® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
Os serviços de saneamento:
afronta ao Código do
Consumidor e às leis ambientais
Marco Paulo Denucci Di
Spirito
advogado no Malheiros e
Nogueira Advogados S/C, escritório especializado na defesa do consumidor
A atuação das empresas saneadoras de nosso país, no
mercado de consumo, é, no mínimo, curiosa.
No que tange ao seu sistema de preços, ao invés de
cobrarem exclusivamente pela água consumida, como determina o Código do
Consumidor e o Código Civil, preferem estipular um patamar mínimo de consumo,
obrigando o pagamento de uma quantia certa, a despeito do consumo não
realizado. Alegam que o montante dessa maneira arrecadado tem por fito
subsidiar o sistema de fornecimento de água e esgoto, o que nos faz perguntar
se esta partícula remuneratória já não deveria estar embutida na própria
tarifa, como determina a lei.
Esse consumo imposto, que em Minas Gerais é denominado
de "consumo mínimo por economia", é cobrado não só de quem
efetivamente se utiliza da água fornecida, mas também de unidades consumidoras
desativadas ou permanentemente desocupadas. Com relação a essa ilegalidade, o
artifício invocado é de que o serviço permanece à disposição do consumidor. As
concessionárias, nesse sentido, confundem preço público com taxa, e pretendem
aplicar regime tributário a uma relação eminentemente contratual. Vale lembrar
que, caso fossem essas empresas realmente submetidas às normas tributárias, os
constantes aumentos de suas tarifas deveriam ser efetuados, inevitavelmente,
por leis, e não por via de portarias e congêneres, como vem ocorrendo.
Cumpre esclarecer que as concessionárias, muitas vezes
imbuídas pelo único intuito de mascarar este método de cobrança, preferem
empregar ao "consumo mínimo" o nome de "tarifa mínima". A
denominação, além de ludibriar o consumidor, consiste em evidente erro técnico.
Primeiramente, porque a tarifa não se confunde com o consumo. Muito pelo
contrário, tarifa e consumo são elementos distintos que se conjugam para a
composição do preço final. Quer dizer, pela técnica legal, o valor da tarifa
multiplicado pelo consumo (volume de água consumido) resulta no montante total
a ser cobrado do consumidor. Daí falar-se em tarifa de R$ 1,00 para cada metro
cúbico de água consumido. Em segundo lugar, porque a vontade da lei é de que na
composição da tarifa sejam levados em conta todos os fatores que determinam o
custo do serviço público, sendo vedada a imposição de qualquer outra partícula
remuneratória que não esteja embutida na própria tarifa (princípio da tarifa
conglobante). Nessa perspectiva, tarifa mínima seria aquela que, apesar do
imperativo de agregar todos os componentes de custo para a prestação do
serviço, teria seu valor reduzido para atender às populações carentes, em
obediência ao princípio da isonomia. Vê-se, pois, que a tarifa mínima é uma
tarifa especial, e não pode ser lida como um consumo mínimo imposto.
Ainda, contam estas empresas com a desinformação dos
utentes, deixando de especificar na conta de água todos os elementos que
indicam a composição do preço final, como o valor da tarifa vigente no mês de
cobrança, o volume de água cobrado e assim por diante. Nesse sentido, calha
mencionar o exemplo dos consumidores mineiros que, tentando desvendar os
mistérios de suas contas de água, descobriram que todos os valores cobrados
pelo fornecimento de água também incidem nos serviços de esgoto. Trocando em
miúdos, em Minas Gerias paga-se duas vezes pelo consumo mínimo e, por
conseguinte, a tarifa acaba incidindo em dobro. Fácil identificar estas
irregularidades? Obviamente, não. Encontram-se todas escamoteadas na conta de
água e palidamente delineadas em algumas das normas regentes das empresas
concessionárias, como decretos, portarias etc.
Para confirmar essa assertiva, desafia-se o consumidor
a apontar na conta de água os seguintes dados:
- O volume de água efetivamente consumido no mês :
Geralmente, nas contas de água, não se destaca qual o volume de água
efetivamente consumido. O que se constata é apenas a leitura inicial e final do
hidrômetro. Então, o consumidor, para descobrir qual foi o volume de água que
realmente consumiu, deve deduzir da leitura final o valor da leitura inicial
(leitura final – leitura inicial);
- O volume de consumo imposto, determinado pelo
"consumo mínimo" : O volume de água imposto para efeitos de cobrança
também não fica ostensivamente determinado nas contas mensais. Para se chegar
ao valor, deve-se multiplicar o número de "economias" (unidades
consumidoras) pelo volume que cada empresa concessionária determina como
patamar de consumo. Por exemplo, em Minas Gerais, num prédio de 90 apartamentos
(90 economias), o volume imposto é de 900 m³ (90 x 10 m³);
- O valor da tarifa vigente no mês de cobrança para os
serviços de fornecimento de água: O valor da tarifa que incide sobre o volume
de água consumido, por incrível que pareça, não é informado;
- O valor da tarifa vigente no mês de cobrança para os
serviços de esgoto: O serviço de esgoto prestado tem por base de cálculo a água
fornecida ou consumida. A tarifa incide, novamente, sobre este volume. Algumas
contas de água sequer esclarecem sobre a cobrança de tal serviço.
- A classe de cada consumidor: Cada unidade consumidora
ou economia é enquadrada em determinada classe, como residencial, comercial e
pública. Na conta mensal, não resta claro em qual classe a economia foi
incluída. Quando muito, empregam-se abreviações desconhecidas pelo consumidor.
A classe de cada economia é de grande importância, posto que indica o valor da
tarifa a ser paga.
Não bastasse, existem outras irregularidades na
prestação dos serviços dessas empresas concessionárias. Constatou-se,
recentemente, que o consumidor vem pagando pelo ar que entra na tubulação,
prontamente contabilizado pelo hidrômetro como se água fosse. Dessa forma,
omitem-se as concessionárias em sanar a irregularidade, assegurando um serviço
adequado, exigência estipulada não só pelo Código do Consumidor, mas também
pela própria Constituição Federal. A fim de contornar a situação, alguns
consumidores vêm instalando os chamados "eliminadores de ar", mas não
sem o protesto das empresas saneadoras.
Questão digna de nota diz respeito, também, ao impacto
do relatado sistema de cobrança nas políticas de preservação do meio ambiente.
Ora, percebe-se com nitidez que, ao onerar-se os utentes com um consumo mínimo
fictício, está-se ao mesmo tempo desestimulando a economia dos recursos
hídricos. O consumidor mais econômico, assim, encontra-se penalizado pelo
consumo que nunca realizou. Tenha-se em conta os alertas dos estudiosos para o
chamado "secão" (nome inspirado no conhecido "apagão"),
efeito que consiste numa considerável redução mundial dos recursos hídricos, o
que requer imediatas providências. Atento a estes prognósticos, países como os
Estados Unidos já vêm desenvolvendo mecanismos residenciais para economia de
água, ajustáveis a torneiras, descargas, chuveiros e caixas d’água. No Brasil,
entretanto, a instalação desses produtos afigura-se como medida inócua, ante a
cobrança do consumo mínimo.
Quem em sã consciência defenderia a imposição de um
consumo mínimo de energia elétrica em épocas de escassez? Da mesma forma, dar
carta branca à população para gastar certo volume de água, diante do atual
contexto, não soa como insanidade?
A fim
de contornar essa situação, ajuizou o Movimento das Donas de Casa e
Consumidores de Minas Gerais uma Ação Civil Pública, requerendo do Poder
Judiciário imediata reparação. A medida poderá ser requerida também em outros
estados, uma vez que há grande semelhança na prestação dos serviços de água e
esgoto oferecidos pela empresas saneadoras de todo o país.
Informações
bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da
Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico
publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
DI SPIRITO, Marco Paulo
Denucci. Os serviços de saneamento: afronta ao Código do Consumidor e às leis
ambientais. Jus Navigandi, Teresina, a. 6, n. 55, mar. 2002. Retirado de:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=2797>. Acesso em: 07 out. 2004.