “Experimenta!” é flagrante desrespeito ao artigo 3º, § 1º, inciso V da Lei 9.294/96!  A sanção por esta atitude pode ir desde a mera advertência até multa de R$100.000,00 ao infrator, englobando inclusive a suspensão da transmissão da emissora de rádio ou TV que veiculou a propaganda em desacordo com a lei (sanções acrescidas pela Lei 10.167/00).

 

Além dessas sanções, nosso ordenamento jurídico também apresenta o Código de Defesa do Consumidor (CDC - Lei 8.078/90) que cria o DEVER DE INFORMAÇÃO ao fornecedor, principalmente quanto à nocividade e riscos do produto. A Lei, porém, não cuida da hipótese de manter no mercado produto perigoso e nocivo, que quando usado corretamente, ainda assim pode causa lesões e matar, bastando para seu comércio atender à simples imposição de informar ao consumidor.

 

Assim, fecha-se um círculo de proteções: o CDC exige a correta informação sobre eventuais riscos que o consumo possa acarretar à saúde, a Lei 9.294/96 indica os limites da propaganda desses produtos e a Constituição salvaguarda a vida e saúde dos cidadãos. Em tese, portanto, qualquer produto atentatório à saúde seria totalmente contrário à constituição! Mas admite-se a produção e comércio destes produtos, desde que atendidas as orientações dadas pelas leis esparsas (vide artigo 220, § 4º CF). Obvio que, se o atual comércio deste tipo de produto ferir esta rede de proteção, o fornecedor cometeu ato ilícito e deverá ser civilmente responsabilizado.

 

A situação se complica no momento em que pessoas já se encontravam em vício (fumantes ou dependentes do álcool) desde antes da entrada em vigor de todos estes dispositivos legais, pois naquela época era difícil encontrarmos propagandas que indicavam previamente os riscos do produto, facilitando o consumo pelo “interessado” que, em um primeiro momento, utilizava-se de sua autonomia da vontade, mas posteriormente, já abatido pelo vício fisiológico e mental, não dispunha mais de capacidade cognitiva para deixar de consumir o produto.

 

Neste caso, há possibilidade de se provar, via ação judicial, que os produtores abusaram de sua capacidade econômica e impositiva, desrespeitando “valores sociais” e, assim, caracterizando ilícito que culmina em responsabilização civil pelos danos causados. Se antigamente não havia lei que obrigava a informação, mas o Código Civil (tanto o anterior quanto o atual) já responsabilizava pela omissão do agente, os fabricantes desses produtos podem ser réus em ação de indenizações.

 

Mas nem só de leis vive o Brasil. Os interesses econômicos sempre falam mais forte neste aspecto comercial. Não foi à toa que, no último GP Brasil de Fórmula 1, se viu manobra política para permitir a propaganda de cigarros na TV durante a corrida, evitando perda de interesse pelo circo do automobilismo, com seus empregos e investimentos anuais. Também a possibilidade de indenizações altas pode desencorajar as indústrias deste ramo, que prefeririam outros países vizinhos para se instalar, agravando ainda mais o quadro sério de desemprego brasileiro. A estes argumentos, soma-se a capacidade de tributar os produtos, tornando altamente lucrativo ao Governo o comércio de cigarros (IPI de cerca de 300%) e bebidas alcoólicas. O vício do cidadão acaba sendo proveitoso para os cofres públicos.

 

As decisões do Rio Grande do Sul, por si só, já carregam a fama de serem altamente inovadoras e sempre muito comentadas. Não há dúvida que o processo seguirá seus trâmites até as instâncias superiores, onde pode sofrer novo julgamento diferenciado, tendo em vista não só o aspecto legal, mas também o cultural, o político e o econômico. Porém, desde já se alerta para uma maior verificação sobre as propagandas e o comércio abusivo e irregular de tais produtos viciantes. Enquanto isso, uma sugestão aos empresários: “Experimenta... seguir a lei!!!”

 

Retirado de: http://revistaautor.com.br/artigos/29dnn.htm. Acesso em: 12 nov. 2004.