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A BOA-FÉ NA RELAÇÃO DE CONSUMO[*][**]

 

RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR[***]

 

1. Introdução - 2. A norma do art. 4º do CDC - 3. A nulidade das cláusulas contratuais contrárias à boa-fé - 4. Conclusão.

1. Introdução

O Prof. Clóvis do Couto e Silva costumava dizer que a utilização da cláusula geral de boa-fé no Direito Brasileiro correspondia à sua quarta recepção. A primeira teria ocorrido com a acolhida do Direito Romano, através das Ordenações; a segunda, deveu-se à influência do Direito Francês, a partir do Código de Napoleão; a terceira, à aceitação do prestígio do Direito Alemão, principalmente através da doutrina da Escola de Recife e da presença marcante de Pontes de Miranda; e a quarta, com a adoção de um método de raciocínio próprio da . A transposição de uma técnica operativa adequada à solução judicial de casos, de um sistema aberto, para um ordenamento jurídico normatizado e fechado, produz profunda alteração no modo de aplicação do Direito, pois o uso da cláusula geral foge do parâmetro das normas tipificadoras de condutas e exige do juiz a prévia fixação da norma de comportamento adequada para o caso. Sempre que sou chamado a falar sobre esse aspecto do Código de Defesa do Consumidor insisto neste ponto: a cláusula geral, seja da boa-fé, seja da lesão enorme, contém implícita uma regra de direito judicial, dirigida à atuação do juiz, que lhe impõe, ao examinar o caso, primeiramente fixar a norma de dever de acordo com a realidade do fato e o princípio a que a cláusula geral adere, para somente num segundo momento confrontar a conduta efetivamente realizada com aquela que as circunstâncias recomendavam. Na cláusula geral há uma delegação, atribuindo ao juiz a tarefa de elaborar o juízo valorativo dos interesses em jogo[1]. Ela é uma realidade jurídica diversa das demais normas (princípios e regras), e seu conteúdo somente pode ser determinado na concretitude do caso.

A plena consciência de que tal cláusula funciona de modo diverso da subsunção comum às normas tipificadoras é importante não apenas para o julgador, a permitir-lhe a utilização adequada de valioso instrumento para a solução do caso, mas também para a orientação das partes, seja na elaboração do seu pedido, seja principalmente na produção da prova, uma vez que a norma de dever será formulada judicialmente em função dos fatos provados no processo e atendendo a critérios jurídicos e metajurídicos que possam auxiliar nessa formulação. Como a elaboração retórica do juiz não se limita à simples invocação da norma de dever positivada, pois esta não existe e deve ser construída para o caso, cumpre trazer aos autos todos os elementos que interessam para esta definição.

Se nada disso acontecer, corremos o risco de ver repetida a experiência dos últimos tempos, em que as cláusulas gerais ficaram, quase todas, em absoluto esquecimento. Basta dizer que o Código Comercial de 1850 já continha regra sobre a boa-fé, que permaneceu letra morta por falta de inspiração da doutrina e nenhuma aplicação pelos tribunais.

O Código de Defesa do Consumidor refere-se em duas passagens à boa-fé:

Minha intervenção neste painel desdobrar-se-á em duas partes: na primeira, observarei as conseqüências que decorrem da aproximação do conceito da boa-fé com o de harmonização dos interesses econômicos em jogo nas relações de consumo, a partir das referências feitas no art. 4º do CDC; na segunda, tratarei da boa-fé como fator determinante da nulidade de cláusulas contratuais.

2. A norma do art. 4º do CDC

A norma-objetivo[2] do art. 4º, de caráter nitidamente protetivo do consumidor, tem seu contraponto no princípio da harmonização de interesses conflitantes, de tal sorte que aquela necessidade de proteção deve ser compatibilizada com a de desenvolvimento econômico e tecnológico. E o que tem a ver a boa-fé na conciliação desses interesses?

Em primeiro lugar, devo dizer que a boa-fé aparece aqui como princípio orientador da interpretação e não como cláusula geral para a definição das regras de conduta. Expressa fundamental exigência que está à base da sociedade organizada, desempenhando função de sistematização das demais normas positivadas e direcionando sua aplicação[3]. É um marco referencial para a interpretação e aplicação do Código, o que seria até de certo modo dispensável, pois não se concebe sociedade organizada com base na má-fé, não fosse a constante conveniência de acentuar a sua importância.

O princípio da boa-fé está mencionado no texto do art. 4º, III, como critério auxiliar para a viabilização dos ditames constitucionais sobre a ordem econômica (art. 170 da CF). Isso traz à tona aspecto nem sempre considerado na boa-fé, consistente na sua vinculação com os princípios sócio-econômicos que presidem o ordenamento jurídico nacional, atuando operativamente no âmbito da economia do contrato. Isso quer dizer que a boa-fé não serve tão-só para a defesa do débil, mas também atua como fundamento para orientar interpretação garantidora da ordem econômica, compatibilizando interesses contraditórios, onde eventualmente poderá prevalecer o interesse contrário ao do consumidor, ainda que a sacrifício deste, se o interesse social prevalente assim o determinar. Considerando dois parâmetros de avaliação: a natureza da operação econômica pretendida e o custo social decorrente desta operação, a solução recomendada pela boa-fé poderá não ser favorável ao consumidor. Assim, por exemplo, nos contratos de adesão de consórcio para aquisição de bens, a cláusula que limita a devolução do numerário (devidamente corrigido) somente para o final do plano deve ser preservada, apesar de não satisfazer ao interesse do consorciado em obter a imediata restituição do que pagou, porquanto o interesse social mais forte reside na conservação dos consórcios como um instrumento útil para a economia de mercado, facilitando a comercialização das mercadorias, e estimulando a industrialização, finalidade esta que não deve ser desviada ou dificultada com o interesse imediatista do consumidor individual que se retira do grupo. O que está conforme o ensinamento de Rodotá: "a escolha deverá ser feita de modo a assegurar prevaleça o interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social"[4].

A aproximação dos termos ordem econômica - boa-fé serve para realçar que esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico, ligado à funcionalidade econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que o contrato persegue. São dois os lados, ambos iluminados pela boa-fé: externamente, o contrato assume uma função social e é visto como um dos fenômenos integrantes da ordem econômica, nesse contexto visualizado como um fator submetido aos princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre concorrência, liberdade de iniciativa etc., que fornecem os fundamentos para uma intervenção no âmbito da autonomia contratual; internamente, o contrato aparece como o vínculo funcional que estabelece uma planificação econômica entre as partes, às quais incumbe comportar-se de modo a garantir a realização dos seus fins e a plena satisfação das expectativas dos participantes do negócio. O art. 4º do Código se dirige para o aspecto externo e quer que a intervenção na economia contratual, para a harmonização dos interesses, se dê com base na boa-fé, isto é, com a superação dos interesses egoísticos das partes e com a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem econômica através de comportamento fundado na lealdade e na confiança.

Essa intervenção na economia do contrato, quando se dá por força da boa-fé, significará uma modificação na planificação acordada entre as partes, alterando a relação custo-benefício. Enquanto na execução linear da obrigação, eventual aumento do custo entra no âmbito de risco assumido voluntariamente pelas partes, já tal aumento, quando decorre da aplicação do princípio da boa-fé, não nasce diretamente das cláusulas contratuais acordadas. Então se põe a questão de saber se a alteração por força da boa-fé pode levar a um agravo que modifique a relação custo-benefício de forma tão substancial que influa na avaliação da conveniência do negócio. Isso interessa para decidirmos sobre a intensidade da exigência no cumprimento dos deveres, segundo resultem diretamente do contrato ou da boa-fé. Há quem sustente que, na primeira hipótese, o devedor somente poderia se exonerar demonstrando a lesão enorme, presente na celebração do negócio, ou modificação superveniente que quebrou a base do negócio e tornou insuportável o ônus para o cumprimento da prestação devida; já o dever decorrente da boa-fé, aumentando o risco e o custo do negócio para além do acordado, poderá ser afastado com a simples demonstração de que o cumprimento do dever criou à parte um sacrifício apreciável[5], que é um conceito econômico de intensidade menor que o de onerosidade excessiva. A mim, no entanto, parece que essa distinção quanto à força vinculante dos deveres, conforme a origem que tenham, somente poderia ser aceita depois de admitido o pressuposto de que o princípio da boa-fé se coloca em plano inferior ao do autonomia da vontade, quando ocorre exatamente o contrário: a autonomia da vontade é que deve ceder às exigências éticas da boa-fé objetiva. Logo, não procede a teoria de que o simples "sacrifício apreciável" a uma das partes seria suficiente para isentá-la do cumprimento de dever decorrente da aplicação da cláusula geral da boa-fé, porquanto desta resulta a formulação de uma norma jurídica de incidência plena sobre a relação obrigacional.

3. A nulidade das cláusulas contratuais contrárias à boa-fé

No Direito Romano o pretor concedia ao prejudicado pelo dolo na formação do contrato a , ação penal da vítima do dolo para anular os efeitos de negócio jurídico já executado[6] e a , exercida como defesa pelo prejudicado na demanda proposta pelo outro. No caso de uma demanda viciada pelo dolo por fato sucessivo à formação do ato sobre o qual o autor fundava sua pretensão, o réu lesado poderia opor a . As legislações modernas incorporaram a exceção de dolo especial aos casos de invalidade por vício de vontade; a exceção de dolo geral ensejou diversas normas particularizadoras de situações mais ocorrentes, como as que tratam dos direitos de retenção e de compensação, a exceção de inadimplemento, do enriquecimento sem causa, da proibição de beneficiar-se da torpeza bilateral etc. Com o reconhecimento mais ou menos explícito, permaneceu a utilização genérica da , admitida especialmente para coibir o e a obtenção de vantagem do próprio malefício[7]. A mesma exceção tem servido para afastar o abuso de direito, ocorrente sempre que o titular o exerce em contraste com o fim que o próprio direito reconhece, em prejuízo da contraparte. A cobra a maioria das hipóteses de abuso, ficando excluídos do seu âmbito apenas os casos de abuso do exercício dos assim chamados "direitos absolutos" (pois, na verdade, todos são relativos e devem ser exercidos de acordo com os fins perseguidos pelo ordenamento jurídico)[8] e dos demais que não são exercidos diretamente frente a outrem.

Digo isso para concluir que a cláusula geral da boa-fé acolhida pelo Código do Consumidor (art. 51, IV) tem âmbito de aplicação mais extenso que a , seja no campo processual, pois autoriza tanto a ação como a exceção, seja no campo material, porquanto vai além do dolo. Também atua como critério definidor da abusividade do exercício do direito[9]. Mosset Iturraspe notou a confluência dos dois conceitos: "Pensamos que hay recíproca interrelación: la buena fe excluye un uso abusivo de las prerrogativas y el ejercício regular impone la buena fe en los negócios"[10].

O art. 51, IV, considera abusiva a cláusula incompatível com a boa-fé ou a eqüidade. A eqüidade, definida por Aristóteles como uma espécie de justiça que permite ao juiz decidir o litígio de acordo com as peculiaridades do caso, exerce papel de fonte integradora do ordenamento jurídico (de nada vale a omissão do legislador do art. 4º da LICC) e de critério permanente para a interpretação do direito. Visto o direito como um sistema autocorrigível, a eqüidade é o seu limite transcendental, inerente à própria estrutura, além do qual está a injúria[11]. Não se confunde com a boa-fé e tem atuação independente, pois a eqüidade pode impor a uma das partes, ainda que de comportamento honesto e leal, apropriado à realidade do contrato, uma perda de direito. Isto é, o juízo eqüitativo vai mais além do que a boa-fé, reduzindo valores, excluindo deveres, flexibilizando obrigações, a fim de que possa ser cumprido pelo juiz o compromisso com a justiça da decisão. A inserção da eqüidade como um dos parâmetros para a avaliação da abusividade do contrato trouxe para o âmbito das relações de consumo o juízo eqüitativo, que assim passa a ser uma das hipóteses legais em que ele está autorizado (art. 127 do CPC).

Feitas estas distinções, cabe estabelecer em que consiste a boa-fé na relação de consumo e quais os modos de sua atuação.

A boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade, conforme está na Constituição da República), numa tentativa de "concreção em termos coerentes com a racionalidade global do sistema"[12]. O conceito é unitário para os diversos ramos do Direito Civil, assim como para o direito privado e o público, alterando-se apenas a predominância de uma ou outra norma reguladora, de acordo com a matéria. Para as relações de consumo, aparece com maior destaque o princípio de proteção do consumidor (art. 170, V, da CF), fundado na solidariedade e na justiça social.

A boa-fé se constitui numa fonte autônoma de deveres, independente da vontade, e por isso a extensão e o conteúdo da "relação obrigacional já não se mede somente nela (vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa ao controle das partes"[13]. A boa-fé significa a aceitação da interferência de elementos externos na intimidade da relação obrigacional, com poder limitador da autonomia contratual, pois através dela pode ser regulada a extensão e o exercício do direito subjetivo. A força e a abrangência dessa limitação dependem da filosofia que orienta o sistema, e da preferência dada a um ou outro dos princípios em confronto. Na relação de consumo, há nítida preocupação protetiva para com o consumidor, a ser compatibilizada com o princípio da liberdade contratual e com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico.

Como toda cláusula geral, permite atividade criadora do juiz. Esta porém não é arbitrária, mas contida nos limites da realidade do contrato, sua tipicidade, estrutura e funcionalidade, com aplicação dos princípios admitidos pelo sistema. O magistrado profere um juízo mais complexo do que o normal, atendendo à lealdade das partes, à moralidade da pretensão do credor e à correção da resistência do devedor[14]. Bem advertiu Los Mozos: "sua aplicação requer volver à "natureza da coisa", quer dizer, à lógica do preceito ou à natureza da relação jurídica em que atua; não cabe, pois, um arbítrio indefinido ou imoderado na aplicação de critérios éticos ou de razões sociais, senão proporcionado "[15]. Ademais, a exigência de fundamentação garante o controle da decisão pelas partes e pela comunidade jurídica.

A boa-fé tem função integradora da obrigação, atuando como fonte de direitos e obrigações ao lado do acordo de vontades, além de servir para a interpretação das cláusulas convencionadas. Os voluntaristas querem reduzir sua intervenção apenas para a integração do contrato de acordo com aquilo que fora pressuposto pelas partes; mas não é assim: a utilização da cláusula de boa-fé implica a criação de uma norma para o caso de acordo com os dados objetivos que ele mesmo apresenta, atendendo à realidade social e econômica em que o contrato opera, ainda que isso o leve para fora do círculo da vontade.

Esse controle sobre o conteúdo do contrato é uma realidade presente nos dias de hoje, que se faz notar até na Inglaterra, "una delle rocca-forti del principio di liberta contrattuale", onde assume cada vez maior prestígio a técnica da , sob o fundamento da boa-fé, que serve a uma interpretação integradora, a incidir diretamente sobre a liberdade negocial[16].

Para aplicação da cláusula da boa-fé, o juiz parte do princípio de que toda "a inter-relação humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e lealdade, indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência social. A expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um componente indissociável da vida de relação, sem o qual ela mesma seria inviável. Isso significa que as pessoas devem adotar um comportamento leal em toda a fase prévia à constituição de tais relações (diligência ); e que devem também comportar-se lealmente no desenvolvimento das relações jurídicas já constituídas entre eles. Este dever de comportar-se segundo a boa-fé se projeta a sua vez nas direções em que se diversificam todas as relações jurídicas: direitos e deveres. Os direitos devem exercitar-se de boa-fé; as obrigações têm de cumprir-se de boa-fé"[17].

Na relação contratual de consumo, a boa-fé exerce três funções principais: a) fornece os critérios para a interpretação do que foi avençado pelas partes, para a definição do que se deve entender por cumprimento pontual das prestações; b) cria deveres secundários ou anexos; e c) limita o exercício de direitos.

Ao tratar da boa-fé na relação de consumo é importante advertir desde logo que o Código do Consumidor foi a primeira lei brasileira a tratar da boa-fé objetiva (tirante a referência do art. 131, n.º 1, do CCom., que passou despercebida), e que não se limitou a introduzir o princípio (art. 4º) e a cláusula geral para controle da abusividade contratual (art. 51), pois também tipificou várias hipóteses legais de deveres que, não fora tal, normalmente se incluiriam no âmbito da boa-fé. Isso significa que, nas relações de consumo, muitos dos deveres que no Direito dos Contratos, têm sua fonte na boa-fé, já encontram aqui previsão legal específica, a remeter a fundamentação da sentença diretamente à lei. Podemos enumerar, a título de exemplo, os enunciados sobre a oferta (art. 30), sobre o dever de informação (arts. 9º, 12, 14, 31 e 52), sobre os deveres de lealdade e de probidade na publicidade (arts. 36 e 37). Como estes fatos podem ocorrer ainda antes da celebração da avença, os deveres atribuídos aos seus figurantes não são referenciados ao contrato, que inexiste, mas ao simples contato social, que é o suporte de fato suficiente para fazer nascer os deveres decorrentes da boa-fé. Diante dos termos do Código do Consumidor, porém, tais situações pré-contratuais já estão reguladas, e os deveres são impostos pela própria lei, o que dispensa e afasta a invocação da cláusula geral como fonte de tais deveres. Da mesma natureza, as disposições sobre as práticas abusivas (art. 39), as referentes à desconsideração da pessoa jurídica (art. 28), sobre o comportamento do credor na cobrança de dívidas (art. 42), sobre o armazenamento e utilização de dados de consumidores (art. 43), sobre a celebração e o conteúdo dos contratos, no que diz com o direito de prévio conhecimento do seu conteúdo (art. 46), com o direito de desistência (art. 49) e as demais cláusulas abusivas enumeradas nos arts. 51, 52 e 53.

Diante desta minudente explicitação legislativa, justificada pela preocupação protetiva do legislador para com o mais fraco, penso que a boa-fé, como fonte autônoma de deveres, nesses casos, cede o passo à lei, restando-lhe apenas a função de critério de interpretação.

A boa-fé como pauta de interpretação exerce valioso papel para a exata compreensão das cláusulas do contrato e das normas legais incidentes. Tem, porém, função inferior à da boa-fé - fonte de deveres e de limites, pois esta pode determinar deveres além da vontade das partes, enquanto aquela fica ligada à vontade manifestada no contrato ou à ordem legal.

Todas as normas acima referidas, determinantes de deveres, devem ser interpretadas segundo os ditames da boa-fé. Mas não é a boa-fé, e sim a lei a fonte desses deveres normatizados.

Os deveres nascidos da boa-fé são chamados de secundários, ou anexos, em oposição aos provenientes da vontade contratada, que são os principais. Podem ser classificados, quanto ao momento de sua constituição[18], em deveres próprios da etapa de formação do contrato (de informação, de segredo, de custódia); deveres da etapa da celebração (equivalência das prestações, clareza, explicitação); deveres da etapa do cumprimento (dever de recíproca cooperação para garantir a realização dos fins do contrato; satisfação dos interesses do credor); deveres após a extinção do contrato (dever de reserva, dever de segredo, dever de garantia da fruição do resultado do contrato, ).

Quanto à natureza[19], podem ser agrupados em: deveres de proteção (a evitar a inflição de danos mútuos), deveres de esclarecimentos (obrigação de informar-se e de prestar informações), e deveres de lealdade (a impor comportamentos tendentes à realização do objetivo do negócio, proibindo falsidades ou desequilíbrios).

Na sua função limitadora da conduta, a boa-fé se manifesta através da teoria dos atos próprios, proibindo o ; vedando o uso abusivo da exceptio nom adimpleti contractus, quando o inadimplemento da outra parte, no contexto do contrato, não o autorizava[20]; impedindo o exercício do direito potestativo de resolução quando houve adimplemento substancial, na linguagem do direito anglo-americano, ou quando o inadimplemento foi de escassa importância, na nomenclatura do Código Civil Italiano; afastando a exigência de um direito cujo titular permaneceu inerte por tempo considerado incompatível (); desprezando a exigência de cumprimento de preceito, feita por aquele que já o descumprira () etc.

Todas essas situações, quando não cobertas pelas regras específicas do Código do Consumidor, autorizam o reconhecimento de deveres ou limites fundados na boa-fé.

4. Conclusão

Para concluir, é importante realçar dois aspectos. A boa-fé é limitadora do direito subjetivo, angustia o âmbito da liberdade contratual, flexibiliza a estrutura material do contrato e gera certa insegurança quanto ao seu conteúdo, mas a sua finalidade principal é de manutenção e conservação do vínculo, aperfeiçoado pelos princípios da confiança, da lealdade, da honestidade e da verdade. O Direito Brasileiro, ao inclinar-se para a realização desses valores acompanha a tendência de "moralismo contratual", presente hoje no Direito Comparado[21].

Em segundo lugar, a recepção do princípio da boa-fé objetiva e a previsão legislativa de tantos deveres incluídos no âmbito da boa-fé constitui o maior avanço do sistema de Direito Civil legislado e vai influir de modo decisivo em todos os setores do nosso direito obrigacional, apesar de estarem tais normas inseridas num microssistema.

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NOTAS

[*]. Trabalho apresentado ao II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor, realizado de 8 a 11.3.94, em Brasília.

[1]. Antônio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, , Almedina, Coimbra, 1984, I/359.

[2]. Eros Roberto Grau, "Interpretando o Código de Defesa do Consumidor"; algumas notas. 5/183, jan.-mar./93, n.º 5, p. 183.

[3]. Giovanni Maria Uda, "Integrazione del Contratto, solidarietà sociale e correspetività delle prestazioni", , maio-jun./90, p. 301.

[4]. S. Rodotá, "La buona fede", in , Standard, Alpa/Bessone, p. 115.

[5]. Giovanni Maria Uda, "Buona Fede Oggetiva ed Economia Contrattuale", , 36/365-372, Padova, n.º 3, maio-jun./90.

[6]. José Carlos Moreira Alves, , Forense, Rio, 5ª ed., 1983, I/214.

[7]. Luca Nanni, , Cedam, Padova, 1988, p. 547.

[8]. Louis Josserand, , Dalloz, 1939.

[9]. "A boa-fé pode chegar a apresentar-se como um conceito básico para determinar o exercício normal ou abusivo dos direitos". José Manuel M. Bernal. , Ed. Montecorvo, Madrid, 1982, p. 199.

[10]. Jorge Mosset Iturraspe, , Ediar, B. Aires, p. 122, nota 9.

[11]. Francesco D'Agostino, , Ed. Giappicelli, Torino, p. 23.

[12]. Mengoni, , 1986, p. 18.

[13]. Clóvis do Couto e Silva, "O Princípio da Boa-fé no Direito Brasileiro e Português", in , RT, 1980, pp. 43 e ss.

[14]. G. Stolfi, "II Principio de Buona Fede", , IV, Giuffrè, Milão, 1967, p. 437.

[15]. José Luis de los Mozos, , Civitas, Madrid, 1988, p. 227.

[16]. Guido Alpa, "I Valori nel Diritto Contrattuale", , set./90, p. 661.

[17]. Ruy Rosado de Aguiar Júnior, , Rio, Aide Ed., 1991, p. 239.

[18]. Jorge Mosset Iturraspe, Justicia Contractual, Ediar, B. Aires, p. 140.

[19]. Antonio Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, , Almedina, Coimbra, 1984, I/604.

[20]. Maria Zana, "La regola della buona fede nell'eccezione di inadempimiento", , 1972, p. 1.376.

[21]. Guido, Alpa, op. loc. cit.

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[**] Artigo originariamente publicado na revista Direito do Consumidor 14/20.

 

[***] Ruy Rosado de Aguiar Júnior

Ministro do Superior Tribubal de Justiça