A BOA-FÉ NA RELAÇÃO DE CONSUMO[*][**]
RUY ROSADO DE AGUIAR JÚNIOR[***]
1.
Introdução - 2. A norma do art. 4º do CDC - 3. A nulidade das cláusulas
contratuais contrárias à boa-fé - 4. Conclusão.
1. Introdução
O
Prof. Clóvis do Couto e Silva costumava dizer que a utilização da cláusula
geral de boa-fé no Direito Brasileiro correspondia à sua quarta recepção. A
primeira teria ocorrido com a acolhida do Direito Romano, através das
Ordenações; a segunda, deveu-se à influência do Direito Francês, a partir do
Código de Napoleão; a terceira, à aceitação do prestígio do Direito Alemão,
principalmente através da doutrina da Escola de Recife e da presença marcante
de Pontes de Miranda; e a quarta, com a adoção de um método de raciocínio
próprio da . A transposição de uma técnica operativa adequada à solução
judicial de casos, de um sistema aberto, para um ordenamento jurídico
normatizado e fechado, produz profunda alteração no modo de aplicação do
Direito, pois o uso da cláusula geral foge do parâmetro das normas
tipificadoras de condutas e exige do juiz a prévia fixação da norma de
comportamento adequada para o caso. Sempre que sou chamado a falar sobre esse
aspecto do Código de Defesa do Consumidor insisto neste ponto: a cláusula
geral, seja da boa-fé, seja da lesão enorme, contém implícita uma regra de
direito judicial, dirigida à atuação do juiz, que lhe impõe, ao examinar o
caso, primeiramente fixar a norma de dever de acordo com a realidade do fato e
o princípio a que a cláusula geral adere, para somente num segundo momento
confrontar a conduta efetivamente realizada com aquela que as circunstâncias
recomendavam. Na cláusula geral há uma delegação, atribuindo ao juiz a tarefa
de elaborar o juízo valorativo dos interesses em jogo[1]. Ela é uma realidade
jurídica diversa das demais normas (princípios e regras), e seu conteúdo
somente pode ser determinado na concretitude do caso.
A
plena consciência de que tal cláusula funciona de modo diverso da subsunção
comum às normas tipificadoras é importante não apenas para o julgador, a
permitir-lhe a utilização adequada de valioso instrumento para a solução do
caso, mas também para a orientação das partes, seja na elaboração do seu
pedido, seja principalmente na produção da prova, uma vez que a norma de dever
será formulada judicialmente em função dos fatos provados no processo e
atendendo a critérios jurídicos e metajurídicos que possam auxiliar nessa
formulação. Como a elaboração retórica do juiz não se limita à simples
invocação da norma de dever positivada, pois esta não existe e deve ser
construída para o caso, cumpre trazer aos autos todos os elementos que
interessam para esta definição.
Se
nada disso acontecer, corremos o risco de ver repetida a experiência dos
últimos tempos, em que as cláusulas gerais ficaram, quase todas, em absoluto
esquecimento. Basta dizer que o Código Comercial de 1850 já continha regra
sobre a boa-fé, que permaneceu letra morta por falta de inspiração da doutrina
e nenhuma aplicação pelos tribunais.
O
Código de Defesa do Consumidor refere-se em duas passagens à boa-fé:
Minha
intervenção neste painel desdobrar-se-á em duas partes: na primeira, observarei
as conseqüências que decorrem da aproximação do conceito da boa-fé com o de
harmonização dos interesses econômicos em jogo nas relações de consumo, a
partir das referências feitas no art. 4º do CDC; na segunda, tratarei da boa-fé
como fator determinante da nulidade de cláusulas contratuais.
2. A norma do art. 4º do CDC
A
norma-objetivo[2] do
art. 4º, de caráter nitidamente protetivo do consumidor, tem seu contraponto no
princípio da harmonização de interesses conflitantes, de tal sorte que aquela
necessidade de proteção deve ser compatibilizada com a de desenvolvimento
econômico e tecnológico. E o que tem a ver a boa-fé na conciliação desses
interesses?
Em
primeiro lugar, devo dizer que a boa-fé aparece aqui como princípio orientador
da interpretação e não como cláusula geral para a definição das regras de
conduta. Expressa fundamental exigência que está à base da sociedade
organizada, desempenhando função de sistematização das demais normas
positivadas e direcionando sua aplicação[3]. É um marco referencial
para a interpretação e aplicação do Código, o que seria até de certo modo
dispensável, pois não se concebe sociedade organizada com base na má-fé, não
fosse a constante conveniência de acentuar a sua importância.
O
princípio da boa-fé está mencionado no texto do art. 4º, III, como critério
auxiliar para a viabilização dos ditames constitucionais sobre a ordem
econômica (art. 170 da CF). Isso traz à tona aspecto nem sempre considerado na
boa-fé, consistente na sua vinculação com os princípios sócio-econômicos que
presidem o ordenamento jurídico nacional, atuando operativamente no âmbito da
economia do contrato. Isso quer dizer que a boa-fé não serve tão-só para a
defesa do débil, mas também atua como fundamento para orientar interpretação
garantidora da ordem econômica, compatibilizando interesses contraditórios,
onde eventualmente poderá prevalecer o interesse contrário ao do consumidor,
ainda que a sacrifício deste, se o interesse social prevalente assim o
determinar. Considerando dois parâmetros de avaliação: a natureza da operação
econômica pretendida e o custo social decorrente desta operação, a solução
recomendada pela boa-fé poderá não ser favorável ao consumidor. Assim, por
exemplo, nos contratos de adesão de consórcio para aquisição de bens, a
cláusula que limita a devolução do numerário (devidamente corrigido) somente
para o final do plano deve ser preservada, apesar de não satisfazer ao
interesse do consorciado em obter a imediata restituição do que pagou,
porquanto o interesse social mais forte reside na conservação dos consórcios
como um instrumento útil para a economia de mercado, facilitando a
comercialização das mercadorias, e estimulando a industrialização, finalidade
esta que não deve ser desviada ou dificultada com o interesse imediatista do
consumidor individual que se retira do grupo. O que está conforme o ensinamento
de Rodotá: "a escolha deverá ser feita de modo a assegurar prevaleça o
interesse que se apresenta mais vantajoso em termos de custo social"[4].
A
aproximação dos termos ordem econômica - boa-fé serve para realçar que esta não
é apenas um conceito ético, mas também econômico, ligado à funcionalidade
econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que o contrato
persegue. São dois os lados, ambos iluminados pela boa-fé: externamente, o
contrato assume uma função social e é visto como um dos fenômenos integrantes
da ordem econômica, nesse contexto visualizado como um fator submetido aos
princípios constitucionais de justiça social, solidariedade, livre
concorrência, liberdade de iniciativa etc., que fornecem os fundamentos para
uma intervenção no âmbito da autonomia contratual; internamente, o contrato
aparece como o vínculo funcional que estabelece uma planificação econômica
entre as partes, às quais incumbe comportar-se de modo a garantir a realização
dos seus fins e a plena satisfação das expectativas dos participantes do
negócio. O art. 4º do Código se dirige para o aspecto externo e quer que a
intervenção na economia contratual, para a harmonização dos interesses, se dê
com base na boa-fé, isto é, com a superação dos interesses egoísticos das
partes e com a salvaguarda dos princípios constitucionais sobre a ordem
econômica através de comportamento fundado na lealdade e na confiança.
Essa
intervenção na economia do contrato, quando se dá por força da boa-fé,
significará uma modificação na planificação acordada entre as partes, alterando
a relação custo-benefício. Enquanto na execução linear da obrigação, eventual
aumento do custo entra no âmbito de risco assumido voluntariamente pelas
partes, já tal aumento, quando decorre da aplicação do princípio da boa-fé, não
nasce diretamente das cláusulas contratuais acordadas. Então se põe a questão
de saber se a alteração por força da boa-fé pode levar a um agravo que
modifique a relação custo-benefício de forma tão substancial que influa na
avaliação da conveniência do negócio. Isso interessa para decidirmos sobre a
intensidade da exigência no cumprimento dos deveres, segundo resultem
diretamente do contrato ou da boa-fé. Há quem sustente que, na primeira
hipótese, o devedor somente poderia se exonerar demonstrando a lesão enorme,
presente na celebração do negócio, ou modificação superveniente que quebrou a
base do negócio e tornou insuportável o ônus para o cumprimento da prestação
devida; já o dever decorrente da boa-fé, aumentando o risco e o custo do
negócio para além do acordado, poderá ser afastado com a simples demonstração
de que o cumprimento do dever criou à parte um sacrifício apreciável[5], que é um conceito
econômico de intensidade menor que o de onerosidade excessiva. A mim, no
entanto, parece que essa distinção quanto à força vinculante dos deveres,
conforme a origem que tenham, somente poderia ser aceita depois de admitido o
pressuposto de que o princípio da boa-fé se coloca em plano inferior ao do
autonomia da vontade, quando ocorre exatamente o contrário: a autonomia da
vontade é que deve ceder às exigências éticas da boa-fé objetiva. Logo, não
procede a teoria de que o simples "sacrifício apreciável" a uma das
partes seria suficiente para isentá-la do cumprimento de dever decorrente da
aplicação da cláusula geral da boa-fé, porquanto desta resulta a formulação de
uma norma jurídica de incidência plena sobre a relação obrigacional.
3. A nulidade das cláusulas contratuais contrárias à boa-fé
No
Direito Romano o pretor concedia ao prejudicado pelo dolo na formação do
contrato a , ação penal da vítima do dolo para anular os efeitos de negócio
jurídico já executado[6]
e a , exercida como defesa pelo prejudicado na demanda proposta pelo outro. No
caso de uma demanda viciada pelo dolo por fato sucessivo à formação do ato
sobre o qual o autor fundava sua pretensão, o réu lesado poderia opor a . As
legislações modernas incorporaram a exceção de dolo especial aos casos de
invalidade por vício de vontade; a exceção de dolo geral ensejou diversas
normas particularizadoras de situações mais ocorrentes, como as que tratam dos
direitos de retenção e de compensação, a exceção de inadimplemento, do
enriquecimento sem causa, da proibição de beneficiar-se da torpeza bilateral
etc. Com o reconhecimento mais ou menos explícito, permaneceu a utilização
genérica da , admitida especialmente para coibir o e a obtenção de vantagem do
próprio malefício[7]. A
mesma exceção tem servido para afastar o abuso de direito, ocorrente sempre que
o titular o exerce em contraste com o fim que o próprio direito reconhece, em
prejuízo da contraparte. A cobra a maioria das hipóteses de abuso, ficando
excluídos do seu âmbito apenas os casos de abuso do exercício dos assim
chamados "direitos absolutos" (pois, na verdade, todos são relativos
e devem ser exercidos de acordo com os fins perseguidos pelo ordenamento
jurídico)[8] e dos
demais que não são exercidos diretamente frente a outrem.
Digo
isso para concluir que a cláusula geral da boa-fé acolhida pelo Código do
Consumidor (art. 51, IV) tem âmbito de aplicação mais extenso que a , seja no
campo processual, pois autoriza tanto a ação como a exceção, seja no campo
material, porquanto vai além do dolo. Também atua como critério definidor da
abusividade do exercício do direito[9]. Mosset Iturraspe notou a confluência dos dois conceitos:
"Pensamos que hay recíproca interrelación: la buena fe excluye un uso
abusivo de las prerrogativas y el ejercício regular impone la buena fe en los
negócios"[10].
O
art. 51, IV, considera abusiva a cláusula incompatível com a boa-fé ou a
eqüidade. A eqüidade, definida por Aristóteles como uma espécie de justiça que
permite ao juiz decidir o litígio de acordo com as peculiaridades do caso,
exerce papel de fonte integradora do ordenamento jurídico (de nada vale a
omissão do legislador do art. 4º da LICC) e de critério permanente para a
interpretação do direito. Visto o direito como um sistema autocorrigível, a
eqüidade é o seu limite transcendental, inerente à própria estrutura, além do
qual está a injúria[11].
Não se confunde com a boa-fé e tem atuação independente, pois a eqüidade pode
impor a uma das partes, ainda que de comportamento honesto e leal, apropriado à
realidade do contrato, uma perda de direito. Isto é, o juízo eqüitativo vai mais
além do que a boa-fé, reduzindo valores, excluindo deveres, flexibilizando
obrigações, a fim de que possa ser cumprido pelo juiz o compromisso com a
justiça da decisão. A inserção da eqüidade como um dos parâmetros para a
avaliação da abusividade do contrato trouxe para o âmbito das relações de
consumo o juízo eqüitativo, que assim passa a ser uma das hipóteses legais em
que ele está autorizado (art. 127 do CPC).
Feitas
estas distinções, cabe estabelecer em que consiste a boa-fé na relação de
consumo e quais os modos de sua atuação.
A
boa-fé é uma cláusula geral cujo conteúdo é estabelecido em concordância com os
princípios gerais do sistema jurídico (liberdade, justiça e solidariedade,
conforme está na Constituição da República), numa tentativa de "concreção
em termos coerentes com a racionalidade global do sistema"[12]. O conceito é unitário
para os diversos ramos do Direito Civil, assim como para o direito privado e o
público, alterando-se apenas a predominância de uma ou outra norma reguladora,
de acordo com a matéria. Para as relações de consumo, aparece com maior
destaque o princípio de proteção do consumidor (art. 170, V, da CF), fundado na
solidariedade e na justiça social.
A
boa-fé se constitui numa fonte autônoma de deveres, independente da vontade, e
por isso a extensão e o conteúdo da "relação obrigacional já não se mede
somente nela (vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao
contrato, permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio
jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa ao controle das
partes"[13]. A
boa-fé significa a aceitação da interferência de elementos externos na intimidade
da relação obrigacional, com poder limitador da autonomia contratual, pois
através dela pode ser regulada a extensão e o exercício do direito subjetivo. A
força e a abrangência dessa limitação dependem da filosofia que orienta o
sistema, e da preferência dada a um ou outro dos princípios em confronto. Na
relação de consumo, há nítida preocupação protetiva para com o consumidor, a
ser compatibilizada com o princípio da liberdade contratual e com a necessidade
de desenvolvimento econômico e tecnológico.
Como
toda cláusula geral, permite atividade criadora do juiz. Esta porém não é
arbitrária, mas contida nos limites da realidade do contrato, sua tipicidade,
estrutura e funcionalidade, com aplicação dos princípios admitidos pelo
sistema. O magistrado profere um juízo mais complexo do que o normal, atendendo
à lealdade das partes, à moralidade da pretensão do credor e à correção da
resistência do devedor[14].
Bem advertiu Los Mozos: "sua aplicação requer volver à "natureza da
coisa", quer dizer, à lógica do preceito ou à natureza da relação jurídica
em que atua; não cabe, pois, um arbítrio indefinido ou imoderado na aplicação
de critérios éticos ou de razões sociais, senão proporcionado "[15]. Ademais, a exigência
de fundamentação garante o controle da decisão pelas partes e pela comunidade
jurídica.
A
boa-fé tem função integradora da obrigação, atuando como fonte de direitos e
obrigações ao lado do acordo de vontades, além de servir para a interpretação
das cláusulas convencionadas. Os voluntaristas querem reduzir sua intervenção
apenas para a integração do contrato de acordo com aquilo que fora pressuposto
pelas partes; mas não é assim: a utilização da cláusula de boa-fé implica a
criação de uma norma para o caso de acordo com os dados objetivos que ele mesmo
apresenta, atendendo à realidade social e econômica em que o contrato opera,
ainda que isso o leve para fora do círculo da vontade.
Esse
controle sobre o conteúdo do contrato é uma realidade presente nos dias de
hoje, que se faz notar até na Inglaterra, "una delle rocca-forti del
principio di liberta contrattuale", onde assume cada vez maior prestígio a
técnica da , sob o fundamento da boa-fé, que serve a uma interpretação
integradora, a incidir diretamente sobre a liberdade negocial[16].
Para
aplicação da cláusula da boa-fé, o juiz parte do princípio de que toda "a
inter-relação humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e
lealdade, indispensável para o próprio desenvolvimento normal da convivência
social. A expectativa de um comportamento adequado por parte do outro é um
componente indissociável da vida de relação, sem o qual ela mesma seria
inviável. Isso significa que as pessoas devem adotar um comportamento leal em
toda a fase prévia à constituição de tais relações (diligência ); e que devem
também comportar-se lealmente no desenvolvimento das relações jurídicas já
constituídas entre eles. Este dever de comportar-se segundo a boa-fé se projeta
a sua vez nas direções em que se diversificam todas as relações jurídicas:
direitos e deveres. Os direitos devem exercitar-se de boa-fé; as obrigações têm
de cumprir-se de boa-fé"[17].
Na
relação contratual de consumo, a boa-fé exerce três funções principais: a)
fornece os critérios para a interpretação do que foi avençado pelas partes,
para a definição do que se deve entender por cumprimento pontual das
prestações; b) cria deveres secundários ou anexos; e c) limita o exercício de
direitos.
Ao
tratar da boa-fé na relação de consumo é importante advertir desde logo que o
Código do Consumidor foi a primeira lei brasileira a tratar da boa-fé objetiva
(tirante a referência do art. 131, n.º 1, do CCom., que passou despercebida), e
que não se limitou a introduzir o princípio (art. 4º) e a cláusula geral para
controle da abusividade contratual (art. 51), pois também tipificou várias
hipóteses legais de deveres que, não fora tal, normalmente se incluiriam no
âmbito da boa-fé. Isso significa que, nas relações de consumo, muitos dos
deveres que no Direito dos Contratos, têm sua fonte na boa-fé, já encontram
aqui previsão legal específica, a remeter a fundamentação da sentença
diretamente à lei. Podemos enumerar, a título de exemplo, os enunciados sobre a
oferta (art. 30), sobre o dever de informação (arts. 9º, 12, 14, 31 e 52),
sobre os deveres de lealdade e de probidade na publicidade (arts. 36 e 37).
Como estes fatos podem ocorrer ainda antes da celebração da avença, os deveres
atribuídos aos seus figurantes não são referenciados ao contrato, que inexiste,
mas ao simples contato social, que é o suporte de fato suficiente para fazer
nascer os deveres decorrentes da boa-fé. Diante dos termos do Código do
Consumidor, porém, tais situações pré-contratuais já estão reguladas, e os
deveres são impostos pela própria lei, o que dispensa e afasta a invocação da cláusula
geral como fonte de tais deveres. Da mesma natureza, as disposições sobre as
práticas abusivas (art. 39), as referentes à desconsideração da pessoa jurídica
(art. 28), sobre o comportamento do credor na cobrança de dívidas (art. 42),
sobre o armazenamento e utilização de dados de consumidores (art. 43), sobre a
celebração e o conteúdo dos contratos, no que diz com o direito de prévio
conhecimento do seu conteúdo (art. 46), com o direito de desistência (art. 49)
e as demais cláusulas abusivas enumeradas nos arts. 51, 52 e 53.
Diante
desta minudente explicitação legislativa, justificada pela preocupação
protetiva do legislador para com o mais fraco, penso que a boa-fé, como fonte
autônoma de deveres, nesses casos, cede o passo à lei, restando-lhe apenas a
função de critério de interpretação.
A
boa-fé como pauta de interpretação exerce valioso papel para a exata
compreensão das cláusulas do contrato e das normas legais incidentes. Tem,
porém, função inferior à da boa-fé - fonte de deveres e de limites, pois esta
pode determinar deveres além da vontade das partes, enquanto aquela fica ligada
à vontade manifestada no contrato ou à ordem legal.
Todas
as normas acima referidas, determinantes de deveres, devem ser interpretadas
segundo os ditames da boa-fé. Mas não é a boa-fé, e sim a lei a fonte desses
deveres normatizados.
Os
deveres nascidos da boa-fé são chamados de secundários, ou anexos, em oposição
aos provenientes da vontade contratada, que são os principais. Podem ser
classificados, quanto ao momento de sua constituição[18], em deveres próprios
da etapa de formação do contrato (de informação, de segredo, de custódia);
deveres da etapa da celebração (equivalência das prestações, clareza, explicitação);
deveres da etapa do cumprimento (dever de recíproca cooperação para garantir a
realização dos fins do contrato; satisfação dos interesses do credor); deveres
após a extinção do contrato (dever de reserva, dever de segredo, dever de
garantia da fruição do resultado do contrato, ).
Quanto
à natureza[19], podem
ser agrupados em: deveres de proteção (a evitar a inflição de danos mútuos),
deveres de esclarecimentos (obrigação de informar-se e de prestar informações),
e deveres de lealdade (a impor comportamentos tendentes à realização do
objetivo do negócio, proibindo falsidades ou desequilíbrios).
Na
sua função limitadora da conduta, a boa-fé se manifesta através da teoria dos
atos próprios, proibindo o ; vedando o uso abusivo da exceptio nom adimpleti
contractus, quando o inadimplemento da outra parte, no contexto do
contrato, não o autorizava[20];
impedindo o exercício do direito potestativo de resolução quando houve
adimplemento substancial, na linguagem do direito anglo-americano, ou quando o
inadimplemento foi de escassa importância, na nomenclatura do Código Civil
Italiano; afastando a exigência de um direito cujo titular permaneceu inerte
por tempo considerado incompatível (); desprezando a exigência de cumprimento
de preceito, feita por aquele que já o descumprira () etc.
Todas
essas situações, quando não cobertas pelas regras específicas do Código do
Consumidor, autorizam o reconhecimento de deveres ou limites fundados na
boa-fé.
4. Conclusão
Para
concluir, é importante realçar dois aspectos. A boa-fé é limitadora do direito
subjetivo, angustia o âmbito da liberdade contratual, flexibiliza a estrutura
material do contrato e gera certa insegurança quanto ao seu conteúdo, mas a sua
finalidade principal é de manutenção e conservação do vínculo, aperfeiçoado
pelos princípios da confiança, da lealdade, da honestidade e da verdade. O
Direito Brasileiro, ao inclinar-se para a realização desses valores acompanha a
tendência de "moralismo contratual", presente hoje no Direito
Comparado[21].
Em
segundo lugar, a recepção do princípio da boa-fé objetiva e a previsão
legislativa de tantos deveres incluídos no âmbito da boa-fé constitui o maior
avanço do sistema de Direito Civil legislado e vai influir de modo decisivo em
todos os setores do nosso direito obrigacional, apesar de estarem tais normas
inseridas num microssistema.
____________________
NOTAS
[*].
Trabalho apresentado ao II Congresso Brasileiro de Direito do Consumidor,
realizado de 8 a 11.3.94, em Brasília.
[1]. Antônio Manuel da Rocha
e Menezes Cordeiro, , Almedina, Coimbra, 1984, I/359.
[2]. Eros Roberto Grau,
"Interpretando o Código de Defesa do Consumidor"; algumas notas.
5/183, jan.-mar./93, n.º 5, p. 183.
[3]. Giovanni Maria Uda,
"Integrazione del Contratto, solidarietà sociale e correspetività delle
prestazioni", , maio-jun./90, p. 301.
[4]. S.
Rodotá, "La buona fede", in , Standard, Alpa/Bessone, p. 115.
[5]. Giovanni Maria Uda,
"Buona Fede Oggetiva ed Economia Contrattuale", , 36/365-372, Padova,
n.º 3, maio-jun./90.
[6]. José Carlos Moreira
Alves, , Forense, Rio, 5ª ed., 1983, I/214.
[7]. Luca Nanni, , Cedam,
Padova, 1988, p. 547.
[8]. Louis
Josserand, , Dalloz, 1939.
[9]. "A boa-fé pode
chegar a apresentar-se como um conceito básico para determinar o exercício
normal ou abusivo dos direitos". José Manuel M. Bernal. , Ed. Montecorvo,
Madrid, 1982, p. 199.
[10]. Jorge Mosset
Iturraspe, , Ediar, B. Aires, p. 122, nota 9.
[11]. Francesco
D'Agostino, , Ed. Giappicelli, Torino, p. 23.
[12]. Mengoni, , 1986, p.
18.
[13]. Clóvis do Couto e
Silva, "O Princípio da Boa-fé no Direito Brasileiro e Português", in
, RT, 1980, pp. 43 e ss.
[14]. G. Stolfi, "II
Principio de Buona Fede", , IV, Giuffrè, Milão, 1967, p. 437.
[15]. José Luis de los
Mozos, , Civitas, Madrid, 1988, p. 227.
[16]. Guido Alpa, "I
Valori nel Diritto Contrattuale", , set./90, p. 661.
[17]. Ruy Rosado de Aguiar
Júnior, , Rio, Aide Ed., 1991, p. 239.
[18]. Jorge Mosset
Iturraspe, Justicia Contractual, Ediar, B. Aires, p. 140.
[19]. Antonio Manuel da
Rocha e Menezes Cordeiro, , Almedina, Coimbra, 1984, I/604.
[20]. Maria Zana, "La regola della buona fede nell'eccezione di
inadempimiento", , 1972, p. 1.376.
[21]. Guido, Alpa, op.
loc. cit.
____________________
[**]
Artigo originariamente publicado na revista Direito do Consumidor 14/20.
[***] Ruy Rosado de Aguiar Júnior
Ministro
do Superior Tribubal de Justiça