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Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica.

  Alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las

 

 

 

       Demócrito Reinaldo Filho

Juiz de Direito em PE 

 

 

 

             A questão do corte de fornecimento de energia elétrica tem ocupado os debates nas cortes judiciárias. Diante do inadimplemento do consumidor, parte da jurisprudência inclinou-se por inadmiti-lo, ao argumento da essencialidade do bem em questão e da característica de continuidade do serviço de fornecimento de energia elétrica, com apoio no art. 22 do CDC (Lei 8.078/90), que consagra o princípio da continuidade dos serviços públicos essenciais. O Poder Público ou seu delegado só ficaria autorizado a proceder à cobrança executiva do débito, sob pena de infringir o art. 42 do mesmo diploma, que proíbe o uso de expedientes constrangedores na cobrança de dívidas a consumidores. Essa corrente prevaleceu durante algum tempo na Primeira Turma do STJ, tendo o Min. José Augusto Delgado sido o relator do acórdão padrão que resultou no assentamento desse entendimento (ver o acórdão proferido no ROMS 8915-MA, unânime, j. 12.05.98, DJ 17.08.98).

 

             Mesmo antes da superação dessa jurisprudência, sempre me manifestei contrário a ela, em julgamentos que tive a oportunidade de participar (a exemplo do Proc. n. 01.002916-9, 21a. Vara Cível da Capital, decidido em 19.02.01). Como ressaltei naquelas oportunidades, o direito à continuidade do serviço público, como está assegurado ao consumidor no art. 22 (bem como no § 1o do art. 6o, da Lei 8.987/95), não significa que não possa haver corte do fornecimento, mesmo na hipótese de inadimplência do consumidor. A continuidade, aqui, tem outro sentido, significando que, já havendo execução regular do serviço, a Administração ou seu agente delegado (concessionário ou permissionário) não pode interromper sua prestação, sem um motivo justo, a exemplo das excludentes de força maior ou caso fortuito. O dispositivo nem sequer obriga a Administração a fornecer o serviço, mas, desde que implantado e iniciada sua prestação, não poderá ser interrompida se o consumidor vem satisfazendo as exigências regulamentares, aí incluído o pagamento da tarifa ou preço público. O art. 6o, par. 3º, inc. II, da Lei 8.987/95 ("Lei das Concessões dos Serviços Públicos"), deixa isso bem claro, ao dizer que "não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após aviso prévio", em caso de "inadimplemento do usuário, considerado o interesse público" (1).

 

           

            Como se vê, o corte de energia elétrica é um direito que assiste ao Poder Público ou a seu concessionário, no caso de inadimplência do usuário. Decorre de disposição legal e, por isso mesmo, jamais poderia ser considerado um expediente constrangedor ou qualquer tipo de ameaça ou infração a direitos do consumidor (2).

 

             Essa questão, no entanto, encontra-se superada, diante do novo posicionamento do STJ, considerando legítimo o corte no caso de inadimplemento do usuário, não caracterizando descontinuidade do serviço essa hipótese (ver, e.g., o acórdão proferido no REsp 363943-MG, rel. Min. Humberto Gomes de Barros, j. 10.12.03, DJ de 01.03.04 (3)).

 

             A única hesitação perdura em relação aos casos em que o consumidor é pessoa jurídica de direito público (ou prestador de serviços públicos). Em alguns julgados encontramos um impedimento direto ao corte, baseado no argumento de que traz repercussões sobre a comunidade dos administrados:

 

             "ADMINISTRATIVO. ENERGIA ELÉTRICA. CORTE DE FORNECIMENTO. MUNICÍPIO INADIMPLENTE. IMPOSSIBILIDADE.

 

             O corte de energia elétrica em prédio do Município atinge não somente aquele ente público, mas o próprio cidadão, porquanto a inviabilidade da utilização do prédio e a conseqüente deficiência na prestação de serviços decorrentes, atinge diretamente todos os munícipes.

 

             O corte de energia, utilizado pela Companhia para obrigar o usuário ao pagamento de tarifa, extrapola os limites da legalidade, existindo outros meios para buscar o adimplemento do débito (STJ-1ª Turma, Resp 278532-RO, rel. Min. Francisco Falcão, j. 16.11.00, DJ de 18.12.00).(…)

 

Notas:

             (1) O par. 3o. do art. 6o. da Lei 8.987/95 tem a seguinte redação:

             "§ 3o Não se caracteriza como descontinuidade do serviço a sua interrupção em situação de emergência ou após prévio aviso, quando:

             I - motivada por razões de ordem técnica ou de segurança das instalações; e,

            

            II - por inadimplemento do usuário, considerado o interesse da coletividade".

             (2) Advertimos para a circunstância de que usamos indistintamente os conceitos de consumidor e usuário. É certo que este último termo (usuário) deve ser utilizado sempre que se faça referência ao consumidor de serviços públicos, até porque é o termo técnico que a Lei (8.987/95) emprega. O usuário deve ser entendido como uma categoria específica de consumidor, aquele que faz parte da relação jurídica contratual de serviço público. Mas essa relação contratual é uma típica relação de consumo. Nesse sentido, divergimos do Prof. Antônio Carlos Cintra do Amaral, para quem não se confunde o usuário do serviço público com o consumidor. Afirma ele que "a relação contratual entre concessionária e usuário, mediante a qual uma parte se obriga a prestar um serviço, recebendo em pagamento um preço público (tarifa), tem como pressuposto uma outra, entre a concessionária e o poder concedente". Por essa razão, ou seja, a existência de verdadeiros contratos "coligados", o Poder Público (concedente) tem responsabilidade solidária perante o usuário, "na medida em que mantém a titularidade do serviço", diz ele ("Distinção entre usuário de serviço público e consumidor", artigo publicado na Revista Diálogo Jurídico, n. 13, abril/maio 2002). Com a devida vênia, o concessionário é quem tem o encargo imediato da prestação e adequação do serviço público, respondendo pelos danos que causar a terceiros. Como se diz na doutrina, o concessionário age em nome próprio e por sua conta e risco, sendo perante ele que os usuários demandam em relação ao serviço. Por outro lado, a circunstância de o art. 27 da Emenda Constitucional n. 19/98 ter determinado ao  

 

Congresso Nacional a elaboração de "lei de defesa dos usuários dos serviços públicos" não implica reconhecer que o legislador pretendeu criar uma categoria estanque. A aplicação subsidiária das normas do CDC (Lei 8.078/90) à defesa do usuário dos serviços públicos sempre será possível, ainda que se tome de empréstimo aquelas mais genéricas e de caráter principiológico.

             (3) O que demonstra que o Min. Humberto Gomes de Barros também mudou posição, acompanhando a reviravolta da jurisprudência da 1ª Turma, pois antes esposava o entendimento de que "é defeso à concessionária de energia elétrica interromper o suprimento de força, no escopo de compelir o consumidor ao pagamento de tarifa em atraso. O exercício arbitrário das próprias razões não pode substituir a ação de cobrança" (REsp n. 223.778/RJ, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 13.03.2000).

Informações bibliográficas:
Conforme a NBR 6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
REINALDO FILHO, Demócrito. Ações judiciais para impedir o corte do fornecimento de energia elétrica. Alguns apontamentos sobre sua natureza e a autoridade competente para julgá-las. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 309, 12 mai. 2004. Retirado de: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=5215>. Acesso em: 07 out. 2004.