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A relação de consumo entre as empresas de seguro de saúde
e o indivíduo, independente da preexistência de doença
Danielle Lorencini Gazoni
advogada no Espírito
Santo, professora de Direito das Faculdades Integradas de Vitória (FDV),
pós-graduanda em Direito Processual Civil pela FDV
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Sumário:1.Dados atuais da
calamidade pública na área da saúde e conseqüente enxurrada de empresas
privadas de seguro e plano de saúde.2.A diferença entre "seguro" e
"plano" de saúde e a relação de consumo, entre estas empresas e o
destinatário final, através dos contratos de saúde. 3.As decisões favoráveis ao
consumidor antes mesmo da vigência do Código de Defesa do Consumidor. 4.A boa
fé nas relações de consumo e a regra da interpretação mais favorável ao
consumidor, principalmente nos contratos de adesão. 5.A responsabilidade civil
da seguradora, ao "comprar" carências de planos de saúde,
independentemente de preexistência de doença. 6.Jurisprudências pertinentes.
7.Considerações conclusivas. 8.Bibliografia.
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I - Dados atuais da calamidade
pública na área da saúde e conseqüente enxurrada de empresas privadas de seguro
e plano de saúde.
Em fiel concordância com a observação do notável
Ministro Ruy Rosado Aguiar que "... a previdência privada assume a cada
dia maior importância no país. As dificuldades encontradas pela Previdência
Social para atuação eficaz no âmbito da saúde têm levado grande número de
pessoas à proteção complementar na área da previdência privada, que hoje já atinge
a 35 milhões de pessoa, das quais 28 milhões são ligadas a empresas." e
como conseqüência da precariedade que vem sendo vítima a saúde pública, a
grande maioria da população transfere sua saúde e sua vida a uma das 900
empresas que prestam serviço de prevenção e controle das doenças a que estamos
todos sujeitos.
Hoje a associação a um serviço de saúde não mais é
objetivo inatingível. Cada vez mais constata-se o crescimento progressivo dos
serviços de saúde reformulando seus "planos" ou "seguros" a
fim de atingir todas as classes sociais, proporcionando a seus usuários
atendimento médico-hospitalar, odontológico e laboratorial em todos os níveis e
orçamentos.
E enganam-se os que pensam que estas empresas podem
estar em processo de falência ao reduzir os custos de seus serviços porque, com
isto, facilitam a agregação de outros milhões de consumidores.
Uma das grandes estratégias para a conquista destes
novos associados é o benefício, a eles possibilitado, do abatimento do valor
pago, mensalmente, ao fornecedor de serviço de saúde, nas declarações do
Imposto de Renda. Em decorrência, estas empresas logram o status de
filantrópicas sendo-lhes permitido usufruir isenções tributárias.
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II - A Diferença entre
"seguro" e "plano" de saúde e a relação de consumo, entre
estas empresas e o destinatário final, através dos contratos de saúde.
Com verdadeiro brilhantismo e clareza, o Procurador de
Justiça e Coordenador da Defesa do Consumidor do Ministério Público de
Pernambuco, Dr. Nelson Santiago Reis, em seu artigo O Consumidor e os Seguros
ou Planos de Saúde, difere ambos serviços ao classificar os "seguros de
saúde" como sendo os serviços fiscalizados pela SUSEP – Superintendência
de Seguros Privados, no qual os segurados têm livre escolha sobre os médicos,
hospitais e laboratórios pelos quais e nos quais desejam ser atendidos.
Já os "planos de saúde" não são fiscalizados
pelo Órgão acima mencionado, ficando o associado restrito aos profissionais e
estabelecimentos credenciados pela Empresa.
Em quaisquer dos serviços contratados, constata-se uma
relação de consumo onde a empresa propõe cobertura ao tratamento das
enfermidades diagnosticadas e, em contraprestação, compromete-se ao pagamento
mensal de parcelas que variam quanto a quantia cobrada.
É indiscutível esta relação jurídica de consumo onde os
"seguros" e os "planos" de saúde são fornecedores de
serviços (incluídos, assim, no art. 3, § 2º do CDC) e os "segurados"
e os "associados" são consumidores finais destes serviços, conforme o
art. 2º do mesmo diploma legal.
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III - As decisões favoráveis ao
consumidor antes mesmo da vigência do Código de Defesa do Consumidor.
Reconhecendo-se o ser humano, dos séculos XX e XXI,
como representante dos direitos fundamentais de quarta geração, em que a
sociedade vive com base no modelo de associativismo, caracterizado pelo consumo
crescente de produtos e serviços, e, devido ao trabalho quase
"hipnótico" do marketing, a Justiça não pode ficar cega à posição de
força imposta na relação de consumo pelo fornecedor, em face à vulnerabilidade
do consumidor.
Carente de informações sobre qualidade, preço, crédito
e técnica dos produtos e serviços, ou, como já caracterizado
"hipossuficiente", o consumidor vê-se, através do CDC, "em
tese", amparado, enquanto o futuro aproxima-se não "a passos",
mas sim "a jato".
Antes mesmo da Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990,
mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, ou até mesmo antes da
Constituição Federal de 1988, os consumidores já eram "protegidos" em
face dos abusos praticados pelas empresas de seguro de saúde.
Não necessariamente pioneiro, entretanto, publicamente
defensor incansável da extinção da situação de vulnerabilidade, na qual já era
acometido o "hipossuficiente" consumidor, o Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul, nos anos 70, já se pronunciava neste sentido através de seus
magníficos (e não menos atuais) juristas, como pode-se destacar voto do Ilustre
Dr. Athos Gusmão Carneiro, atualmente Ministro aposentado do STJ e Advogado,
nos Embargos Infringentes nº 17.286, distribuído ao Segundo Grupo de Câmaras
Cíveis do Rio Grande do Sul:
".. . Ora, Sr. Presidente, sempre que determinadas
cláusulas contratuais oferecerem a possibilidade de mais de uma interpretação,
parece-me cumpre seja adotada a interpretação em desfavor do outorgante... no
caso, é um contrato de adesão. São cláusulas estipuladas previamente pela
empresa seguradora. Se elas as estipulou de uma forma a propiciar divergências,
a ensejar dúvidas, creio que essas dúvidas hão de ser resolvidas em favor da
parte que confiou no texto e contratou o seguro. Nesses termos, Sr. Presidente,
com a devida "venia", nego provimento aos embargos."
Desejando proteger o cidadão, com maior proporção, a
Constituição Federal de 1988 estabeleceu no Título dos Direitos e Garantias
Fundamentais (mais precisamente em seu art. 5º, XXXII) que o Estado promoveria
a defesa do consumidor, e, em setembro de 1990 (apesar da previsão de 120 dias
da promulgação da Constituição, para elaboração do CDC pelo Congresso Nacional,
conforme o art. 48 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias) a
denominada Lei 8.078/90 transformou-se no popular Código "de não agressão"
ao Consumidor.
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IV – A boa fé nas relações de
consumo e a regra da interpretação mais favorável ao consumidor, principalmente
nos contratos de adesão.
Nas relações de consumo, além dos típicos contratos de
"dar" previstos pelo Código Civil, existem os contratos de
"fazer" onde as empresas fornecedoras de serviços vendem segurança, como
no caso dos seguros ( e mais especificamente em se tratando dos seguros de
saúde), onde a contraprestação da empresa contratada pode dar-se de imediato ou
a longo prazo.
A escolha, pelo consumidor, da empresa contratada,
investindo financeiramente mês a mês na credibilidade de seus serviços, é frustrada
quando o conveniado não obtém as vantagens que aparentemente acreditava
possuir, não recebendo o tratamento desejado, seja porque o contrato, na
maioria das vezes de adesão, vem redigido com cláusulas que dificultam seu
entendimento (o que é expressamente proibido pelo art. 46 do CDC), seja porque
a redação do contrato guarda interpretações dúbias, sem o esclarecimento
necessário (situação igualmente vedada pelo art. 54, § 3º do CDC).
Tais normas vêm proteger os consumidores, ávidos por segurança,
conforto, rapidez, que aceitam um contrato sem discutir seu conteúdo por não
possuir conhecimento técnico ou jurídico para analisar suas cláusulas.
Às vezes nem o conhecimento jurídico é suficiente para
o entendimento dos contratos de seguro ou plano de saúde, fato verificado
quando nós, Profissionais do Direito, nos colocamos na posição de consumidores,
haja vista as incompreensíveis nomenclaturas técnicas constantes nas principais
cláusulas dos contratos. Neste prisma podemos analisar a verdadeira situação de
"hipossuficiência" da maioria dos consumidores cujo percentual de
analfabetismo é alarmante.
Neste sentido, Sônia Maria Vieira de Mello in O Direito
do Consumidor na Era da Globalização: a Descoberta da Cidadania. Renovar: Rio
de Janeiro, 1998, p. 112:
"De modo geral, o consumidor necessita de
determinado bem ou serviço e por isso "adere" a alguma oferta
existente no mercado, anúncio televisivo, jornal, cartazes, etc. Ao tentar
discutir as condições contratuais, se depara com a padronização das cláusulas
contratuais, escritas com linguagem de difícil entendimento, o consumidor,
muitas vezes não compreende muito bem o que está contratando, nem como está
contratando; exatamente sendo justamente esta a questão mais delicada quanto
aos contratos de adesão: o conhecimento do conteúdo e extensão do contrato por
parte do cliente, o consumidor."
Na prática, esta abusividade contratual (combatida a
cada dia pelo CDC) representa um desequilíbrio na relação de consumo, com a
transposição de riscos profissionais, inerentes ao fornecedor, para o
consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor, através de seu artigo
47, busca resgatar o equilíbrio nas relações jurídicas ao normatizar que as
cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao
consumidor, reconhecendo a vulnerabilidade do mesmo, a transparência e
manutenção da boa fé nas relações de consumo e, finalmente, coibindo os abusos
embutidos nas cláusulas previamente e unilateralmente redigidas.
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V - A responsabilidade civil da
seguradora, ao "comprar" carências de planos de saúde,
independentemente de preexistência de doença.
O conceito de doença preexistente, com os avanços da
genética, torna-se assustadoramente amplo pois qualquer distúrbio pode ser
doença preexistente ou preexistente na carga genética do indivíduo. Tal
afirmativa é revelada, na prática, com os intermináveis questionamentos acerca
dos antecedentes familiares do consumidor.
Em se tratando de empresa de seguro de saúde que
"compra" carência de plano de saúde, ao formalizar a contratação, não
lhe é permitido alegar a preexistência da doença para negar senha autorizativa
quando solicitado internamento hospitalar e posterior cirurgia do segurado.
Ao substituir o "plano" pelo
"seguro" se saúde, o consumidor, na maioria das vezes não tem o
conhecimento da doença, e por este motivo tal fato não foi mencionado na
declaração requerida.
À seguradora que, ao "comprar" as carências,
duvidasse das declarações do consumidor, caberia promover exames médicos
capazes de detectar a doença questionada, eis que o fato em questão é de
interesse da mesma.
Porém, com a "cobiça" de associar mais um
cidadão, a maioria dos seguros de saúde não exige cuidados mínimos e essenciais
para exluir-se de qualquer responsabilidade civil.
Passado o momento, não pode a seguradora alegar a
preexistência da doença para eximir-se de seu dever de assistir o segurado.
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VI - Jurisprudências pertinentes
O Tribunal de Justiça de São Paulo, quanto à
responsabilidade das seguradoras de saúde de indenizar os segurados, ainda que
preexistente a doença, assim se pronunciou:
"A seguradora que compra carência de plano de
saúde a que o segurado estava anteriormente vinculado, assume os riscos de
cobrir as despesas havidas com qualquer doença que o acometa, ainda que preexistente
à adesão do seguro-saúde."( TJSP – 8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)
" Se a empresa de seguro-saúde não submete o
segurado a prévia avaliação médica e nem averigua junto ao plano de saúde a que
anteriormente era vinculado, a existência de problemas de saúde, assume os
riscos de cobrir as despesas hospitalares com doença preexistente à adesão ao
seguro-saúde." ( TJSP –
8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)
" Se não houvesse omissão do segurado-consorciado
acerca de seu estado de saúde, sobre o que nem a seguradora nem a
administradora do consórcio indagou, e se nada indica que ele soubesse do risco
que corria por causa das moléstias, não vinga a alegação de má-fé, que não se
presume. Logo, à seguradora incumbe honrar o dever de indenizar pouco
importando írrita cláusula de isenção." ( 2º TACSP – 4ª C. Ap. Rel. Celso Pimentel, j. 12.8.97, Bol.
AASP. 2.054/3)
" Cabe à seguradora provar que o segurado à época
em que aderiu ao seguro-saúde, não ignorava o seu verdadeiro estado de saúde,
pois, tratando-se de típico contrato de adesão para prestação de serviços
médico-hospitalares, a ele são aplicáveis as disposições contidas nos arts. 46,
47 e 51 IV do CDC, devendo sua interpretação ser feita de maneira mais
favorável ao consumidor." (
TJSP – 8ª C. Ap. Rel. Debatin Cardoso, j. 22.8.97, RT 748/216)
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VII - Considerações conclusivas.
A consideração mais importante sobre a responsabilidade
dos fornecedores de seguro de saúde diz respeito ao caráter objetivo da mesma,
o que diverge totalmente da instituída no art. 159 do Código Civil.
Por se tratar de relação de consumo em massa, qualquer
ato praticado pelo fornecedor que crie risco para o indivíduo, ou uma
coletividade, é expressamente repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor, com
o devido direito à reparação pelos danos sofridos.
A identificação do CDC com a teoria do risco, bem como
com a desconsideração da culpa na reparação dos danos, ratifica a
desnecessidade de investigação do grau de "abuso" do fornecedor para
que este seja obrigado a reparar o dano causado.
Vale lembrar que somente as relações de consumo (entre
fornecedores e consumidores) são regidas pelo Código de Defesa do Consumidor,
prevalecendo a norma específica do CDC. Porém, no caso de omissão do referido
Código, são aplicáveis às relações de consumo, as normas dos Códigos Civil,
Processo Civil, Penal, Processo Penal, Comercial e outras leis extravagantes,
por extensão ou analogia.
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Bibliografia.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1999.
MELLO, Sônia Maria Vieira de. O Direito do Consumidor
na Era da Globalização: a Descoberta da Cidadania. Rio de Janeiro: Renovar,
1998.
PACHECO, J. E. de Carvalho. Jurisprudência Brasileira:
Cível e Comércio. Paraná: Juruá Editora, vol. 3, 1976.
REIS, Nelson Santiago. O Consumidor e os Seguros ou
Planos de Saúde. Artigo.
STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua Interpretação
Jurisprudencial. São Paulo: RT, 4ª ed, 2ª tiragem, 1999.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Responsabilidade Civil. São
Paulo: Livraria e Editora Universitária de Direito, 1986.
Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2210. Acesso em: 03 nov. 2004.