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Beatriz Azevedo de Oliveira
acadêmica de Direito na
UFRN
--------------------------------------------------------------------------------
Sumário:1. A necessidade de
tutela pelo Estado das relações contratuais de consumo. 2. O dogma da autonomia
da vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da
boa-fé. 3. O dogma da boa-fé e a sua aplicação em todas as fases contratuais.
4. O abuso de direito como implicação da inobservância da boa-fé. 5. Previsão da
boa-fé objetiva também no Novo Código Civil. 6. A boa-fé como dogma
relativizador da autonomia da vontade. 7. Referências bibliográficas.
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1. A necessidade de tutela pelo
Estado das relações contratuais de consumo
Dito de uma forma geral, o CDC veio a sagrar princípios
que visam a concretizar três importantes diretrizes: a) a socialidade, em que o
individualismo clássico dá vez à função social do contrato; b) a efetividade,
procurando transformar o Direito em instrumento eficaz de realização da
Justiça; e c) a reticidade, através da qual se exige a boa-fé objetiva desde a
oferta ou promessa de contratação até a fase posterior à execução do contrato.
O Estado de Direito em que vivemos, com as garantias
constitucionais já alcançadas, não mais comporta a simples igualdade formal
entre os indivíduos, requerendo do Estado intervenção para assegurar que
interesses particulares não se sobreponham a interesses sociais, buscando
sempre a concretização de uma igualdade dita material nas relações firmadas
entre os seus cidadãos. Torna-se necessário, portanto, estabelecer um
equilíbrio entre a liberdade individual e o bem estar coletivo, seja no âmbito
do Direito Público ou do Direito Privado.
A Revolução Industrial incentivou a formação de
classes, tornando a doutrina de fins do século XIX mais preocupada com os novos
problemas sociais. Nesse contexto, surgiu no Brasil a primeira manifestação
significativa da intervenção estatal nas relações privadas - o Direito do
Trabalho - juntamente com os ideais pregados pela Igreja Católica de que o
Estado deve zelar pelo bem estar social, deixando de lado a moral individual do
liberalismo selvagem.
Já na era globalizada e capitalista em que estamos
inseridos, as relações de consumo são uma constante. Riquezas são produzidas
sistematicamente e em grande quantidade, socialmente valoradas e desfrutadas
por uma sociedade de consumo, em clara demonstração de que a individualização
que por tempos caracterizou as relações contratuais já não mais se aplica aos
contratos da sociedade hodierna. Prima-se por uma circulação cada vez mais
célere dos bens e serviços, de modo a atender de forma eficaz às necessidades
de quem os usufrui. Para tanto, a informalidade e liberdade de escolher o que,
como e com quem contratar permanecem fundamentais para o bom desenvolvimento
dessas relações, desde que assegurado às partes um equilíbrio contratual que as
proteja da condição de vulnerabilidade e hipossuficiência natural e no mais das
vezes presente nas relações humanas.
No afã de assegurar esse equilíbrio nos contratos é que
ganha alento o denominado dirigismo contratual, em que o Estado Social de
Direito intervém nessas relações, seja por meio da atividade legislativa de
normas de consumo, e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (CDC) é um
exemplo disso, seja através do Poder Executivo, implementando-as, e ainda do
controle judicial exercido na aplicação de tais normas ao caso concreto.
Dada a amplitude dos princípios que informam as diretrizes
contratuais, canalizamos o nosso raciocínio para uma abordagem acerca do
princípio da boa-fé nas relações de consumo e da importância de seu
reconhecimento pelo CDC. Tendo em vista que os contratos são, em regra,
aperfeiçoados pelo acordo de vontades entre as suas partes, antes de tudo
importante se faz um breve estudo acerca da evolução das acepções da autonomia
da vontade, sustentáculo contratual do século XIX, para só então abordar a sua
atual relativização por dogmas como o da boa-fé.
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2. O dogma da autonomia da
vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da
boa-fé
Sem a pretensão de atribuir conceito definitivo e
preciso ao contrato, podemos dizer que ele se apresenta como negócio jurídico
firmado através do consenso entre as partes para alcançar determinado fim,
fixando prestações e contraprestações mútuas, podendo criar, extinguir ou
modificar direitos e obrigações. Como instrumento jurídico das relações
econômicas, é reflexo do contexto social vivenciado em cada época, adequando-se
às necessidades de sua sociedade e economia. Fundado essencialmente no acordo
de vontades, ganha importância o dogma da autonomia da vontade ou, como
preferem alguns, da autonomia privada - havendo, inclusive, quem não os utilize
como sinônimos (Novais, 2001, p.40-42), discussão que aqui, especificamente,
não nos interessa.
Em uma breve abordagem histórica acerca do tema, nos
ensina a doutora Cláudia Lima Marques (1999, p.40-41) que o Direito Canônico
teve importante contribuição para a formação do dogma da autonomia da vontade,
base fundamental do Direito Contratual, ao atribuir validade e exigir o
cumprimento das promessas em si mesmas, a partir das quais surgiriam as
obrigações. Tinha o fundamento moral de que criavam expectativas de condutas e
que, portanto, deveriam ser cumpridas. A doutrina do direito natural, por sua
vez, atribuiu ao elemento da razão humana a condição de alicerce do Direito,
considerando-a como base de validade das manifestações individuais da vontade.
Foi na vigência do Estado liberal clássico (século
XIX), contudo, que o princípio da autonomia da vontade alcançou o seu apogeu.
Fruto dos ideais pós-revolucionários franceses, teve por objetivo excluir os
contratos do âmbito de intervenção estatal, de modo a garantir a liberdade de
contratar e fazer circular riquezas da forma que melhor conviesse aos
participantes de tal relação jurídica. Assegurava-se, assim, a liberdade quanto
à forma, objeto e partes do contrato, através da existência entre elas de uma
igualdade perante a lei (igualdade formal), e atribuía-se relevante importância
à autonomia da vontade, em clara demonstração das necessidades sociais da
época.
A evolução para a sociedade industrializada ultrapassou
essa concepção clássica do contrato, tendo em vista tratar-se de uma sociedade
massificada de consumo, cada vez mais impessoal e conseqüentemente não mais
comportando a visão individualista que predominou no liberalismo. Mais do que a
liberdade de contratar, fez-se necessário a tutela do Direito para que fosse
assegurada às partes uma igualdade material nas relações de consumo, sendo
fundamental a intervenção do Estado Social na garantia de respeito à dignidade
da pessoa humana, de equilíbrio e de observância à boa-fé e à função social do
contrato. Daí a socialidade do Direito atual.
Clara foi a preocupação do legislador constituinte em
conferir proteção à pessoa do consumidor, determinando, em seu art. 5º, XXXII,
que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e,
ainda, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT):
"O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da
Constituição, elaborará o Código de Defesa do Consumidor". Foi nesse
contexto, portanto, que surgiu no Brasil o Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8.078/1990, com projetos datados de 1988 e primeira publicação em 1989),
como um micro-sistema normativo de direitos de terceira geração (Novais, 2001,
p.70), protegendo especialmente as partes mais fracas nas relações
consumeristas, presumindo-se a vulnerabilidade do consumidor. Nesse sentido,
nos esclarece Alinne Arquette Leite Novais (2001, p.70), citando o professor
Paulo Luiz Neto Lobo:
O Estado liberal assegurou os direitos do homem de
primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual.
O Estado social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito
mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do
homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais. Todavia, ainda segundo
este ilustre jurista brasileiro, o maior golpe, contra o modelo liberal do
contrato, foi desferido quando entrou em cena os direitos de terceira geração,
de natureza transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassa (sic) os
dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou
individuais homogêneos. Como exemplo mais significativo dos chamados direitos
de terceira geração, e que mais avança nesta área, temos a experiência dos
direitos do consumidor.
Portanto, com o desenvolvimento e a massificação das
relações contratuais de consumo, surgiu a necessidade de tutela, pelo Estado
social, desses direitos fundamentais ditos de terceira geração, de modo a
adequar a realidade fática à nova teoria contratual, que não mais comporta
aquela concepção clássica de supremacia da autonomia da vontade, hoje relativizada
pela boa-fé objetiva.
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3. O dogma da boa-fé e a sua
aplicação em todas as fases contratuais
A história da boa-fé tem raízes no Direito Romano e
inicia-se com a sua previsão no Código Civil Francês de 1804 como noção
fundamental do Direito dos contratos, o que não se seguiu com os juristas da geração
seguinte, posto que havia o reconhecimento da autonomia da vontade como dogma
absoluto e também pelo receio da arbitrariedade do juiz. Por longo tempo
evitou-se a inclusão nos textos legais de expressões como a da boa-fé, tidas
como vagas e imprecisas. Essa orientação mudou com o desenvolvimento do mercado
internacional e a necessidade de proteger a parte mais frágil do contrato
(Loureiro, p.62-64).
Foi no Direito Germânico que tivemos a inovação de
previsão do princípio da boa-fé objetiva, como hoje a concebemos (Novais, 2001,
p.74). Segundo a autora, a boa-fé na Alemanha atingiu o status de princípio
geral e absoluto, aplicável a todas as relações obrigacionais, em especial com
a inovação trazida pelo parágrafo 242 Código Civil Alemão (BGB), que assim
dispõe: "o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a
boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego". Sobre a aplicação do
dogma em comento no Direito Comparado, inclusive na jurisprudência alemã, ver
exemplos e obra de Judith Martins-Costa (1999, p.413-427).
No Brasil, muito antes da promulgação do Código Civil A
boa-fé objetiva nas relações contratuais de consumo
Beatriz Azevedo de Oliveira
acadêmica de Direito na UFRN
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Sumário:1. A necessidade de
tutela pelo Estado das relações contratuais de consumo. 2. O dogma da autonomia
da vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da
boa-fé. 3. O dogma da boa-fé e a sua aplicação em todas as fases contratuais.
4. O abuso de direito como implicação da inobservância da boa-fé. 5. Previsão
da boa-fé objetiva também no Novo Código Civil. 6. A boa-fé como dogma
relativizador da autonomia da vontade. 7. Referências bibliográficas.
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1. A necessidade de tutela pelo
Estado das relações contratuais de consumo
Dito de uma forma geral, o CDC veio a sagrar princípios
que visam a concretizar três importantes diretrizes: a) a socialidade, em que o
individualismo clássico dá vez à função social do contrato; b) a efetividade,
procurando transformar o Direito em instrumento eficaz de realização da
Justiça; e c) a reticidade, através da qual se exige a boa-fé objetiva desde a
oferta ou promessa de contratação até a fase posterior à execução do contrato.
O Estado de Direito em que vivemos, com as garantias
constitucionais já alcançadas, não mais comporta a simples igualdade formal
entre os indivíduos, requerendo do Estado intervenção para assegurar que
interesses particulares não se sobreponham a interesses sociais, buscando
sempre a concretização de uma igualdade dita material nas relações firmadas
entre os seus cidadãos. Torna-se necessário, portanto, estabelecer um
equilíbrio entre a liberdade individual e o bem estar coletivo, seja no âmbito
do Direito Público ou do Direito Privado.
A Revolução Industrial incentivou a formação de
classes, tornando a doutrina de fins do século XIX mais preocupada com os novos
problemas sociais. Nesse contexto, surgiu no Brasil a primeira manifestação
significativa da intervenção estatal nas relações privadas - o Direito do
Trabalho - juntamente com os ideais pregados pela Igreja Católica de que o
Estado deve zelar pelo bem estar social, deixando de lado a moral individual do
liberalismo selvagem.
Já na era globalizada e capitalista em que estamos
inseridos, as relações de consumo são uma constante. Riquezas são produzidas
sistematicamente e em grande quantidade, socialmente valoradas e desfrutadas
por uma sociedade de consumo, em clara demonstração de que a individualização
que por tempos caracterizou as relações contratuais já não mais se aplica aos
contratos da sociedade hodierna. Prima-se por uma circulação cada vez mais
célere dos bens e serviços, de modo a atender de forma eficaz às necessidades
de quem os usufrui. Para tanto, a informalidade e liberdade de escolher o que,
como e com quem contratar permanecem fundamentais para o bom desenvolvimento
dessas relações, desde que assegurado às partes um equilíbrio contratual que as
proteja da condição de vulnerabilidade e hipossuficiência natural e no mais das
vezes presente nas relações humanas.
No afã de assegurar esse equilíbrio nos contratos é que
ganha alento o denominado dirigismo contratual, em que o Estado Social de Direito
intervém nessas relações, seja por meio da atividade legislativa de normas de
consumo, e o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor (CDC) é um exemplo
disso, seja através do Poder Executivo, implementando-as, e ainda do controle
judicial exercido na aplicação de tais normas ao caso concreto.
Dada a amplitude dos princípios que informam as
diretrizes contratuais, canalizamos o nosso raciocínio para uma abordagem
acerca do princípio da boa-fé nas relações de consumo e da importância de seu
reconhecimento pelo CDC. Tendo em vista que os contratos são, em regra,
aperfeiçoados pelo acordo de vontades entre as suas partes, antes de tudo
importante se faz um breve estudo acerca da evolução das acepções da autonomia
da vontade, sustentáculo contratual do século XIX, para só então abordar a sua
atual relativização por dogmas como o da boa-fé.
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2. O dogma da autonomia da
vontade: sua evolução e importância para a compreensão da concepção atual da
boa-fé
Sem a pretensão de atribuir conceito definitivo e
preciso ao contrato, podemos dizer que ele se apresenta como negócio jurídico
firmado através do consenso entre as partes para alcançar determinado fim, fixando
prestações e contraprestações mútuas, podendo criar, extinguir ou modificar
direitos e obrigações. Como instrumento jurídico das relações econômicas, é
reflexo do contexto social vivenciado em cada época, adequando-se às
necessidades de sua sociedade e economia. Fundado essencialmente no acordo de
vontades, ganha importância o dogma da autonomia da vontade ou, como preferem
alguns, da autonomia privada - havendo, inclusive, quem não os utilize como
sinônimos (Novais, 2001, p.40-42), discussão que aqui, especificamente, não nos
interessa.
Em uma breve abordagem histórica acerca do tema, nos
ensina a doutora Cláudia Lima Marques (1999, p.40-41) que o Direito Canônico
teve importante contribuição para a formação do dogma da autonomia da vontade,
base fundamental do Direito Contratual, ao atribuir validade e exigir o
cumprimento das promessas em si mesmas, a partir das quais surgiriam as
obrigações. Tinha o fundamento moral de que criavam expectativas de condutas e
que, portanto, deveriam ser cumpridas. A doutrina do direito natural, por sua
vez, atribuiu ao elemento da razão humana a condição de alicerce do Direito,
considerando-a como base de validade das manifestações individuais da vontade.
Foi na vigência do Estado liberal clássico (século
XIX), contudo, que o princípio da autonomia da vontade alcançou o seu apogeu.
Fruto dos ideais pós-revolucionários franceses, teve por objetivo excluir os
contratos do âmbito de intervenção estatal, de modo a garantir a liberdade de
contratar e fazer circular riquezas da forma que melhor conviesse aos
participantes de tal relação jurídica. Assegurava-se, assim, a liberdade quanto
à forma, objeto e partes do contrato, através da existência entre elas de uma
igualdade perante a lei (igualdade formal), e atribuía-se relevante importância
à autonomia da vontade, em clara demonstração das necessidades sociais da
época.
A evolução para a sociedade industrializada ultrapassou
essa concepção clássica do contrato, tendo em vista tratar-se de uma sociedade
massificada de consumo, cada vez mais impessoal e conseqüentemente não mais
comportando a visão individualista que predominou no liberalismo. Mais do que a
liberdade de contratar, fez-se necessário a tutela do Direito para que fosse
assegurada às partes uma igualdade material nas relações de consumo, sendo
fundamental a intervenção do Estado Social na garantia de respeito à dignidade
da pessoa humana, de equilíbrio e de observância à boa-fé e à função social do
contrato. Daí a socialidade do Direito atual.
Clara foi a preocupação do legislador constituinte em
conferir proteção à pessoa do consumidor, determinando, em seu art. 5º, XXXII,
que "o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor" e,
ainda, no art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT):
"O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da
Constituição, elaborará o Código de Defesa do Consumidor". Foi nesse
contexto, portanto, que surgiu no Brasil o Código de Defesa do Consumidor (Lei
nº 8.078/1990, com projetos datados de 1988 e primeira publicação em 1989),
como um micro-sistema normativo de direitos de terceira geração (Novais, 2001,
p.70), protegendo especialmente as partes mais fracas nas relações
consumeristas, presumindo-se a vulnerabilidade do consumidor. Nesse sentido,
nos esclarece Alinne Arquette Leite Novais (2001, p.70), citando o professor
Paulo Luiz Neto Lobo:
O Estado liberal assegurou os direitos do homem de
primeira geração, especialmente a liberdade, a vida e a propriedade individual.
O Estado social foi impulsionado pelos movimentos populares que postulam muito
mais que a liberdade e a igualdade formais, passando a assegurar os direitos do
homem de segunda geração, ou seja, os direitos sociais. Todavia, ainda segundo
este ilustre jurista brasileiro, o maior golpe, contra o modelo liberal do
contrato, foi desferido quando entrou em cena os direitos de terceira geração,
de natureza transindividuais, protegendo-se interesses que ultrapassa (sic) os
dos figurantes concretos da relação negocial, ditos difusos, coletivos ou
individuais homogêneos. Como exemplo mais significativo dos chamados direitos
de terceira geração, e que mais avança nesta área, temos a experiência dos
direitos do consumidor.
Portanto, com o
desenvolvimento e a massificação das relações contratuais de consumo, surgiu a
necessidade de tutela, pelo Estado social, desses direitos fundamentais ditos
de terceira geração, de modo a adequar a realidade fática à nova teoria contratual,
que não mais comporta aquela concepção clássica de supremacia da autonomia da
vontade, hoje relativizada pela boa-fé objetiva.
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3. O dogma da boa-fé e a sua
aplicação em todas as fases contratuais
A história da boa-fé tem raízes no Direito Romano e
inicia-se com a sua previsão no Código Civil Francês de 1804 como noção
fundamental do Direito dos contratos, o que não se seguiu com os juristas da
geração seguinte, posto que havia o reconhecimento da autonomia da vontade como
dogma absoluto e também pelo receio da arbitrariedade do juiz. Por longo tempo
evitou-se a inclusão nos textos legais de expressões como a da boa-fé, tidas
como vagas e imprecisas. Essa orientação mudou com o desenvolvimento do mercado
internacional e a necessidade de proteger a parte mais frágil do contrato
(Loureiro, p.62-64).
Foi no Direito Germânico que tivemos a inovação de
previsão do princípio da boa-fé objetiva, como hoje a concebemos (Novais, 2001,
p.74). Segundo a autora, a boa-fé na Alemanha atingiu o status de princípio
geral e absoluto, aplicável a todas as relações obrigacionais, em especial com
a inovação trazida pelo parágrafo 242 Código Civil Alemão (BGB), que assim
dispõe: "o devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a
boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego". Sobre a aplicação do
dogma em comento no Direito Comparado, inclusive na jurisprudência alemã, ver
exemplos e obra de Judith Martins-Costa (1999, p.413-427).
No Brasil, muito antes da promulgação do Código Civil
de 1916, já havia a previsão legal da boa-fé no âmbito das relações
contratuais. Trata-se do artigo 131 do Código Comercial (Lei nº 556 de 25 de
junho de 1850), o qual determina que na interpretação das cláusulas contratuais
a inteligência simples e adequada da boa-fé e do verdadeiro espírito e natureza
do contrato terá preponderância em relação à restrita e rigorosa significação
das palavras. Todavia, segundo Alinne Novais (2001, p.77) citando Ruy Rosado de
Aguiar Júnior, tal dispositivo "permaneceu letra morta por falta de
inspiração da doutrina e nenhuma aplicação nos tribunais". No Código Civil
de 1916 prevaleceu a concepção subjetiva do dogma da boa-fé, o que não ocorreu
ao nosso novo Código Civil (Lei nº 10.406/2002), que a previu objetivamente em
alguns de seus artigos, como teremos oportunidade de melhor discorrer adiante.
Pois bem. Sabemos que os contratos, como forma de
circulação de bens e serviços, estão presentes nas mais diversas situações do
nosso cotidiano. Vimos que a convivência em uma sociedade industrializada
importa necessariamente na existência de diferenças sociais, sendo imprescindível
a tutela do Estado na busca da equidade e da concretização de justiça. Para
tanto, prima-se por uma relativização da autonomia individual da vontade, de
modo a evitar que interesses particulares sobreponham-se aos interesses
sociais. Essa constitui uma das diretrizes adotadas pelo Código Brasileiro de
Direito do Consumidor, expressa, no mínimo, pela exigência de aplicação do
princípio da boa-fé em todas as fases do contrato. Nesse sentido, preceitua o
artigo 4º do CDC:
Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo
tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à
sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a
melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das
relações de consumo, atendidos aos seguintes princípios:
(…)
III – harmonização dos interesses dos participantes das
relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a
necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os
princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição
Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre
consumidores e fornecedores. (grifo extra)
Por boa-fé entende-se a honestidade, a transparência, a
lealdade e a expectativa de que as partes ajam de acordo com os fins a que se
destina o contrato, tendo em vista não apenas a constatação por uma delas de
que está agindo consoante o seu próprio direito, mas a verificação de que não
está adentrando a esfera de direitos de outrem. Fundamental, portanto, a
observância de um parâmetro de conduta a seguido, conforme a expectativa criada
nos contraentes. Ainda, conforme visto acima, o princípio da boa-fé (estampado
no artigo 4º do CDC), ao mesmo tempo em que confere proteção ao consumidor,
visa a assegurar a concretização dos ditames constitucionais de desenvolvimento
da ordem econômica.
A concepção clássica de boa-fé limita-se a alcançar a
intenção do contraente no momento da celebração do contrato (boa-fé subjetiva).
A sua previsão no Código de Defesa do Consumidor, contudo, trouxe a inovação de
observância da probidade nos atos contratuais não mais como elemento subjetivo,
mas como arquétipo de conduta a ser seguido, levando-se em consideração as
expectativas criadas no âmbito de direitos das partes contraentes e terceiros
interessados (boa-fé objetiva), devendo ser verificada não apenas no momento
mesmo de contratar, como também durante as fases de oferta e execução do
contrato. Judith Martins-Costa (1999, p.411-412) explicita de forma didática os
traços que distinguem e caracterizam essas duas concepções do princípio da
boa-fé (a subjetiva e a objetiva):
A expressão "boa-fé subjetiva" denota "estado
de consciência", ou convencimento individual de obrar (a parte) em
conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra, ao campo dos direitos
reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se "subjetiva"
justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a
intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima
convicção. Antitética à boa-fé subjetiva está a má-fé, também vista
subjetivamente como a intenção de lesar outrem. Já por "boa-fé
objetiva" se quer significar – segundo a conotação que adveio da
interpretação do parágrafo 242 do Código Civil alemão, de larga força
expansionista em outros ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída
nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard
jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse
arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade,
probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os
fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos
envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo
meramente subsuntivo.
Um indivíduo economicamente desprivilegiado pode ver-se
obrigado, por estado de necessidade ou monopólio de determinada empresa em
relação ao produto ou serviço por ele desejado, por exemplo, a sujeitar-se a
contraprestações abusivas, mesmo que a intenção do contraente economicamente
mais forte não fosse a de prejudicá-lo. Em situação hipotética como a mencionada,
a concepção que se vinha adotando da boa-fé não traria um julgamento
satisfatório ao caso, de modo a manter o equilíbrio contratual. De fato,
ter-se-ia em consideração apenas o seu caráter puramente subjetivo: uma simples
constatação de inexistência da má-fé por parte do contraente privilegiado (a
sua não intenção em prejudicar aquele com quem contratou), dele não se exigindo
a devida observância às regras de conduta impostas, aos interesses e
finalidades a que visaram ambas as partes (boa-fé objetiva, como standard
jurídico) no momento do acordo de vontades.
Importante lembrar que o Código de Defesa do Consumidor
trouxe a previsão de cláusulas abertas, que proporcionam ao juiz uma melhor
possibilidade de aplicação ao caso concreto dos princípios que informam as
relações contratuais de consumo. Permitem que ele constate em cada situação se
a contratação e seus atos posteriores deram-se de forma transparente, leal,
digna de não causar prejuízos a outrem. De fato, a boa-fé tem como parâmetro a
expectativa de conduta do homem médio e, segundo Cláudia Lima Marques (1999,
p.106), exerce dupla função na formação das obrigações, quais sejam: a) a de
fonte de novos deveres e b) a de limitação do exercício, antes lícito, hoje
abusivo, dos direitos subjetivos. Como bem ensina Luiz Guilherme Loureiro
(2000, p.68):
(…) a boa-fé tem por função ajudar na interpretação do
contrato (adjuvandi); suprir algumas falhas do pacto, vale dizer, acrescentar o
que nele não está escrito (supplendi) e eventualmente corrigir alguma coisa que
é de direito no sentido de justo (corrigendi).
Portanto, além daquelas duas funções acima mencionadas
(criação de novos deveres e limitação ao exercício abusivo de direitos
subjetivos), acrescente-se a função integradora e interpretativa do dogma da
boa-fé, permitindo ao magistrado uma função menos subsuntiva e, por que não
dizer, criadora do Direito. E, ainda, de forma conclusiva, pode-se dizer,
acerca da ampla atuação do princípio em questão, que a sua funcionalidade
abrange: a) norma ordenadora de condutas e, portanto, limite ao exercício de
direitos subjetivos; b) critério informador de vários institutos jurídicos; c)
técnica de interpretação; d) diretriz instituidora de deveres particulares de
comportamento (Nobre Júnior, p.7).
Passíveis de anulação são aquelas cláusulas tidas como
abusivas, dentre as quais encontram-se aquelas que não obedecem ao dogma da
boa-fé. De tal modo, a violação dos deveres decorrentes da sua efetiva aplicação
"é capaz de ensejar a invalidade de todo, ou de parcela do negócio
jurídico, sem excluir o cabimento de indenização, em caso de dano
comprovado" (Nobre Júnior, p.12). O seguinte tratamento é conferido ao
assunto pelo CDC:
Art.51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento dos produtos e serviços que:
(…)
IV- estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam
incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.
Conforme dito anteriormente, na aplicação do Direito
hodierno o princípio da boa-fé deve ser observado em todas as etapas do
contrato. No que diz respeito à sua fase pré-contratual, há um dever de apresentação
da situação fática real, através do fornecimento das informações necessárias
para que a outra parte manifeste o seu consentimento. Cite-se como exemplo
panfletos de propaganda de venda de algum bem, levando a crer que os acessórios
estão incluídos no preço ofertado, sem que de fato estejam, influenciando de
forma decisiva a aceitação da outra parte em integrar a relação jurídica
contratual de consumo. È necessário, pois, que as partes submetam-se às regras
de conduta da retidão e lealdade, de modo a observar se não estão ferindo a
esfera de direitos de outrem, as suas expectativas quanto à natureza e as
finalidades do contrato.
Atente-se para a importância crescente da informação na
atual sociedade de consumo, na medida em que cada vez mais a discussão
individual quanto à escolha da forma e conteúdo do contrato, além das partes
com quem contratar, dá lugar a relações massificadas, em que a informação é
transmitida através de sua divulgação pelos meios de comunicação de massa,
destinada a um público alvo que pode ser determinado, porém de modo impessoal.
Nesse sentido, compartilhamos com o entendimento abaixo transcrito de Luiz
Gustavo Grandinetti Castanho de Carvalho (2002, p.255):
Enquanto a informação circulava lentamente, enquanto a
informação não ocupava tanto os fazeres do homem, enquanto a informação quase
nada alterava o curso normal da vida em sociedade, enquanto a informação era
recebida por pequena parcela da população, enfim, enquanto a informação não era
determinante para traçar o rumo da vida em sociedade, era natural que a
doutrina não se preocupasse mesmo com o seu aspecto jurídico. Na medida em que
o avanço tecnológico permite uma inacreditável rapidez na sua circulação, ao
mesmo tempo em que massifica a sua divulgação, a informação passa a ter uma
relevância jurídica antes não reconhecida. O progresso tecnológico transformou
a informação em um bem jurídico capaz não só de satisfazer a necessidade do
saber, como de influir decisivamente no seu uso.
Julgamento relevante e que traduz a necessidade da
boa-fé demonstrada no dever de informação foi a decisão proferida no tribunal
de Québec, citada e traduzida por Loureiro (2002, p.72):
A aparição da obrigação de informação é relativa a um
certo equilíbrio no âmbito do direito civil. Ainda que anteriormente se
deixasse para cada parte a incumbência de se informar antes de agir, o direito
civil está atualmente mais atento às desigualdades das partes em matéria de
informações, o que impõe uma obrigação positiva de informação no caso onde uma
das partes se encontra em posição vulnerável, onde os danos podem se seguir. A
obrigação de informação e o dever de não falsear informações podem ser
concebidos como duas faces de uma mesma moeda.
Portanto, o que se pretende com a previsão de
observância da boa-fé nas relações pré-contratuais é evitar que haja prejuízo
pelo não cumprimento das expectativas criadas pelas partes e que passaram a
influenciar de alguma forma a razão e o modo de agir delas. Há a necessidade de
se proteger a parte que eventualmente se prejudicou pela falta das informações
pertinentes e necessárias ao seu convencimento quanto à aceitação ou não do
contrato. Além da proteção quanto à informação, tutela-se ainda nessa fase
preliminar as promessas de contrato, quando verificado qualquer prejuízo
decorrente das expectativas formadas na esfera de direitos de outrem. Nesse
sentido, pertinente a referência ao "caso dos tomates", citado por
Judith Martins-Costa (1999, p.473):
Contrato. Tratativas. Culpa in contrahendo.
Responsabilidade civil. Responsabilidade da empresa alimentícia,
industrializadora de tomates, que distribui sementes, no tempo do plantio, e
então manifesta a intenção de adquirir o produto, mas depois resolve, por sua
conveniência, não mais industrializá-la naquele ano, assim causando o prejuízo
do agricultor, que sofre a frustração da expectativa da venda da safra, uma vez
que o produto ficou sem possibilidade de colocação. Provimento, em parte, do
apelo, para reduzir a indenização à metade da produção, pois uma parte da
colheita foi absorvida por empresa congênere, às instâncias da ré. Voto
vencido, julgando improcedente a ação.
Explica a autora que a decisão acima transcrita foi
proferida em grau de apelação no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A
ação foi inicialmente intentada por um agricultor do município de Canguçu, Rio
Grande do Sul, que costumava plantar sementes de tomate que recebia da
Companhia Industrial de Conservas Alimentícias - Cica, a qual adquiria a sua
produção para posterior industrialização. Ocorre que na safra de 1987/1988,
dita empresa não quis adquirir a sua produção, alegando que não assumira
qualquer compromisso e que naquele ano não exerceria a atividade de
industrialização de tomates, por motivo de mudança na sua política industrial.
A questão foi julgada procedente em primeira instância e resolvida em segundo
grau de jurisdição, sob o fundamento de que a Cica não foi diligente, não
observou a boa-fé e a expectativa de celebração do negócio jurídico que
suscitou na outra parte, causando-lhe prejuízos. Contudo, atente-se para a
escassez, na época, de julgamentos como o citado, no entanto ressaltando que os
mesmos "bem evidenciaram a necessidade de que as partes, em suas relações
negociais, deviam obrar de conformidade com a boa-fé" (Nobre Júnior, p.8).
Em um segundo momento, o da celebração mesma do
contrato, permanece o dever de informação e transmissão das circunstâncias
pertinentes a cada caso. Mais do que isso, exige-se agora que prestação e
contraprestação mantenham um razoável equilíbrio, de modo a evitar qualquer
conduta dolosa que produza vício na manifestação da vontade da outra parte. A
redação em fontes pequenas, por exemplo, de cláusulas abusivas ou leoninas
contidas nos contratos de adesão pode pôr em cheque a boa-fé do contratante,
cabendo ao juiz, entretanto, verificar de igual modo se foi observado pelo
aderente o seu dever de diligência e cautela no momento em que externou a sua
vontade de integrar a relação jurídica de consumo.
Já em fase de execução do contrato, o princípio da
boa-fé confunde-se com a figura do abuso de direito, a ser tratado um pouco
mais especificadamente no tópico seguinte. Podemos ainda dizer que o princípio
ora mencionado faz-se igualmente presente até mesmo após a extinção do
contrato, quando se impõe às partes o dever de reserva e sigilo quanto às
informações adquiridas no curso da relação contratual e que são aptas a causar
lesão a outrem, caso reveladas. É a chamada responsabilidade pós-contratual ou
post pactum finitum (Loureiro, 2002, p.71-77).
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4. O abuso de direito como
implicação da inobservância da boa-fé
Não obstante constituir matéria de vasta amplitude,
suficiente para a exposição de um tema à parte, não haveria como se falar em
princípio da boa-fé nas relações contratuais de consumo sem sequer tecer alguns
comentários, ainda que sucintos, do abuso de direito. Conforme mencionado no
tópico anterior, o princípio da boa-fé está intimamente ligado à figura do
abuso de direito, na medida em que se torna parâmetro para a verificação da
regularidade ou não do exercício de direitos subjetivos. De fato, conforme nos
ensina Luiz Antônio Rizzato Nunes (2000, p.108):
Já a boa-fé objetiva, que é a que está presente no CDC,
pode ser definida, grosso modo, como uma regra de conduta, isto é, o dever das
partes de agir conforme certos parâmetros de honestidade e lealdade, a fim de
estabelecer o equilíbrio nas relações de consumo. Não o equilíbrio econômico,
como pretendem alguns, mas o equilíbrio das posições contratuais, uma vez que,
dentro do complexo de direitos e deveres das partes, em matéria de consumo,
como regra, há um desequilíbrio de forças. Entretanto, para chegar a um
equilíbrio real, somente com a análise global do contrato, de uma cláusula em
relação às demais, pois o que pode ser abusivo ou exagerado para um não o será
para o outro. A boa-fé objetiva funciona, então, como um modelo, um standard,
que não depende de forma alguma da verificação da má-fé subjetiva do fornecedor
ou mesmo do consumidor. Assim, quando se fala em boa-fé objetiva, pensa-se em
comportamento fiel, leal, na atuação de cada uma das partes contratantes a fim
de garantir respeito à outra. É um princípio que visa a garantir a ação sem
abuso, sem obstrução, sem causar lesão a ninguém, cooperando sempre para
atingir o fim colimado no contrato, realizando os interesses das partes.
Luiz Guilherme Loureiro (2002, p.85-89) nos traz um
sucinto apanhado histórico acerca do tema. Ensina o autor que, apesar de não
constituir entendimento unânime, resquícios do abuso de direito são encontrados
em Roma, onde já se reconheciam limitações ao exercício de direitos subjetivos,
tais como a proteção contra a fraude, a do filho em relação ao pai ou mesmo do
escravo em relação ao amo. Contudo, esse reconhecimento era disperso, aplicável
caso a caso com fundamento na equidade, não reunindo elementos suficientes para
a configuração de uma teoria.
Na Idade Média podem ser vislumbrados dois momentos
distintos: o dos atos de emulação e o dos atos de imissão. Nos primeiros,
reconhecia-se como prejudicial o fato de um titular de direitos os exercer com
o dolo de prejudicar alguém. A influência ético-religiosa do cristianismo
terminou por tornar tal conduta reprovável, restando clara, porém, a presença
de seus elementos puramente subjetivos, posto que o que se levava em consideração
era a vontade do agente em prejudicar terceiros através do exercício abusivo de
seu direito. Já na teoria das imissões valorizou-se objetivamente o resultado
da ação, retratando um contexto de freqüentes contaminações ambientais em face
do desenvolvimento industrial da época.
É da jurisprudência francesa, contudo, o mérito de
abrigar em suas decisões os elementos necessários à construção da teoria do
abuso de direito. Através da supervalorização dos ideais revolucionários franceses,
a autonomia da vontade reinou em absoluto durante muito tempo. Contudo, o
desenvolvimento da indústria e o surgimento de uma sociedade de classes
trouxeram a necessidade de adequação das leis aos reclames sociais, o que
ocorreu progressivamente nos Tribunais da França, terminando por reunir os
elementos constitutivos da teoria do abuso de direito (Loureiro, 2002,
p.85-89).
Portanto, conclui-se que, na fase de execução do
contrato, ou seja, no momento em que é dado às partes exercer as prerrogativas
e deveres obrigacionais decorrentes da relação contratual estabelecida, o
direito de um não pode imiscuir-se na esfera individual do outro, causando-lhes
prejuízo. A ausência de observância ao princípio da boa-fé é objetivamente
caracterizada pela lesão causada a outrem por desatenção aos fins sociais
estabelecidos, servindo a verificação de dolo ou culpa como critérios de
convencimento do juiz. Há quem entenda que o pronunciamento judicial deve estar
vinculado unicamente ao elemento subjetivo daquele que lesionou, havendo também
as teorias defensoras de que a simples verificação do dano cria a obrigação de
indenizar, restando, por fim, aquelas que utilizam um critério misto,
combinando a verificação do prejuízo com a intenção do agente.
Optamos pela necessidade e legitimidade de ser cobrada
dos contratantes a observância do dogma da boa-fé objetiva, entendida como
regra de conduta a ser observada pelo homem comum, naquelas determinadas
circunstâncias, sempre tendo em vista a natureza do contrato e a expectativa
dos resultados que foi criada nas partes como decorrência da celebração do
mesmo. Compartilhamos ainda da idéia de que a previsão de regras abertas no
Código de Defesa do Consumidor, desde que não utilizadas com discricionariedade
em grau prejudicial, constitui um avanço do Direito, permitindo que o juiz,
atrelado aos princípios informadores das relações contratuais de consumo, os
aplique ao caso concreto e proporcione um equilíbrio entre as partes.
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5. Previsão da boa-fé objetiva
também no novo Código Civil
Retratando a conjuntura do nosso Código Civil de 1916,
afirma Antonio Junqueira de Azevedo, citado por Alinne Novais (2001, p.76):
Em assuntos
específicos, como o contrato de seguro, contrato de sociedade (art. 1.404),
aquisição a non domino (art. 622), pagamento indevido (art. 968), posse
(art.490 e ss.), usucapião (art. 550 e ss.), construção e plantação (art. 546 e
ss.), dívida de jogo (art. 1.477), etc., o próprio Código Civil prevê a boa-fé
para certas conseqüências jurídicas. Trata-se, porém, em todos esses casos,
salvo os dois primeiros (seguro e sociedade), da chamada boa-fé subjetiva, isto
é, aquele estado interior ou psicológico relativo ao conhecimento, ou
desconhecimento, e à intenção, ou falta de intenção, de alguém.
Adverte o doutor Edilson Pereira Nobre Júnior (p.7-8),
entretanto, para a necessidade de visualização do contexto
sócio-econômico-político (sociedade predominantemente agrária e escravista) em
que foi gerado o Código Civil de 1916, privilegiando a autonomia da vontade e
não comportando a concepção da boa-fé como cláusula geral. Afirma o professor
que a esse respeito não houve omissão, por parte do legislador da época, posto
que em diversos dispositivos do nosso Código vislumbra-se menção à boa-fé, seja
em sua concepção subjetiva ou objetiva. Ademais – prossegue - a ausência de uma
cláusula geral expressa não impediria a interpretação que hoje temos do dogma,
seja com base em alguns de seus artigos (são citados os artigos 85 e 1.443 do
Código de 1916) ou mesmo a sua construção através das peculiaridades do caso
concreto. Como exemplo, aduz que tivemos na jurisprudência pátria, embora
escassos, alguns brilhantes e inovadores julgamentos a esse respeito (um deles,
inclusive, mencionado no item 3 do presente trabalho).
O novo Código Civil Brasileiro (Lei nº 10.406/2002),
prevê, em seu artigo 113, que "os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração".
Prossegue, em seu artigo 187: "também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes" e explicita
ainda, no artigo 422, que "os contratantes são obrigados a guardar, assim
na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e
boa-fé".
A doutrina e jurisprudência já vinham reclamando a
necessidade de previsão e aplicação da boa-fé objetiva aos contratos, pois,
conforme foi visto, o Estado Social em que estamos inseridos não mais comporta
uma concepção subjetivista do dogma da boa-fé contratual. Apesar de o novo
código apresentar projeto datado de 1975, portanto anterior mesmo ao Código
Brasileiro de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990, com projetos datados de
1988 e primeira publicação em 1989), teve este último tramitação legislativa
mais célere, antecipando-se quanto à previsão da boa-fé objetiva no que tange
às relações de consumo. No entanto, participamos da idéia de que o advento do
novo Código Civil ampliará o âmbito de atuação de tal princípio, igualmente
aplicando-o às demais espécies contratuais, posto que considerado regra geral
para todos os contratos. Tal se apresenta de fundamental importância para a
garantia da honestidade e lealdade na participação de tais negócios jurídicos,
permitindo uma condição mais equânime de forças na hora de contratar e
fortalecendo o efetivo exercício da autonomia da vontade, através da
relativização desta por princípios como o da boa-fé objetiva. Assim, proporciona-se
de maneira mais eficaz o equilíbrio que deve estar presente nas relações
jurídicas tuteladas pelo Estado, ampliando-se a sua esfera de atuação, agora
não mais restrita apenas ao âmbito do Direito do Consumidor.
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6. A boa-fé como dogma
relativizador da autonomia da vontade
A civilização industrial fomentou a existência de
diferenças sociais e econômicas e trouxe consigo a produção e o consumo em
massa, em que não mais é conferida ao consumidor a prerrogativa de discussão
individual de todas as cláusulas consumeristas, de modo a melhor adequar-se à
situação concreta de cada caso. Entretanto, apesar de todo esse desenvolvimento
tecnológico, inclusive dos meios de comunicação, muitas lesões foram
verificadas nas relações de consumo, tendo em vista o desequilíbrio de forças
existente entre as partes.
Foi nesse contexto que foi promulgada no Brasil a Lei
nº 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor), assegurando proteção ao
consumidor através da presunção de vulnerabilidade deste nas relações
consumeristas e de relativização dos dogmas como a autonomia da vontade e o
brocardo segundo o qual o contrato faz lei entre as partes, que sempre
informaram o Direito contratual de modo absoluto, mas que agora encontram
limites em princípios tais como o da boa-fé, evoluída de seu conceito clássico
subjetivo para uma concepção objetiva, aplicável a todas as etapas dos
contratos, inclusive em seu momento posterior. Transforma-se a parte social,
intelectual e economicamente mais fraca em juridicamente mais forte.
Dito de outra forma, os elementos sociais passaram a
integrar a preocupação do Estado, que passou a intervir nas relações
contratuais de consumo (dirigismo contratual) e retirou da autonomia da vontade
o status de fonte única da obrigação. Esta não mais é tida como dogma absoluto
e o conhecido princípio do pacta sunt servanda também encontrou no CDC a sua
relativização, através de dogmas como o da boa-fé objetiva (artigos 4º, III e
51, IV do CDC e artigos 113, 187 e 422 do novo Código Civil) e da função social
dos contratos (artigo 421 do novo Código Civil), posto que condicionado às
diretrizes destes e aos fins do Estado Social de Direito.
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7. Referências bibliográficas
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informação como bem de consumo. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
Ano 11, n 41. p. 253-262, jan. / mar. 2002.
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era da globalização. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, Ano 11, n 41.
p. 81-95, jan. / mar. 2002.
GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de
Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2001.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Teoria Geral dos Contratos no
Novo Código Civil. São Paulo: Editora Método, 2002.
MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do
Consumidor. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado:
sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 1999.
NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. O princípio da boa-fé e
o novo Código Civil. Aula inaugural ministrada no curso de preparação à
carreira do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Norte, promovida pela
Fundação Escola Superior do Ministério Público – FESMP/RN e disponibilizada
pelo ilustre professor aos alunos da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte – UFRN.
NOVAIS, Alinne Arquette Leite. A teoria Contratual e o
Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2001.
NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao Código de
Defesa do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 2000.
Retirado de: http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=4067. Acesso em: 29 out. 2004.