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A balança que não tara:
conjecturas acerca do corte
de energia elétrica por falta de pagamento
Luciano Marinho de B. E. Souza Filho
professor do Via Lux
(Recife), pós-graduando em Direito pela UFPE, ex-aluno de Engenharia de
Infra-Estrutura Aeronáutica pelo ITA/SP
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Inicialmente é oportuno situar ou remeter o leitor ao
contexto dos serviços públicos. Estes, em lacônica síntese, compreendem as
atividades exercidas – seja direta ou indiretamente – pelo poder público
visando à realização das atribuições ou fins de caráter estatal. Serviços nos
quais se vinculam grande parte do desenvolvimento de uma sociedade e a geração
de riqueza de toda uma nação.
Sua prestação pode ser direta, isto é, efetivada pelo
próprio ente estatal, conquanto também possa vir a ser delegada para outras
pessoas jurídicas públicas ou privadas através da desconcentração e/ou
descentralização, viabilizando-se ora como simples repasse, ora como concessão,
permissão ou autorização públicas.
Repisamos, tão somente a título de reforço, que tais
prestações submetem-se ao crivo dos princípios do serviço público, arrolados na
legislação específica (Lei 8.987/95, art. 6° , parágrafo 1° - que regula a
delegação destas atividades) e que são aqui reproduzidos: regularidade,
continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia e
modicidade.
Por outro lado, a própria Carta Magna e o Código de
Proteção e Defesa do Consumidor trazem a lume questões importantes, a saber:
CPDC, Art.22 (caput): os órgãos públicos, por si ou
suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de
empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes,
seguros e, quanto aos essenciais contínuos.
Mais à frente, o mesmo diploma legal arremata:
CPDC, Art. 42 (caput): Na cobrança de débitos, o
consumidor não adimplente não será exposto ao ridículo, nem será submetido a
qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.
Donde nos parece que sua desobediência provocaria
reflexos diretos na Constituição Federal:
CF/88, Art. 5° (caput): Todos são iguais perante a
lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade, nos termos seguintes:
...........................................................................
LIV - ninguém será privado da liberdade nem dos seus
bens sem o devido processo legal
LV - aos litigantes, em processo judicial ou
administrativos, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e
ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.
O antigo posicionamento do Superior Tribunal de
Justiça, neste particular, era cristalino. Para esse tribunal a energia
elétrica constituía um serviço público de utilidade pública, ‘uti singuli’ ou
individualizável face à possibilidade de identificação dos usuários por ela
beneficiados (água, luz, telefone etc).
Para destacar a questão elétrica de outros serviços de
natureza administrativa similar (como o transporte coletivo ou telefone, por
exemplo) utilizou-se do critério da compulsoriedade ou facultatividade da
prestação. Os serviços opcionais (também denominados dispensáveis ou
substituíveis porquanto permitem sua viabilização de outra forma) teriam sua
retribuição efetuada como tarifa ou preço (caso do telefone) e autorizariam o
corte no seu fornecimento em caso de inadimplemento (falta de pagamento) – já
os compulsórios (água, luz, esgoto), por sua vez, por se tratar de serviço
compulsório cujas cobranças são feitas por taxa(s) não ensejariam supressão,
mas somente ação de cobrança (execução judicial).
Ressalte-se que esta classificação de serviços
públicos era o que se constatava (ou empregava) na prática pretoriana, embora
não se utilizasse, exatamente e com uniformidade, dessa pureza terminologia.
(ROMS 8915/MA;
RECURSO ORDINARIO EM MANDADO DE SEGURANÇA; 1997/0062447-1; DJ DATA:17/08/1998;
PG:00023; Min. JOSÉ DELGADO; 12/05/1998; T1 - PRIMEIRA TURMA)
EMENTA:
ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ENERGIA
ELÉTRICA. AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DE TARIFA. CORTE. IMPOSSIBILIDADE.
1. É condenável o ato praticado pelo usuário que
desvia energia elétrica, sujeitando-se até a responder penalmente.
2. Essa violação, contudo, não resulta em reconhecer
como legítimo ato administrativo praticado pela empresa concessionária
fornecedora de energia e consistente na interrupção do fornecimento da mesma.
3. A energia é, na atualidade, um bem essencial à
população, constituindo-se serviço público indispensável subordinado ao
princípio da continuidade de sua prestação, pelo que se torna impossível a sua
interrupção.
4. Os arts. 22 e 42, do Código de Defesa do Consumidor,
aplicam-se às empresas concessionárias de serviço público.
5. O corte de energia, como forma de compelir o
usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade.
6. Não há de se prestigiar atuação da Justiça privada
no Brasil, especialmente, quando exercida por credor econômica e
financeiramente mais forte, em largas proporções, do que o devedor. Afronta, se
assim fosse admitido, aos princípios constitucionais da inocência presumida e
da ampla defesa.
7. O direito do
cidadão de se utilizar dos serviços públicos essenciais para a sua vida em
sociedade deve ser interpretado com vistas a beneficiar a quem deles se
utiliza.
8. Recurso improvido.
No entanto, recentemente, tivemos por parte do Colendo
STJ uma mudança de entendimento, a saber:
(RESP 363943/MG; RECURSO ESPECIAL 2001/0121073-3, DJ
DATA:01/03/2004, PG:00119, Rel. Min. HUMBERTO GOMES DE BARROS, 10/12/2003, T1 -
PRIMEIRA TURMA)
EMENTA:
ADMINISTRATIVO - ENERGIA ELÉTRICA - CORTE – FALTA DE
PAGAMENTOADMINISTRATIVO
- É lícito à concessionária interromper o fornecimento
de energia elétrica, se, após aviso prévio, o consumidor de energia elétrica
permanecer inadimplente no pagamento da respectiva conta (L. 8.987/95, Art. 6º,
§ 3º, II).
(RESP 302620 / SP ; RECURSO ESPECIAL
2001/0011032-0; DJ
DATA:16/02/2004; PG:00228; Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS; 11/11/2003; T2
- SEGUNDA TURMA)
EMENTA:
ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. FORNECIMENTO DE
ENERGIA ELÉTRICA.
MUNICÍPIO INADIMPLENTE. SUSPENSÃO DO SERVIÇO. PREVISÃO
LEGAL.
POSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE.
1. A interrupção no fornecimento de energia por
inadimplemento do usuário, conforme previsto no art. 6º, § 3º, II, da Lei n.
8.987/95, não configura descontinuidade na prestação do serviço para fins de
aplicação dos arts. 22 e 42 do CDC.
2. Demonstrado nos autos que a fornecedora, ao
suspender o fornecimento de energia elétrica, teve o cuidado de preservar os
serviços essenciais do município, não há que se cogitar tenha o corte afetado
os interesses imediatos da comunidade local.
3. Destoa do arcabouço lógico-jurídico que informa o
princípio da proporcionalidade o entendimento que, a pretexto de resguardar os
interesses do usuário inadimplente, cria embaraços às ações implementadas pela
fornecedora de energia elétrica com o propósito de favorecer o recebimento de
seus créditos, prejudicando, em maior escala, aqueles que pagam em dia as suas
obrigações.
4. Se a empresa deixa de ser, devida e
tempestivamente, ressarcida dos custos inerentes às suas atividades, não há
como fazer com que os serviços permaneçam sendo prestados com o mesmo padrão de
qualidade.
5. Recurso especial a que se nega provimento.
Entendemos, desafortunadamente, tratar-se de uma
mudança retrógrada, assistemática e injusta. Fundamentemos: imersos, portanto,
neste prisma normativo e jurisprudencial, acima delineado, e munidos de dois
fatos jurídico-sociais singulares, aparentemente esquecidos, advindos deste
mesmo epicentro (energia elétrica), mas que, aqui, faremos questão de ressuscitar:
primeiro: o comprometimento econômico do consumidor
quando do colapso do sistema elétrico ou "risco apagão" – e a ele se
puniu duplamente: obrigando-se-lhe a diminuir seu consumo sob pena de multa e
corte;
segundo: financiando ele mesmo, compulsoriamente, as
indústrias termoelétricas emergenciais, assumindo, destarte, economicamente a
desídia e o descaso públicos com o setor energético.
Ora, se o grande investidor substituto do setor
elétrico no País (serviço público essencial) não é o poder público, ao menos na
prática – e muito menos são as concessionárias ou permissionárias – não nos
parece justo punir o consumidor (ao mesmo tempo investidor) por inadimplemento.
Recorra-se à execução. Mormente numa prestação que, de há muito, vai de
encontro à principiologia de modicidade de preços típica do serviço público
prestado e, desafortunadamente, os poderes constituídos assim não entendam – o
que, a nosso ver, bastaria uma rápida observação comparativa (paralelo) entre
os acréscimos salariais médios da população, as taxas inflacionárias desses
últimos anos e os aumentos concedidos ao setor – permanecendo, pois, inertes ou
compartilhando suas mea culpa(s) pela inoperância ou impotência de modo
conveniente, isto é, impondo-se ao consumidor (parte mais frágil) as seqüelas
do descaso.
Assume assim, agora, concessa maxima venia, reforçando
este triste contrapeso de evidente injustiça, o Superior Tribunal de Justiça
uma postura interpretativa mais política que jurídica – parecendo esquecer-se
dos nuances fáticos que conformam esta delicada questão – desprestigiando o
consumidor, novamente, opinando por uma decisão de natureza
"político-conciliatória", ainda que se trate do último órgão de
índole, em tese, tecnojurisdicional.
Nas periferias desse embate, indiferentes à decisão
superior, na labuta por uma justiça local, pontual ou concreta as promotorias
estaduais e os órgãos de defesa do consumidor ao longo do País impetram Ações
Civis Públicas, como em Pernambuco, por exemplo, defendendo a antiga tese do
STJ e que, não poucas vezes, obtêm sucesso – tornando o caso ainda mais
conflitante ou indefinido – intra e entre tribunais.
Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5216. Acesso em: 04 nov. 2004.