O consumidor e os seguros ou planos de saúde.
Nelson Santiago Reis
procurador de
Justiça, coordenador da Defesa do Consumidor do Ministério Público de
Pernambuco
OS
OBJETIVOS IMPERATIVOS FIXADOS PELO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. A REGRA DE
INTERPRETAÇÃO
O Código de Defesa do Consumidor desenvolveu conotações próprias e quando se
fala em boa fé a âmbito das relações de consumo, não há perquirir o aspecto
subjetivo. Para o CDC a boa fé é objetiva, é conduta a ser seguida
imperativamente pelos protagonistas da relação jurídica, considerando-se o
fornecedor como a parte mais forte e organizada, conhecedor que é ou que deve
ser de tudo a respeito do que se propõe colocar no mercado de consumo. Nesse
sentido, a regra básica de interpretação dos contratos de consumo é a do Art.
47, segundo a qual as cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira
mais favorável ao consumidor, ressaltando-se que tal regra não diz
respeito, apenas, aos casos de dúvida, mas sim que se constitui em parâmetro
obrigatório de aplicação dos princípios configurados na "norma
objetivo" do Art. 4º.
Sabemos que há normas de conduta e normas de organização. Mas há também um terceiro universo, composto pelas "normas objetivo". O Art. 4º do CDC é uma delas. Este dispositivo
fixa
finalidades, obrigações de resultado, balizando a interpretação e a aplicação
de todo o Código aos casos sob sua regência. Determina a interpretação das
outras normas de conduta e de organização, cuja aplicação há de guardar
estreita adequação aos princípios nela enunciados. Estes princípios podem ser
aglutinados em três: o reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor, a transparência
e harmonização dos interesses dos participantes da relação de consumo, e a
coibição e repressão eficiente dos abusos.
O Art. 4º condiciona a incidência e a aplicação das normas do Código a estes princípios/objetivos, que passam a ser finalidades jurídicas prioritárias. Por isso que é uma "norma objetivo". (Conforme o Prof. EROS ROBERTO GRAU, In "Interpretando o Código de Defesa do Consumidor; algumas notas", Rev. de Dir. do Consumidor, vol. 5, Ed. RT, jan/mar-1993, págs. 187/188). Dado ao caráter imperativo das regras do Código, o Art. 4º vincula o intérprete aos resultados pretendidos o qual fica na contingência de aplicar a lei teleologicamente, não por sua opção mas por determinação da própria lei. E conforme já visto, o Art. 4º estabelece que a Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo atender as necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, a transparência e harmonia das relações de consumo, através do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo (Inc. I), a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo sempre com base na boa fé e equilíbrio entre consumidores e fornecedores (Inc. III) e a coibição e repressão eficientes de todos os abusos (Inc. IV). Baseado em tais princípios, vincula-se o intérprete às normas dos
Arts. 4º e
47, devendo aplicar a lei da maneira mais favorável ao consumidor.
Através das regras que impregnam as relações de consumo das noções de boa fé,
transparência, harmonia, vinculando o aplicador à interpretação mais favorável
ao consumidor, visando à proteção da sua vida, saúde, dignidade e dos seus
interesses econômicos, ou seja, a proteção à sua incolumidade físico-psíquica,
à sua incolumidade econômica, e a facilitação da implementação dos seus
direitos, o Código de Defesa do Consumidor dá expressão concreta ao Art. 3º
Inc. I da Constituição Federal de 1988 que preconiza como objetivo fundamental
da República, a construção de uma sociedade livre, justa, e solidária.
CLÁUSULAS
E PRÁTICAS ABUSIVAS
A boa fé de que trata o Código de Defesa do Consumidor não tem a conotação
subjetiva do Direito Comum quando, p.ex., se analisa a questão da culpa na
responsabilidade a âmbito do Direito Civil. A boa fé, no CDC (Art. 51-IV), é
considerada objetivamente, pressupõe lealdade, correção, honestidade. É boa fé
de comportamento, como imperativo de conduta, e se desdobra no princípio da
transparência, cuja abrangência alcança a fase pré contratual e antecede o
princípio do equilíbrio contratual. A obrigatoriedade de publicidade e
informação adequada e correta, p. ex., para que não seja passada ao consumidor
uma idéia falsa, incompleta ou apenas aparente acerca do produto ou do serviço
que deseja adquirir.
O equilíbrio contratual tem de
existir, seja nos contratos negociados ou nos de adesão. Estes últimos são os
mais largamente usados dado ao estreito espaço de negociação nas relações de
consumo, que se formam de modo impessoal na sociedade de massas e de economia
oligopolizada, onde se evidencia a desigualdade de poderes entre quem se
organiza profissionalmente - o fornecedor - e quem deseja realizar ato isolado
de compra ou uso de bem ou serviço - o consumidor - sem dominar as informações
especializadas que o outro possui. (PAULO LUIZ NETO LOBO, In
"Contratos no Código do Consumidor; pressupostos gerais", Rev.
JUSTITIA, do MP de S.Paulo, vol. 160, 1992, pág. 252).
A necessidade de equilíbrio na relação que se forma, impõe restrições legais às
condições que atribuam vantagens excessivas ao fornecedor e demasiada
onerosidade ao consumidor, caracterizadas umas e outras, como cláusulas
abusivas, por causarem o desequilíbrio que a lei reprime. Conforme tal, o CDC
proíbe as cláusulas iníquas (perversas, injustas, contrárias à eqüidade), e
abusivas (que desrespeitam valores éticos da sociedade), que sejam
incompatíveis com a boa fé ou coloquem o consumidor em desvantagem excessiva.
O CDC menciona, ao Art. 51, um elenco exemplificativo de cláusulas abusivas. Exemplificativo porque, ao descrevê-las, usou a expressão "entre outras", significando que não se resumem ao que está ali descrito. Nesse sentido, os incisos IV e XV, e o § 1º, que reprimem as cláusulas que atribuam vantagens excessivas ao fornecedor e demasiada onerosidade ao consumidor, as que
estabeleçam
obrigações iníquas (perversas, injustas) e abusivas, que sejam incompatíveis
com a boa fé e a eqüidade, ou coloquem o consumidor em desvantagem excessiva.
Esta é definida, no § 1º, como a ofensa aos princípios fundamentais do sistema
jurídico a que pertence, que restrinja direitos e obrigações fundamentais
inerentes à natureza do contrato de modo a ameaçar o seu objeto e o seu
equilíbrio, e se mostre excessivamente onerosa para o consumidor,
considerando-se a natureza e o conteúdo do contrato, o interesse das partes e
outras circunstâncias peculiares ao caso. Essa posição da lei visa a
neutralizar a hipossuficiência do consumidor diante do poderio econômico ou da
situação vantajosa do fornecedor.
A regra é a da nulidade da cláusula, que há de ser aplicada de ofício, mas,
conforme o § 2º, não invalida necessariamente o contrato, exceto quando, ao ser
retirada, e apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo para
qualquer das partes. Ou seja, declarada nula uma cláusula, o juiz deverá
desenvolver esforços integrativos para superar as lacunas decorrentes da sua
supressão, valendo-se da aplicação dos princípios gerais do Direito, da
analogia, dos costumes e da eqüidade, conforme o Art. 7º, parte final. O que a
lei busca é a satisfação de uma necessidade através do contrato. Se este contém
algum problema de natureza jurídica, há de ser resolvido e equacionado frente à
questão material do fornecimento do produto ou do serviço. Se esse fato não
descaracterizar o objetivo pactuado ou se não onerar excessivamente, agora,
tanto o consumidor quanto o fornecedor, o contrato será preservado. Caso contrário,
o contrato rui.
Quanto às práticas abusivas, o CDC descreve-as no Art. 39, e, tal qual as cláusulas abusivas, o faz exemplificativamente, pois
também aqui, emprega a expressão "dentre outras". No que tange aos planos ou seguros de saúde, interessa especificamente o inciso V, que considera prática abusiva exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva. Para identificá-la, deve o intérprete valer-se da regra do § 1º do Art. 51, que trata da "desvantagem exagerada" em relação ao consumidor. Ou seja, a que ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico, valendo dizer, a prática que esteja em desacordo com as finalidades fixadas na norma-objetivo do Art. 4º. Assim, caracteriza-se a "vantagem manifestamente excessiva" como a que é obtida por má fé, por malícia, por subterfúgios, embotamento da verdade, publicidade enganosa. No caso dos planos e seguros de saúde, a interpretação que as administradoras e seguradoras costumam dar às cláusulas contratuais por elas mesmas elaboradas, operando transferência de riscos que lhes eram próprios, para o consumidor, que se vê frustrado nas suas expectativas legítimas. Por vezes a cláusula enfocada pode até não ser abusiva, mas a interpretação que se lhe dá impregna de abusividade a prática dela decorrente. É o que ocorre freqüentemente na aplicação das cláusulas de exclusão de doenças e tratamentos, eleição de foro, pré existência de enfermidades, dentre outras. Caracteriza-se assim uma disparidade entre as indicações feitas através de mensagens publicitárias ou de contratos quanto ao objetivo proposto, com a realidade da prestação dos serviços. O que materializa a hipótese do Art. 20 do CDC, parte final, que responsabiliza o fornecedor de serviços pelos vícios de qualidade "decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente", a reexecução do serviço sem custo adicional, a restituição do que pagou, corrigido, sem prejuízo de perdas e danos,
ou o
abatimento proporcional do preço. Isto é, toda vez que um plano ou seguro de
saúde não corresponder, na prática, ao que prometeu na publicidade ou no
contrato, estará frustrando a própria finalidade contratual, o seu conteúdo,
que não é apenas aquele escrito, mas composto por tudo o que envolve a relação
desde o início da sua formação. Essa falta de correspondência derrui a garantia
da prestação devida.
Informações
bibliográficas:
Conforme a NBR
6023:2002 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto
científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
REIS, Nelson Santiago.
O consumidor e os seguros ou planos de saúde. Anotações acerca dos contratos;
cláusulas e práticas abusivas.. Jus Navigandi, Teresina, a. 2, n. 22,
dez. 1997. Disponível em:
<http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=698>. Acesso em: 07 out. 2004