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A desobrigação do cumprimento do contrato de consumo por ofensa ao direito de informação

 

 

 

       Marcos Augusto Pordeus de Paula

bacharel em Direito pela Universidade Regional de Blumenau (SC)

Cristian Rodolfo Wackerhagen

advogado em Santa Catarina, professor de Direito Comercial na UNERJ, mestrando em Direito para a Gestão de Organizações Públicas e Privadas pelo PMPD – UNIVALI

 

 

 

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Sumário: 1. Introdução. 2. O Direito à Informação. 3. Da norma em foco. 4. Oportunidade de o Consumidor tomar conhecimento prévio do conteúdo do Contrato. 5. A redação das cláusulas contratuais. 6. Desobrigação dos Consumidores em Cumprir o Contrato. Conclusão.

 

 

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1. Introdução

 

            No início da década de 90, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, a sociedade mostrava-se ansiosa pelas mudanças que este iria impor nas conduta de fornecedores e consumidores. Com pouco mais de uma década de vigência, a atividade empresarial parece ter aprendido a conviver bem com o Código de Defesa do Consumidor. De outra parte, porém, parece não ter assimilado todos os seus ensinamentos.

 

            Vê-se, hoje, que o sistema criado com a finalidade de disciplinar as relações de consumo (e com isso implementá-las), vem sendo reiteradamente descumprido, especialmente no que se refere às condutas e práticas empresariais (aqui se incluem as fases pré, pós e contratual propriamente dita).

 

            Propõe-se, neste breve, artigo analisar a específica hipótese de descumprimento do preceito esculpido no artigo 46 do Código de Defesa do Consumidor, procurando-se encontrar um porto seguro quanto aos efeitos do descumprimento da citada regra, a partir do norte teórico apontado pela doutrina.

 

 

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2. O Direito à Informação

 

            O Código de Defesa do Consumidor garante o direito à informação ao consumidor desde seus primeiros artigos. Em breve digressão no texto legal, encontram-se:

 

            1.Princípio da transparência (art. 4.º, caput, CDC);

 

            2.Princípio da educação e transparência (art. 4.º, IV, CDC);

 

            3.Direito à informação (art. 6.º, III e 46, CDC);

 

            4.Direito à proteção contra práticas e cláusulas abusivas (art. 6.º, IV, CDC);

 

            Ao mesmo passo em que o CDC dá ao Consumidor o direito, estabelece ao Fornecedor o dever de informar, como bem dispõe o artigo 9.º, CDC. Dada a sistemática do Código e os preceitos acima estabelecidos, deve-se estender a interpretação do citado artigo a todos os seus dispositivos, inclusive no que toca à proteção contratual.

 

            Como norma eminentemente principiológica, o CDC procura estabelecer direitos gerais, construídos sobre princípios, mas sem ser específico quanto às hipóteses para sua aplicação, permitindo ao intérprete buscar caso a caso a sua melhor aplicabilidade.

 

            Especificamente no tocante à Proteção Contratual, o legislador foi além da norma geral e previu o caso específico em que o Direito a Informação é levado a efeito: o dever de oportunizar ao Consumidor o efetivo conhecimento das cláusulas contratuais, sob pena de não obrigar o consumidor.

 

 

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3. Da norma em foco

 

            Visando a coibir tais práticas pré-contratuais abusivas, o legislador previu norma clara e específica:

 

            Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

 

            Em breve análise, pode-se dissecar o artigo citado em três partes, assim dispostas: 1. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, 2. se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, 3. ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance.

 

            Para facilitar o estudo, analisar-se-á a matéria calcando-se nesses tópicos.

 

 

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4. Oportunidade de o Consumidor tomar conhecimento prévio do conteúdo do Contrato

 

            Revela-se comum no "mundo real" que o Fornecedor, valendo-se de sua posição de supremacia na relação pré-contratual, imponha ao Consumidor determinado pacto, informando-o inadequadamente, insuficientemente ou simplesmente não lhe dando ciência plena das cláusulas contratuais.

 

            Nesse sentido, pode-se citar como exemplo os contratos firmados por instituições financeiras com o Consumidor, nos quais aquelas impõem aos consumidores a assinatura de um contrato por adesão, sem lhes dar prévio conhecimento de seu conteúdo. Em várias vezes, o pacto ao qual o Consumidor adere encontra-se registrado em algum tabelionato, muitas vezes sito à milhas de distância do local da obrigação.

 

            Tal hipótese, também se verifica nos contratos de seguro, quando da aceitação da proposta, cujas condições gerais, muitas vezes omitidas pelo corretor (ou por ele desconhecidas), somente serão levadas ao conhecimento do consumidor após o recebimento da apólice.

 

            Com efeito, tais práticas não evidenciam a espargida "oportunidade de tomar conhecimento prévio", consagrada pelo dispositivo consumerista. Essas "cláusulas gerais do futuro" ou "depositadas em cartório" não satisfazem o princípio da transparência e da boa-fé contratual, nem mesmo asseguram o conhecimento prévio das verdadeiras condições aderidas.

 

            Para bem entender o que se pretende com a exposição acima, busca-se suporte na melhor doutrina, espelhada nas palavras de Nelson Nery Júnior:

 

            "Dar oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato não significa dizer para o consumidor ler as cláusulas do contrato de comum acordo ou as cláusulas contratuais gerais do futuro contrato de adesão. Significa, isto sim, fazer com que tome conhecimento efetivo do conteúdo do contrato. Não satisfaz a regra do artigo sob análise a mera cognoscibilidade das bases do contrato, pois o sentido teleológico e finalístico da norma indica dever o fornecedor dar efetivo conhecimento ao consumidor de todos os direitos e deveres que decorrerão do contrato, especialmente sobre as cláusulas restritivas de direitos do consumidor, que, aliás, deverão vir em destaque nos formulários de contrato de adesão (art. 54, §4.º, CDC)." (in: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Comentários ao código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 485).

 

            Assim, deve o Fornecedor garantir que o consumidor tenha acesso a todas as cláusulas do contrato ao qual adere, entendo-se o acesso como dar ao consumidor efetivo conhecimento das cláusulas.

 

            Além de disponibilizar o contrato, ou, ao menos, torná-lo acessível ao Consumidor, é dever do Fornecedor facilitar a compreensão da redação do contrato. Para melhor compreender o alcance da questão, passa-se ao tópico seguinte.

 

 

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5. A redação das cláusulas contratuais

 

            Buscando assegurar uma melhor compreensão dos instrumentos contratuais, estes devem ser redigidos de modo a facilitar o seu sentido e alcance.

 

            "O cuidado que se deve ter na redação das cláusulas contratuais", afirma NELSON NERY JR., "especialmente das cláusulas contratuais gerais que precedem futuro contrato de adesão, compreende a necessidade de desenvolver-se a redação na linguagem direta, cuja lógica facilita sobremodo sua compreensão. De outra parte, deve-se evitar, tanto quanto possível, a utilização de termos lingüísticos muito elevados, expressões técnicas não usuais e palavras em outros idiomas. Os termos técnicos de conhecimento do homem médio leigo, as palavras estrangeiras que já estejam no domínio popular do homem mediano podem, em tese, ser empregadas na redação de um contrato de consumo, atendidas as peculiaridades do caso concreto, bem como do universo da massa a ser atingida como aderente no contrato de adesão. Se este tem como alvo pessoas de baixa renda e analfabetas em sua maioria, por exemplo, palavras difíceis, termos técnicos e palavras estrangeiras não deverão, por cautela, ser utilizadas no formulário.’

 

            ‘Não basta o emprego de termos comuns, a não-utilização de termos técnicos e palavras estrangeiras para que seja alcançado o objetivo da norma sob comentário. É preciso que também o sentido das cláusulas seja claro e de fácil compreensão. Do contrário, não haverá exigibilidade do comando emergente dessa cláusula, desonerando-se da obrigação o consumidor. (grifamos)" (in: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Comentários ao código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 7.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001. p. 486/487).

 

            Nas bem lançadas palavras de LÔBO (1), "O direito fundamental à informação resta assegurado ao consumidor se o correspectivo dever de informar, por parte do fornecedor, estiver cumprido. É o ônus que se lhe impõe, em decorrência do exercício de atividade econômica lícita."

 

            Por se tratar de obrigação imposta ao fornecedor (dever de informar), logo, seu descumprimento acarreta um ônus, como bem expõe Lobo, o que se vê adiante.

 

 

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6. Desobrigação dos Consumidores em Cumprir o Contrato

 

            Primeiramente, há de se lembrar que são deveres do fornecedor: a) o dever de informar (clara, ostensiva e adequadamente); b) o dever de segurança (o produto e serviço devem ser seguros, em proteção ao consumidor); c) o dever de suportar os riscos (inerente a qualquer atividade empresarial).

 

            Se o Fornecedor descumpre o dever de informar, logo, estará o Fornecedor sujeito a suportar os riscos de sua ação. No caso específico da relação contratual, por expressa disposição legal, o risco é o de não obrigar o Consumidor.

 

            Assim, parece equivocada o posicionamento de alguns doutrinadores, no sentido de que havendo colisão entre os princípios da transparência e informação (arts. 4o., caput, 6o., III e 46, CDC) com o princípio da conservação do contrato (arts. 6o., V e 51,§2o., do CDC), devem aqueles ceder face a este, devendo o julgador esforçar-se para aproveitar e manter a relação jurídica existente. (2)

 

            Ora, é falaciosa a tentativa de manter um contrato do qual o consumidor não teve acesso pleno às suas condições aderidas. O princípio da conservação dos contratos, não se pode perder de vista, aplica-se tão-somente na hipótese de se invalidar as condições abusivas, pormenorizadas, dentre outras, no art. 51, do Código das Relações de Consumo, sem prejudicar ou invalidar por completo o negócio jurídico.

 

            Na hipótese aqui investigada, não se trata de suprimir as condições abusivas e primar pela conservação do negócio, do qual consumidor não teve prévio conhecimento prévio de seu conteúdo. Pensar de forma diversa, é admitir a sujeição de uma das partes ao arbítrio da outra, culminando com a ruptura de todo o sistema protetivo assegurado pela Lei 8.078/90. É o retrocesso à autonomia privada exacerbada.

 

            Tanto é assim que o próprio princípio da conservação é admitido com reserva pelas normas consumeristas. Muito embora o art. 51, §2o., do CDC (3) assegure que a nulidade de uma cláusula não invalida o contrato por inteiro, a sua conservação está condicionada ao equilíbrio da relação negocial, ou seja, não teria sentido a manutenção do contrato em detrimento de uma das partes se, ainda após a eliminação da cláusula contratual abusiva, decorrer desequilíbrio ou ônus excessivo a qualquer das partes.

 

            Retomando o pensamento inicial, encontra-se no ensinamento de Paulo Luiz Netto Lôbo a sustentação de que, incumbido o Fornecedor do ônus de informar, logo, os contratos de consumo que descumprirem a esse dever serão ineficazes.

 

            "O Código do Consumidor brasileiro (arts 46 e 54) estabelece que os contratos de consumo não serão eficazes, perante os consumidores, ‘se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo’, ou houver dificuldade para compreensão de seu sentido e alcance, ou se não forem redigidos em termos claros e com caracteres ostensivos e legíveis, ou se não forem redigidos com destaque, no caso de limitação de direitos.’

 

            ‘Todas essas hipóteses legais configuram elementos de cognoscibilidade, situando-se no plano da eficácia, vale dizer, sua falta acarreta a ineficácia jurídica, ainda que não haja cláusula abusiva (plano da validade). Os contratos existem juridicamente, são válidos mas não são eficazes. O direito do consumidor, portanto, desenvolveu peculiar modalidade de eficácia jurídica, estranha ao modelo tradicional do contrato. No lugar do consentimento, desponta a cognoscibilidade, como realização do dever de informar." (LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2216>. Acesso em: 04 dez. 2002).

 

            Sem dúvida, em uma interpretação sistêmica, a norma principiológica reveste-se do caráter cogente na exegese do artigo 46 c/c artigo 54, ambos do Código de Defesa do Consumidor, cominando a pena ao Fornecedor de não obrigar o Consumidor.

 

            Não obstante o posicionamento do doutrinador, entende-se melhor concordar com Cláudia Lima Marques. Segundo a autora, descumprido o dever de informação na fase pré-contratual, a relação sequer chega ao plano da existência jurídica:

 

            "A sanção instituída pelo art. 46 do CDC para o descumprimento deste novo dever de informar, de oportunizar o conhecimento do conteúdo do contrato, encontra-se na própria norma do art. 46 o fato de tais contratos não obrigarem o consumidor. ‘Contratos’ não-obrigatórios não-obrigatórios não existem, logo é a inexistência do vinculo contratual, como entendemos." (MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no código de defesa do consumidor. 3.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 337/338).

 

            Se a formação do contrato pressupõe um acordo de vontades lícito, como pode o Consumidor aderente manifestar livremente sua vontade de aderir se não puder conhecer (4) do contrato? Nota-se, portanto, que a posição da ilustre doutrinadora faz (e muito!) sentido.

 

            Independentemente de se adotar a doutrina de um ou outro autor, é indubitavelmente inexigível a obrigação entabulada no contrato no qual o Fornecedor descumpriu o dever de informar.

 

 

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Conclusão

 

            Diante de todo o exposto, em caso de a ausência de informação clara, pode-se concluir ferido o direito fundamental do Consumidor à informação (CDC, art. 6º, III). Ao mesmo passo em que se confere um direito ao Consumidor, atribui-se um dever ao Fornecedor: o dever de informar.

 

            O dever de informar implica no dever do Fornecedor dar ao Consumidor conhecimento prévio, prévio e adequado, de modo a facilitar o acesso a seu verdadeiro conteúdo.

 

            Como conseqüência do descumprimento de seu dever, impõe-se como penalidade ao Fornecedor a impossibilidade e exigir do Consumidor o cumprimento do pacto (CDC, art. 46).

 

            Infelizmente, o descumprimento do dever de informação é prática vigente. Casos em que o Consumidor firma instrumento a conhecer, reconhecer e declarar o pleno entendimento de cláusulas constantes em contrato registrado em local diverso do seu domicílio e que não lhe tenha sido entregue cópia ou contratos que limitam ou criam obrigações ao Consumidor em desobediência os preceitos do art. 54, §4º, CDC são comumente vistos. Tais lamentáveis fatos são aviltantes e ofensivos ao próprio conceito de Estado democrático de direito.

 

            Por tudo isso, há de se concluir que é inexistente o contratos ao qual não for dada aos Consumidores pleno e prévio conhecimento. Por isso, tais contratos não obrigam os Consumidores.

 

            Todo e qualquer prejuízo tido com a "negociata" (5) deverá ser suportado unicamente pelo Fornecedor, que livremente se pôs a descumprir a Lei (dever de informar) buscando vantagem ilícita e, por ser seu o dever de informar e de suportar os riscos do negócio, deve assumir eventual prejuízo.

 

 

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Notas

 

            01. LÔBO, Paulo Luiz Netto. A informação como direito fundamental do consumidor. Jus Navigandi, Teresina, a. 5, n. 51, out. 2001. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2216>. Acesso em: 04 dez. 2002.

 

            02. NUNES, Luiz Antônio Rizzato. Comentários ao código de defesa do consumidor: direito material (arts. 1o. a 54). São Paulo: Saraiva, 2000. p. 546.

 

            03. Principal fundamento do princípio da conservação.

 

            04. O vocábulo "conhecer" deve ser entendido nos moldes já expostos neste artigo, de cognição ampla.

 

            05. Diz-se negociata pois não se trata de um negócio jurídico, posto que este é juridicamente inexistente

 

Retirado de: http://www.direitoejustica.com/cgi-bin/links/jump.cgi?ID=12627&Title=A%20Disciplina%20Civil%20da%20Publicidade%20no%20Código%20de%20Defesa%20do%20Consumidor. Acesso em: 18 out. 2004.